Carlos Alberto Di Franco*
A cobertura da imprensa da recente visita do papa à Terra Santa foi bastante razoável. Algumas matérias, ancoradas em informações de agências internacionais, deram, talvez, excessivo destaque aos destemperos isolados de alguns radicais e alimentaram polêmicas vazias que não se sustentam em pé. É preciso reconhecer, no entanto, que alguns equívocos cresceram à sombra do surpreendente despreparo do porta-voz do Vaticano.
"O papa nunca fez parte da Juventude Hitlerista", afirmou monsenhor Federico Lombardi, acrescentando que Bento XVI foi convocado apenas para servir numa unidade antiaérea das tropas alemãs. Horas depois, voltou atrás na afirmação e divulgou um comunicado reconhecendo o que o papa, um homem reconhecidamente transparente, jamais negou: teve uma breve e compulsória participação na Juventude Hitlerista. Foi, como milhares de crianças alemãs, privado de sua liberdade e vitimado pelos abusos criminosos do governo de Hitler.
Comprova-se, mais uma vez, que os injustos ataques à imagem de Bento XVI não se originam apenas nas fileiras hostis ao Vaticano. São reforçados pela crescente ação do fogo amigo. E não estou pensando somente nas escorregadas do porta-voz. Os equívocos não se limitam à Sala de Imprensa. As puxadas de tapete, por sua magnitude e ousadia, nascem, estou certo, em ambientes curiais que deveriam primar pela lealdade ao papa.
Mas voltemos, caro leitor, ao tema deste artigo. Durante toda a viagem o papa repetiu duas mensagens: a de que cristãos, judeus e muçulmanos dividem as mesmas raízes e a importância da presença cristã no Oriente Médio. Ao visitar a Cidade Velha de Jerusalém, Bento XVI foi à Esplanada das Mesquitas (conhecida como Monte do Templo pelos judeus), o terceiro lugar mais sagrado para o Islã, e entrou descalço no Domo da Rocha, de onde o Profeta Maomé teria subido aos céus. Em outro momento comovente, o papa depositou um bilhete entre as pedras do Muro das Lamentações, local sagrado para o judaísmo. No bilhete, pediu ao "Deus de Abraão, Isaac e Jacó que leve sua paz à Terra Santa, ao Oriente Médio e a toda a família humana".
Seu apelo ao convívio pacífico, apoiado na força de sua autoridade moral, foi a tônica dessa viagem. "Apelo a todos para que explorem todas as possibilidades na busca de uma solução justa, apesar das consideráveis dificuldades, para que ambos os povos possam viver em paz em sua própria terra, com segurança e fronteiras internacionalmente reconhecidas. A esperança de inúmeros homens, mulheres e crianças de um futuro seguro e estável depende do resultado de negociações de paz entre israelenses e palestinos."
Mas Bento XVI sabe que a paz no Oriente Médio não depende de acordos meramente políticos, mas de algo muito mais profundo: a estratégia do perdão. Acima dos ódios milenares que dilaceram aqueles povos, o papa pediu a Deus que ajude os povos do Oriente Médio a derrubar os muros da hostilidade e da divisão. Pediu a judeus, muçulmanos e cristãos que "promovam uma cultura de reconciliação e paz, mesmo que esse processo seja dolorosamente lento e seja qual for o peso das memórias do passado".
"Não deve haver lugar nessas muralhas para estreiteza, discriminação, violência e injustiça", disse o papa.
A estratégia do perdão está no cerne da diplomacia papal. Ela deu um salto gigantesco no governo de seu antecessor. Como principal assessor de João Paulo II, o então cardeal Ratzinger, brilhante intelectual e teólogo renomado, teve papel decisivo na redação de um documento carregado de significado, a bula Incarnationis Mysterium, que instituiu o jubileu do ano 2000. Bento XVI, à semelhança de seu antecessor, aposta na força purificadora e libertadora da verdade. Movido pelo espírito de reconciliação, o papa pediu perdão pelos erros cometidos pelos fiéis e pelos representantes da Igreja Católica ao longo dos 2 mil anos de vida da instituição.
Esse gesto sem precedentes na História provocou interesse das outras religiões, mas foi recebido com reservas por alguns integrantes da própria Igreja Católica. Questionou-se a iniciativa do papa, porque se considerou que era unilateral, e se pediu um passo semelhante das outras igrejas. João Paulo II então e Bento XVI agora, numa atitude de grandeza moral, não calcularam contrapartidas. O perdão genuíno, a reconciliação que tanta falta faz no Oriente Médio, é sempre uma abertura desarmada e generosa.
O perdão desinteressado é a verdadeira e única alavanca da paz. É, no fundo, a linha fundamental de toda a estratégia da Igreja. O papa falou reiteradamente de paz, justiça e unidade como "presentes de Deus", tocando no ponto nevrálgico que fez de suas intervenções um acontecimento de enorme conteúdo político, embora reitere o caráter religioso da sua mensagem. A coragem para enfrentar temas espinhosos, apoiada no alicerce de uma incontestável força moral, faz com que a voz de Bento XVI ainda possa ser ouvida num território minado por séculos de ódios, de intolerância e de incompreensões.
Reconciliação e unidade estiveram no centro dos objetivos papais. A viagem ao Oriente Médio, onde os filhos de Abraão, cristãos, judeus e muçulmanos, vivem num conflito permanente, não foi apenas a realização de um sonho do pontífice. Foi, na verdade, o corolário de uma vida dedicada à paz. A realização do sonho de Bento XVI não será fácil, mas sua agenda da reconciliação proposta no coração de uma região corroída pelas divisões e pelo ódio, se bem acolhida, pode indicar que algo de novo e surpreendente está despontando no horizonte da terra onde nasceu o Príncipe da Paz.
*Carlos Alberto Di Franco, doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, professor de Ética, é diretor do Master em Jornalismo (www.masteremjornalismo.org.br) e da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia (www.consultoradifranco.com)E-mail: difranco@iics.org.br
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