O mais recente livro de François Houtart, Agroenergia: Solução para o Clima ou Saída da Crise para o Capital, nos apresenta uma ampla análise das questões que estão no centro do debate sobre o futuro da humanidade. O esforço da obra “consiste em descrever a situação da dupla crise energética e climática e colocar, em seguida, a questão das novas energias, em particular dos agrocombustíveis, no seu conjunto”. Na análise do fenômeno, o autor não ignora que “a questão dos agrocombustíveis tornou-se um problema ideológico”. A análise aborda o problema de uma perspectiva histórica e social, apontando a energia como “pivô da economia de mercado capitalista e mesmo disto que chamamos civilização ocidental”. Para o autor, “a energia desempenhou o papel central nesse processo, pois ela se encontra no coração das duas atividades principais da economia: a produção e o transporte”.
Setores-chave da economia, o transporte e a produção foram consideravelmente fomentados na fase neoliberal do capitalismo, e de forma global. Assim, a demanda por energia explodiu, com todas as suas consequências. Entre 1990 e 2003, o transporte marítimo cresceu 26,2% e o aéreo 25,6%. Somente na Europa, o tráfego aéreo viu um aumento de 73% no mesmo período e a Comissão Europeia prevê crescimento de 112% até 2012. O comércio marítimo passou de 2,5 bilhões de toneladas em 1970 para 6,1 bilhões em 2003. Mantida esta lógica, a estimativa é que, em relação a 2002, o consumo de energia terá aumentado 60% em 2030.
Combustíveis fósseis não renováveis – petróleo, gás e carvão – são as principais fontes de energia utilizadas atualmente, correspondendo a 80% do consumo mundial, proporção que, segundo as estimativas da Agência Internacional de Energia (AIE), continuará a mesma em 2030. Os dados de 2006 indicam que o petróleo corresponde a 35% do total utilizado, o carvão 23% e o gás 21%. Dos 48 países produtores de petróleo, 33 apresentam uma redução de produção. Os EUA, consumidores de 25% do petróleo mundial, não possuem mais do que 3% das reservas conhecidas. Enquanto na década de 1950 o país era autossuficiente na utilização do recurso, em 2007 ele importou 75% do que consumiu.
Enquanto o petróleo corresponde a uma das principais fontes de energia para o transporte e o aquecimento na produção de eletricidade, as outras duas fontes são mais importantes, o carvão representando 39% da produção mundial (na China, 67%) e o gás 20%. As previsões são de que o consumo mundial de energia elétrica, que em 2000 era de 14.767.750 kW, mantidos o modelo de consumo e o desenvolvimento, necessitará de 26.018.000 kW em 2025. Complementando a lista de fontes de energia utilizadas no mundo, aparece o urânio, que responde por 16% do total (na França esta fonte respondia, em 2006, por 76% da energia consumida).
A crise climática e o aquecimento do planeta
“A crise climática é claramente o resultado da atividade humana.” Houtart baseia esta afirmação nos estudos desenvolvidos pelo Grupo Intergovernamental sobre a Evolução do Clima (GIEC), da ONU (amplamente citado no livro), cujas pesquisas asseguram em 90% a influência do homem nas transformações climáticas. Influência só recentemente aceita de maneira mais ampla. O autor restitui o processo de aceitação do problema, que o discurso neoliberal tentou negar, em princípio pelo ceticismo e em seguida por meio da deslegitimação científica, até a fase atual, em que, dada a impossibilidade de negar os efeitos das mudanças climáticas, uma nova etapa do discurso se configurou nas “soluções pelo mercado” como saída para a crise.
O problema do aquecimento global não está ligado unicamente à questão da energia. A pecuária responde por 37% das emissões de metano, gás cujo efeito danoso é 23 vezes maior que o do carbono. Junta-se a isso o enfraquecimento dos chamados poços de carbono, as florestas e oceanos com sua capacidade de eliminação de carbono. Segundo os estudos citados pelo autor, se “desde 2002 a taxa de CO2 aumentou em 35%, a metade se deve ao uso de combustíveis fósseis e a outra metade ao declínio da capacidade de absorção das florestas e oceanos”. A destruição de 20% da Amazônia brasileira, entre 1960 e 2005, equivale a 1,5 bilhão de toneladas adicionais de gás carbônico na atmosfera a cada ano. “Entre as causas principais, vem em primeiro lugar a extensão das monoculturas de soja para a alimentação humana e animal”, seguida pela produção de eucaliptos e pela pecuária. As queimadas representam a maior parte da poluição produzida no país, que assumiu a posição de quarto maior emissor de gás de efeito estufa do mundo.
Houtart analisa, num segundo momento de sua obra, a importância que a agroenergia e, mais precisamente, os agrocombustíveis desempenham como possíveis substitutos das fontes não renováveis de energia e para o aquecimento global. Lembrando que as energias fósseis correspondem hoje a 80% da produção de energia, ele delimita o problema lembrando que a agroenergia “representará somente 2% do consumo em 2012 e poderá chegar a 7% em 2030”, e prossegue afirmando que, “mesmo se toda a superfície cultivável da Terra fosse consagrada à produção de energia, ela produziria o equivalente a 1,4 bilhões de litros de petróleo. Ora, as necessidades atuais são de 3,5 bilhões e aumentam sem cessar”.
Desenvolvendo o assunto, ele nos apresenta um estudo das formas de produção de agroenergia utilizadas atualmente, sobretudo as de primeira geração centradas no etanol e no agrodiesel. Inserindo em sua interpretação o que a teoria econômica chama de “externalidades”, fatores não levados em conta no modo de operação do sistema econômico enquanto estes não “comprometerem o processo de acumulação do capital”, Houtart aborda as consequências sociais e ambientais desse modelo em seus diversos aspectos e particularidades, num conjunto de países e regiões, tais como o Brasil, com a produção de cana-de-açúcar, soja e eucalipto (cuja utilização se insere nas fontes de segunda geração), a Colômbia, que utiliza a palma africana, a África, com o pinhão-manso (Jatropha curcas), e a Ásia – especificamente a Malásia e a Indonésia –, onde é produzido o óleo de palma. A descrição e a interpretação desses processos evidenciam uma lógica de “capitalismo agrário”, apresentando inúmeros efeitos sobre a água, o solo, o meio ambiente, a crise alimentar, a violência e a concentração de terras.
“Uma energia mais limpa significa novas tecnologias e possibilidades ampliadas de ganhar dinheiro”, afirma o editorial da revista inglesa The Economist, numa citação utilizada no livro. Apresentando exemplos da colaboração de Estados e poderes públicos, da importância e controle de grandes empresas, da exploração do trabalho, da reprodução das desigualdades entre os países ricos e os países pobres, da especulação, a totalidade das relações econômicas e políticas envolvendo a produção dos agrocombustíveis é analisada em suas inter-relações. Assim, “podemos concluir do conjunto das considerações que a função do desenvolvimento dos agrocombustíveis é a do lucro rápido, fonte segura de acumulação a curto prazo”. Como resposta para as crises energéticas e ambientais, tal sistema representa “uma contribuição nula ou fraca para a solução do problema do clima e somente uma contribuição marginal ao consumo de combustíveis. Somente uma produção massiva cobrindo centenas de milhões de hectares poderia significar uma contribuição substancial para a solução da crise energética”.
François Houtart tem uma larga trajetória como teólogo e sociólogo. Numa estreita relação com diversos povos do mundo, em especial da América Latina, onde esteve associado à Teologia da Libertação, da África e da Ásia, em seus mais de 80 anos de vida, ele desenvolveu uma extensa reflexão sobre os processos históricos e sociais. Sua reflexão se caracteriza por um profundo humanismo, que dá às páginas de seu livro a força do testemunho de alguém que luta pela vida. Ele nos apresenta “pistas de soluções” para as crises que vivemos: redução do consumo de energias fósseis, utilização de outras fontes de energia, como a hidroenergia, a energia solar, a eólica e a geotérmica, mas isso tudo num quadro de pós-capitalismo, priorizando o valor de uso sobre o valor de troca, uma generalização da democracia e da multiculturalidade. E conclui: “A solução para a dupla crise da energia e do clima se encontra numa visão global de mudança de civilização, e não somente num conjunto de soluções técnicas. É somente a este preço que a humanidade poderá se engajar em uma via que permita sua sobrevivência”.
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*(Envolverde/MST)
Fonte: Mercado ético online, 08/04/2010
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