sexta-feira, 30 de abril de 2010

Desafios éticos para a medicina do século 21

Roberto Luiz d'Avila*


RIO - A medicina surgiu nos tempos imemoriais, no início da civilização humana, em sua forma rudimentar, desprovida de qualquer benefício terapêutico outro, a não ser o exercício da solidariedade. Quando os primeiros humanos coletores enfrentaram as savanas, convivendo em agrupamentos, diante da natureza inóspita em sua luta pela sobrevivência, sofreram agravos externos ou adoeceram, e um outro ser humano postou-se ao seu lado, no sentido de cuidá-lo ou, por permanecer ao seu lado, em seu momento de dor, naquele momento surgiu a medicina, como símbolo da solidariedade humana.

Milhares de anos se passaram até os dias de hoje, e daqueles momentos vividos no passado não restam nem escritos. Pouco sabemos da medicina praticada na Mesopotâmia há 8 mil anos ou no Egito há 4 mil anos. Sabemos um pouco mais na Grécia de 2.500 anos passados, porque Hipócrates nos deixou pródiga literatura, que foi atribuída a ele e reunida no Corpus hipocratticum, incluindo seu juramento, repetido até os dias de hoje nas formaturas dos novos médicos. Passamos pela fase mística e religiosa, quando atuamos como xamãs ou sacerdotes, até chegarmos à fase científica ao fim do século 19, com Claude Bernard, onde aprendemos, pelo método científico, a objetivar o que era absolutamente subjetivo.

Nos dias de hoje, as novas tecnologias científicas incorporadas ao arsenal propedêutico e terapêutico permitem o prolongamento indefinido da vida, que na verdade resulta no prolongamento indefinido do morrer, utilizando-se recursos desproporcionais, como também a clonagem de órgãos, as terapias com intervenção no genoma humano, a possibilidade de ultrapassarmos a barreira dos 150 anos, cura para a maioria das doenças infecto-contagiosas pela vacinação e as previsões da cura do câncer e da Aids nos próximos 10 anos.

Entretanto, continua válido o aforismo francês do século 15, traduzido do latim medieval, segundo o professor catedrático Joffre de Rezende, da Faculdade de Medicina da Universidade de Goiás: “Guérir quelquefois, soulager souvent, consoler toujours” ou “Medicus quandoque sanat, saepe lenit et semper solatium est”, o que significa “O medico às vezes cura, muitas vezes alivia e sempre é um consolo”. Do ponto de vista ético e jurídico, efetivamente, o médico não tem compromisso com a cura mas com o cuidado, ou seja, o seu compromisso não é de fins, mas de meios.

Diante das mudanças sociais ocorridas nos últimos 20 anos em nosso país – pois tivemos uma nova Constituição, um novo Sistema Público de Saúde (lei do SUS) e uma legislação específica para as Operadoras de Planos de Saúde (suplementar), além das novas tecnologias empregadas na medicina, especialmente na área da imagem e da genética humana – tornou-se necessário repensar na atualização do Código de Ética Médica. Especialmente porque houve uma profunda mudança da moralidade vigente, incluindo a moralidade médica, diante dos novos desafios. Entendendo que a ética é uma ciência reflexiva sobre a moralidade de nossas ações e a moral varia no tempo e no espaço e, geralmente, é apresentada de forma codificada, após ser consensuada, para ser aplicada por persuasão ou coerção, quando houver infração aos deveres de conduta.

Iniciou-se, há três anos, a discussão sobre a revisão do Código de Ética, e uma Comissão Nacional de Revisão do Código preparou as Conferências Nacionais de Ética Médica, escolhendo como símbolo o mito romano de Janus, o deus com duas faces opostas, cada uma delas olhando para o passado e o futuro. Iniciou assim a necessária reflexão ética sobre a moralidade médica contemporânea, à luz da ética das virtudes (aristotélica), a ética dos deveres (kantiana) e a ética da responsabilidade (utilitarista).

Após a fase inicial, foram recebidas mais de 2.500 sugestões de mudanças, oriundas dos médicos e da sociedade civil organizada, e um esquema básico foi proposto para o novo Código (revisto, atualizado e ampliado), que seria composto por três partes: a primeira com os princípios fundamentais (a máxima moralia); a segunda com os direitos (diceologia) e a terceira com os deveres de conduta (deontologia - a mínima moralia), esta última com os artigos com condutas minimamente exigíveis dos médicos sob pena de receberem uma sanção quando infringidos.

Houve uma grande preocupação com a abrangência do Código, prevalecendo o entendimento que os administradores em saúde – tanto gestores da saúde pública ou da suplementar, desde que médicos – deveriam ser alcançados, pois seria inadmissível aceitarmos que normas administrativas prejudicassem a boa relação médico-paciente ou que os custos da assistência assumissem importância maior do que a qualidade da mesma.

Além disso, foram contempladas as questões referentes às novas tecnologias, como a reprodução assistida e a terapia gênica, evitando-se qualquer interferência malévola em gerações futuras. Mais ainda, forte componente bioético foi introduzido no capítulo dos princípios fundamentais, voltado para um reforço na autonomia e beneficência aos pacientes e, também, nas questões ambientais. A introdução dos cuidados paliativos para pacientes em fase terminal de doenças crônico-degenerativas foi avanço contra a obstinação terapêutica com o uso de recursos desproporcionais, desencorajando a distanásia.e garantindo uma morte com dignidade.

Forte ênfase foi dada ao conflito de interesses envolvendo médicos e a indústria farmacêutica e a de equipamentos médico-hospitalares, afastando definitivamente a possibilidade de mercantilismo na profissão médica.

Por fim, tanto os pesquisadores como os professores, médicos, também foram responsabilizados em seus compromissos com a sociedade e com a própria profissão. Assim o ensino medico foi contemplado e é a grande preocupação do Conselho Federal de Medicina, no momento, quando criou, recentemente, a Comissão Nacional de Ensino Medico e pretende envolver, por meio de convênio, a Academia Nacional de Medicina e as academias estaduais de medicina com os conselhos regionais em um grande projeto de ensino de Humanidade visando melhorar a formação moral e intelectual dos novos médicos. Para tal, a a Associação Brasileira de Ensino Médico e os coordenadores dos 180 cursos de medicina, existentes no país, já foram convidados para um grande debate nacional sobre o tema. A Academia Nacional de Medicina está convocada para contribuir, pois, como disse o grande médico catalão do século 19 José Letamendi, “aquele que só medicina sabe, nem medicina sabe”.
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*Roberto Luiz d'Avila é presidente do Conselho Federal de Medicina.
Conferência ministrada ontem na Academia Nacional de Medicina, em sessão ordinária, sob a presidência do acadêmico Pietro Novellino
Fonte: Jornal do Brasil online - 30/04/2010

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