Rubem Alves*
Sobre o sexo e a saudade
Luis Fernando Veríssimo, escritor cujos livros são uma delícia de se ler — eu mesmo, quando praticava a psicanálise, me vali muito do exemplo do “Analista de Bagé” — pois ele estava lá na IV Feira Nacional de Livros de Poços de Caldas. Fez uma palestra sobre as coisas do seu ofício. Terminada a fala uma senhora levantou a mão, pedindo licença para fazer uma pergunta. E foi isso que ela perguntou: “O senhor, nos seus escritos e falas, frequentemente se refere às coisas do sexo, e o faz com grande propriedade. Eu gostaria é de saber o lugar de onde o senhor tira a sua inspiração...” O escritor se ajeitou na cadeira, hesitou por alguns segundos e respondeu: “Eu tiro a minha inspiração é da saudade... Na saudade o sexo fica mais bonito...” Todo mundo riu. Não devia. Foi uma resposta de dor, resposta de um velho... Porque, como disse o Riobaldo, “toda saudade é uma espécie de velhice...” A gente sente saudade quando a coisa se foi. Na velhice ou o sexo já se foi ou está indo... Lembrei-me do meu sofrimento quando compreendi que eu teria de falar a palavra “sessenta” quando perguntado sobre a minha idade. Há idades que sugerem aquilo que se tem, e há idades que revelam aquilo que não se tem mais... Tentei me consolar fazendo uma brincadeira que os escritores fazem. Brinquei com a palavra. Sessenta anos... Sexagenário... Sex-agenário... Anunciei então que eu havia entrado na idade do sexo, porque é isso que a palavra sexagenário está dizendo para as pessoas de boa vontade. Mas o tempo é inexorável, devorador dos seus filhos. Aos poucos ele foi devorando a palavra, e do sex-agenário não sobrou nada. Passa-se, então, para uma outra idade. Chegado o fim da idade do sexo, se tenta...
Aquarela
São 20h20. Estou sozinho. Corrijo-me: o gato “Faísca” me faz companhia. O silêncio é total. Nenhum resquício de voz humana. Escrevo, o que me faz esquecer da solidão. Toca o telefone. Sim, há pessoas acordadas nesse mundo. Antes de atender verifico o número do telefone que me chama. O código é “85”. O telefonema vem de longe, lá do Norte do Brasil. Adivinho quem está me chamando. É o Marcelo, lá da cidade de Aquiraz, perto de Fortaleza. Já contei a história dele, da flauta que ele comprou com o dinheiro que conseguiu ajuntar catando moedas que encontrava no chão. Mas não era uma flauta de verdade. Era um pífaro, flauta doce de plástico. A flauta que ele queria era uma flauta transversal de concerto. “Vai levar muito tempo pra eu ajuntar dinheiro pra comprar a flauta transversal procurando moedas no chão...”, ele disse. Voltando a Campinas contei a história dele no Correio Popular. Uma senhora leu, simpatizou, e ofereceu para Marcelo uma flauta italiana que fora de seu pai. Daí pra frente não foi possível segura-lo. Matriculou-se no conservatório, formou-se regente e passou a dedicar-se à sua grande paixão: formar orquestras com a meninada pobre da região. Ele pediu que eu ficasse com o fone no ouvido. E o que eu ouvi foi a Aquarela do Toquinho. Terminada a execução ele explicou: “É a primeira música que essa orquestra de 85 crianças toca. Elas são da comunidade de Vila Pagã” — “eta nome arretado”! Uma homenagem para o senhor e para a Papirus Editora que nos deu um dinheiro de direitos autorais que usamos para comprar os flautins...”
O progresso
O menino moderno, familiarizado com o computador, ficou curioso sobre como eram as coisas no trabalho do seu pai no tempo quando não havia computadores. O pai, entusiasmado com a súbita curiosidade do filho, pôs-se a campo para encontrar sua velha Olivetti portátil, amante esquecida, abandonada – e ele nem sabia ao certo onde ela estava. Depois de muito procurar encontrou-se dentro de uma mala velha cheia de tranqueiras. Tirou-a da sepultura, limpou-a, conferiu as teclas e alavancas, e também as fitas metade preto e metade vermelho, colocando-a então de novo no mesmíssimo lugar sobre a mesa onde vezes sem conta eles estiveram juntos. “Como é que funciona, pai?” — o menino perguntou. “É assim que funciona...”, respondeu o pai. A seguir colocou uma folha de papel sulfite no rolo, ajustou as margens e começou a “daquitilografar” (era assim que o meu pai falava) umas frases soltas. Ao ver a máquina em ação o menino fez um “oh” de espanto. “Que máquina mais adiantada, diferente dos computadores. É só digitar que o texto já sai impresso...” O que me fez lembrar um texto divertidíssimo de Cortazar que se chama, se não me engano, A história das invenções. Só que tudo acontece não de trás para frente mas da frente para trás. A história começa num vôo de supersônico de Nova York a Paris. Três horas. Aí os homens, inteligentes, pensaram que o prazer da viagem poderia ser aumentado se os aviões, ao invés de voarem a uma velocidade acima da velocidade do som e a uma altura de 15 quilômetros, passassem a voar a uma velocidade de 400 quilômetros por hora a uma altura de três quilômetros. Assim poderiam ficar muito mais tempo longe do trabalho e poderiam ver os rios, bosques e vilas... E assim vai acontecendo a história das invenções, sempre ao contrário e sempre melhor... Até que depois de muito progresso os homens inventam a mais fantástica de todas as invenções que não vou dizer qual é porque quero ter o prazer de contar bem devagarzinho...
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1633028&area=2220&authent=021047FFDCFB82023247DDDCD98220 - Correio Popular, 10/05/2009
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