sábado, 2 de maio de 2009

Mentiras consentidas

MOACYR SCLIAR

Os estrangeiros que vêm ao Brasil frequentemente passam pela experiência. Eles conhecem algum brasileiro, o contato é amável, caloroso mesmo, e em geral termina com a frase: “Aparece lá em casa”. No dia seguinte, lá está o visitante, batendo à porta do potencial anfitrião, para surpresa e constrangimento deste. Porque, claro, o convite não era para valer. Era algo como uma frase que brota automaticamente dos brasileiros, e que os sociólogos e psicólogos enquadram na categoria das chamadas mentiras consentidas. Por que consentidas? Porque são tacitamente aceitas por todos nós, os nativos desse país. E sistematicamente causam surpresa àqueles que vêm de fora.

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Mentiras consentidas são comuns entre nós. “Meu Deus, como você está bem!”. Mas a pessoa a quem dirigimos essa frase não está tão bem assim. Padece de alguma doença. Envelheceu. Saiu-se mal numa cirurgia plástica. É isso o que vamos dizer? De maneira alguma. Preferimos o “Meu Deus, como você está bem!” e ficamos em paz conosco mesmos.
Outro exemplo, este do sociólogo Roberto DaMatta: um amigo nosso escreveu um livro. Nós não lemos esse livro, ou então lemos, mas não gostamos. E aí o autor nos pergunta o que achamos de sua obra. Jamais seremos francos. Diremos algo como “É bem bom”, ou: “Funciona”. O que quer dizer isso, “funciona”? Provavelmente nada, mas nos livra de uma situação embaraçosa.
No Exterior é diferente. É famosa a frase do duque de Gloucester para o historiador Edward Gibbon, quando este levou-lhe mais um volume de sua obra Declínio e Queda do Império Romano: “Another damned, thick, square book! Always scribble, scribble! Eh, Mr. Gibbon?” “Outro maldito, grosso, quadrado livro! Sempre escrevinhando, escrevinhando! Não é, Mr. Gibbon?”. Notem que a intenção do duque não era ofender o autor; só dizia o que estava pensando, coisa que para um nobre inglês da época deveria parecer absolutamente normal.

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Não, nós não somos o duque de Gloucester. Somos brasileiros, e a ficção sempre fez parte de nossas vidas, até como forma de defesa contra a pobreza, a desigualdade, a injustiça social. Deus é brasileiro? Talvez não seja, mas para um morador de favela essa pode ser a única esperança. É por isso, aliás, que usei a palavra “ficção”, e não “mentira”. A mentira sempre envolve um componente de sacanagem. A ficção, não. A ficção, e todo escritor sabe disso, é uma outra dimensão da verdade, é a verdade como ela deveria ser: toda história, idealmente, termina com um final feliz: “casaram e foram felizes para sempre”. Será que é esta a regra para todos os casamentos?

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A mentira consentida também não é a mentira piedosa, que os médicos usavam muito no passado: “Isso não é nada, vai passar”. Muitas vezes não passava, muitas vezes a situação do paciente se agravava. Resultado: nos Estados Unidos, os médicos começaram a ser levados aos tribunais, acusados de ter ocultado (e a razão para isso era secundária) a verdade. Hoje em dia um médico americano não dirá ao paciente que “isso não é nada, vai passar.” Sua resposta será algo como: “Suas chances de recuperação com a cirurgia são de 22,5%, mas há um risco de óbito da ordem de 5,6%. Se usarmos o tratamento clínico, a possibilidade de melhora é de 21,3%, com efeitos colaterais surgindo em 12,3% dos casos”. Muito diferente, portanto, do “aparece lá em casa”.
Ao fim e ao cabo, porém, alguma mentira (os políticos que o digam) é inevitável. Desde que a gente não tenha o nariz do Pinóquio, tudo bem.
Postado Zero Hora, 03/05/2009

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