Ivan Lessa*
Colunista explica porque nunca votou e porque será eternamento grato a um despachante.
Serei direto: basta ficar em casa. Não passar a 100 metros que sejam de cabine indevassável, urna, presidente de mesa, qualquer coisa que lembre, mesmo que vagamente, o chamado - e chamemo-lo assim, só de sacanagem - escrutínio.
Exagerei quando falei em "arte de não votar". Nem técnica chega a ser. Desde os 18 anos, completados no Brasil, onde nem sempre havia essa farofada de "cumprir o dever cívico" (meu Deus, vivemos uma vida inteira entre aspas e nem notamos!). Para guiar os destinos do país tínhamos líderes que, no par ou ímpar, cara ou coroa, golpe ou emenda constitucional, resolviam entre si a espinhosa questão. Nós outros que cuidássemos de nossa vida e nem pensássemos em meter o bedelho.
O grau mais alto de politização a que cheguei foi graças ao Messias. Do qual (injustiça minha) não guardei nem o sobrenome, tamanha minha ojeriza aos ocasionais, muito ocasionais, momentos de demonstrar meus pendores cívicos.
Messias era um crioulo de terno e gravata, muito bem-educado e despachado. Tão despachado que foi ser despachante na vida. E despachante dos bons. Vou mais longe, talvez motivado por um descabido saudosismo: Messias foi o maior despachante de todos os tempos no Rio de Janeiro de meu tempo. Desde o meu registro como - por favor, não riam - eleitor, Messias me guiou os passos na enredada vida da política. Foi à zona ou vara ou talvez até distrito eleitoral, quem sabe até mesmo o quartel eleitoral, e cuidou, mediante preços mais que razoáveis, da falência de minhas ideologias. Posso estar enganado, mas sou capaz de jurar que o Messias compareceu por mim ao comício no Automóvel Clube de 1964 e à Passeata dos Cem Mil de 1969.
Quando, por exercer o jornalismo humorístico malsão com subversiva inocência durante o período que o povão, em sua infinita sabedoria, resolveu apelidar carinhosamente de "ditadura", e eu peguei pela proa dois processos por Atentado aos Bons Costumes e outro por infringir a Lei de Segurança, além de um excelente advogado, meu querido amigo Mânlio Marat Aquistapace, quem senão o Messias cuidava da papelada e de me acompanhar ao Fórum e à Polícia Federal, ali na rua da Assembléia, e de meu registro, com foto de frente e de perfil, sem camisa no entanto, ali nas dependências do DOPS, quase esquina de Senador Dantas.
Tudo que eu sei de política devo ao Messias. E, para ser justo, bastante também ao Marat. Logo depois deles, seguem-se o general da Censura Federal, e um escrivão e um fotógrafo do DOPS.
Quando em terras de Brasil, votar para mim sempre me elevou a uma espécie de atitude existencial única. Votar era uma ausência transcendental. Minha transubstanciação pessoal. Eu não comparecia a posto nenhum, vara nenhuma, zona alguma. Eu tinha apenas - e era um baque, uma volta à Terra - que justificar burocraticamente minha ausência no dia em questão, ou seja, no dia em que a cidade, o estado, o país, e todos seus cidadãos escolhidos a dedo, lato sensu, escolhiam quem iria decidir seus destinos. Os destinos lá deles, evidentemente. Dos senhores vereadores, deputados, senadores, governadores, presidentes e acompanhantes habituais. Nós, filhos e descendentes do Estado Novo, já tínhamos destino traçado desde o berço. Naquelas raras ocasiões cívicas que nos virássemos e aguentássemos: a bagunça e a algazarra dos caminhões com alto-falantes, as paredes pichadas, as aves bizarras a se leiloarem nos postes, nas estações de rádio, na televisão.
No estrangeiro, nesta Grã-Bretanha que não me pode ser mais estrangeira, o voto não é obrigatório. Analfabeto não participa dos festejos, que aliás não são nenhum. E as eleições gerais, como agora, no dia 6 de maio, são sempre numa quinta-feira e não é feriado nacional.
Não ficarei aqui deslumbrado diante dos prazeres a que apelidam de democráticos. A televisão e os jornais ficam insuportáveis. Gráficos, textos, opiniões, reportagens, colunas, populares opinando. Mas há 200 canais para escolher, muitos em HD, DVD para alugar e, por nostalgia reverente, no meu caso, ao menos, lembrar-me afetuosamente do Messias, com seu terno preto, gravata vermelha, pasta surrada, bom humor e extraordinária eficiência. Messias - a única pessoa no mundo em quem eu de bom grado iria até a esquina para nele votar. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.
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Fonte: Estadão online, 09/04/2010
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