domingo, 25 de abril de 2010

Cremação

Rubem Alves*

“Cada hora, de cada dia,
a gente aprende uma qualidade nova
de medo...” (Guimarães Rosa)

Kierkegaard, o primeiro filósofo que li — eu era ainda adolescente, — escreveu que uma pessoa que pensa sobre as coisas humanas tem a obrigação de informar seus leitores sobre a sua idade, porque os pensamentos que temos à luz das manhãs não são os mesmos pensamentos que temos sob a luz do crepúsculo. Há os pensamentos matutinos brincalhões, e os pensamentos crepusculares, belos mas tristonhos. Perigosos, porque podem se transformar em depressão.

Mestre na arte de rir da tristeza foi aquele poeta que morreu menino, Mário Quintana. Nem a morte podia com ele... Ele ria dela. Receita para deprimido: leia Mário Quintana.

Também o Riobaldo, que conhecia o coração de Deus. “O que Deus quer”, ele disse, “é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre no meio da tristeza!”

Pois eu vou por riso em coisa que me dá medo...

A conversa poderia ter acontecido assim:

Eu: “Aí é da empresa comercial que crema corpos mortos?

Do outro lado da linha: “Sim. Cremar corpos mortos é o nosso negócio.”

Eu: “Quanto custa cremar um morto?”

Do outro lado da linha: “Depende. Os preços vão de trezentos a dez mil reais.”

Eu: “Qual é a diferença entre a cremação de trezentos reais e a de dez mil reais? O serviço de dez mil reais deixa os mortos mais bem cremados?”

De outro lado da linha: “Não. Todos ficam igualmente bem cremados. A diferença está na roupa em que os mortos são levados para o forno.”

Eu: “Roupa? Não sabia que a roupa de um morto fazia diferença...”

Do outro lado da linha: “Ah! Perdão... É preciso explicar. A roupa de um morto a ser cremado é o ataúde. Há os ataúdes de pobre e os ataúdes de ricos.

Eu: Mas que diferença isso faz, para o morto?”

Do outro lado da linha: “Nenhuma diferença para o morto. Mas faz diferença para os vivos. Os vivos usam seus defuntos para exibir a sua riqueza”

Eu: “Posso deixar os serviços pagos adiantadamente?”

Do outro lado da linha: “Não. Terá de ser pago na ocasião.”

Eu: Obrigado por suas informações precisas. Eu as transmitirei aos meus filhos porque o morto a ser cremado sou eu .”

Do outro lado da linha: “O senhor faz muito bem em pensar na sua morte com antecedência. O senhor poderá morrer logo após desligar o telefone.”

Assim se encerrou uma conversa que poderia ter acontecido. A que aconteceu de verdade foi diferente.

Atendeu-me uma pessoa de voz aveludada. Tenho a impressão de que ao fundo se ouvia o Panis Angélicus. Era uma voz consoladora. Não usou a palavra “morte” nem uma vez. Ninguém quer morrer. Ele se valia de eufemismos. Eufemismo é quando se usa a palavra “mel” para falar de “fel”. Eis aí, professores, uma forma fácil de explicar às crianças o que é eufemismo. Os americanos não dizem “ele morreu”. Dizem “he passed away...” Partiu de viagem para uma terra distante...

O homem de voz aveludada dizia: “Quando essa pessoa vier a faltar...” É assim também que falam os que vendem seguros de vida: “Quando o senhor vier a faltar...” Ele sabe que se disser “quando o senhor morrer” é possível que o cliente leve um susto e não faça o seguro. Quem faz seguro não acredita que vai morrer.

Aí ele delicadamente me perguntou sobre a minha relação com essa pessoa que, infelizmente, iria faltar. Disse-lhe que era uma relação muito íntima: eu mesmo era a pessoa a ser cremada. Essa resposta foi-lhe inesperada e ele tratou de me aconselhar a não pensar na morte. “O senhor não devia pensar nisso. Certamente o senhor tem ainda muitos anos de vida pela frente...” Ele falava assim porque esse fôra o catecismo que lhe ensinaram.

Mas agora estou com medo de ser cremado. Eu pensava que na cremação os amigos ficavam à espera de que as chamas fizessem o seu trabalho ouvindo Bach, como no filme Kolya ou, quem sabe, a Dança Ritual do Fogo de Manuel de Falla. Mas me disseram que as cremações não são feitas no varejo, uma de cada vez. São feitas no atacado. É muito caro acender o forno. Os cremantes ficam guardados numa geladeira até que se complete o número mínimo para que o forno seja aceso. Não gosto da ideia. Vão misturar minhas cinzas. Depois, na ressurreição do último dia pode ser que partes do meu corpo sejam colocadas no corpo de um outro e que partes do corpo de um outro sejam colocadas em mim... Aí eu vou pensar que sou ele e ele vai pensar que é eu...

PS: Mas eu não confessei a razão por que quero ser cremado. A idéia de estar trancado num caixão sem janelas me é insuportável. Sei que estarei morto e portanto nada sentirei. Mas agora, quando penso no caixão fechado, eu estou vivo: preciso de espaço, preciso de vento. Cremado, minhas cinzas serão soltas, livres, ou no alto de uma montanha, como a Pedra Branca de Pocinhos, de altura de urubu não ir, como disse o Riobaldo, ou nas águas de uma cachoeira na Serra da Canastra, navegando em busca do mar sem fim.
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 25/04/2010

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