Rubem Alves*
Ao meu amigo querido Aharon Sapsegian
Um lixeiro bateu à minha porta para me desejar uma “Feliz Páscoa”, na esperança de que minha resposta seria uma nota de dez reais. Aí, só de maldade, eu disse: “Lhe dou se você me disser o que é Páscoa”. Ele não hesitou, sabia muito bem o que era Páscoa: “Páscoa, doutor, é aquele dia quando a gente come ovos de chocolate...” Dei-lhe os dez reais.
Todo mundo concorda com o lixeiro. Todo mundo sabe que Páscoa é dia de comer ovos de chocolate e é isso que ensinamos aos nossos filhos. Por isso os pais amorosos preparam a brincadeira da caça aos ovos previamente escondidos. Nos meus trajetos pelas ruas de Campinas passo em frente a uma loja onde está anunciado, com letras grandes, numa faixa: “Páscoa é aqui, no ‘Chocolate Feliz’”. O nome da loja está errado. Não pode ser “Chocolate Feliz”. Porque não conheço chocolate que seja feliz. O nome certo deveria ser “Chocolate traz felicidade”. Então, basta comer o chocolate para ficar feliz. Chocolate é sacramento, é comida sagrada. Essa, então, é a conclusão universal que ninguém contesta: Páscoa é dia sagrado de comer ovos de chocolate. A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade veio ao mundo e morreu para ensinar os seres humanos a se salvarem comendo ovos de chocolate. Comendo ovos de chocolate anunciamos que participamos do mistério da fé. Na última ceia Jesus partiu o pão, serviu o vinho e, de sobremesa, distribuiu ovos de chocolate...
Isso o lixeiro e todo mundo entende. Mas se eu disser ao lixeiro que Páscoa é dia de poesia ele não entenderia. A poesia se faz com metáforas; não se faz com a verdade. As metáforas são mentirosas, por oposição ao chocolate que é sempre verdadeiro. Chocolate é chocolate e fim de papo. Mas uma metáfora nunca é a coisa que ela diz. É sempre uma outra coisa. O carteiro, amigo do Neruda, disse: “Sou um barco batido pelas ondas.” Mentira. Ele era um carteiro. Não era um barco batido pelas ondas. Nenhuma pessoa, jamais, foi um barco batido pelas ondas. No entanto qualquer pessoa sabe o que o carteiro queria dizer. Sabe, porque todos nós nos sentimos, por vezes, como barcos batidos pelas ondas. Esse sentimento, entretanto, não pode ser dito em linguagem literal. A poesia é a linguagem das coisas que não podem ser ditas. O poeta diz a sua própria experiência. Mas esta fala, nascida dos seus sentimentos, individuais, têm um poder de reverberação. Ao bater em nós — como o repicar de um sino, ao longe — o corpo estremece emocionalmente. Esse estremecer é a prova de que o poeta, dizendo o absolutamente particular, disse o absolutamente universal.
A Páscoa é um poema. É uma metáfora do nosso destino, diante da Morte: um túmulo vazio. Que pai ou mãe contará para o filho pequeno a estória de um túmulo vazio? Poderia começar falando sobre a segunda lei da termodinâmica. Não é difícil. Basta dizer que o destino do universo é o mesmo destino de uma vela acesa: a vela se apagará; o universo também. Isaac Asimov, escritor de ficção científica, escreveu um conto fantástico sobre esse momento terrível. No fim dos tempos as estrelas — velas que iluminam o universo — uma a uma se apagarão e o universo morrerá.
Isso me dá uma grande tristeza. Para dizer a verdade, não me importo muito com a minha eternidade. Mas pensar que o universo vai morrer, isso é muito triste. Adeus barcos, gaivotas, árvores, pássaros, animais, plantas, crianças, música, amizade, comida, abraços e beijos: tudo se apagará, para sempre.
Pois a metáfora da Ressurreição diz que a verdade é o contrário: da morte surgirá à vida. Essa afirmação poética está contida na estranha metáfora de um homem que, havendo descido à sepultura, voltou a viver. A semente é enterrada. Se continuar como sempre foi, morrerá. Mas se morrer, brotará como árvore.
Então, quando alguém lhe oferecer um ovo de chocolate, ofereça-lhe em troca uma semente com as palavras: Todo túmulo é um canteiro.
____________________________________
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 04/04/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário