Ministro deixa a Presidência do STF
com o histórico de pautar assuntos de grande repercussão e
de não fugir dos “confrontos”
Mato-grossense formado pela Universidade de Brasília, Gilmar Mendes encerra um dos períodos mais polêmicos de sua história profissional. Deixa amanhã a presidência do Supremo Tribunal Federal, passando a função ao ministro Cezar Peluso. Foram dois anos de embates, discursos afiados e realizações. Alvo de críticas por falar “fora dos autos”, a gestão de Mendes de uma coisa não pode ser acusada: a de se esquivar de julgamentos controversos. Mendes colocou na pauta assuntos que levaram a mais alta esfera do Judiciário a uma exposição inédita na sociedade, como a fidelidade partidária e pesquisas com células-tronco. Não nega que um dos momentos mais difíceis da gestão foi o habeas corpus do empresário Daniel Dantas, em meio à Operação Satiagraha. Mendes concedeu a liberdade ao banqueiro, contrariando as atuações da Policia Federal, do Ministério Público e do juiz Fausto de Sanctis. “Quem tentou inventar um Estado de jabuticabas se deu mal. Ali, vimos uma clara opção por parte do Ministério Público Federal, Polícia Federal e magistratura de confronto com o Supremo. Mas foi um momento superado galhardamente”, destacou, em entrevista exclusiva ao Correio. Com a transferência do cargo, Mendes passa para Cezar Peluso a relatoria de outro caso polêmico: o pedido de intervenção no Distrito Federal feito pela Procuradoria-Geral da República. “São temas, em geral, complexos, que demandam cuidado e sensibilidade política. O ideal é que a intervenção seja um instrumento que, tanto quanto possível, estimule os segmentos envolvidos e os demais setores a se aproximarem da Constituição. É por isso que estamos pedindo todas as informações e tomando as cautelas necessárias”, informou Mendes. Torcedor fervoroso do Santos, Mendes descontrai ao falar dos planos futuros, despistando qualquer intenção de seguir outros rumos fora do Judiciário, como a política. “Por enquanto, vou continuar agitando por aqui mesmo, nesses temas importantes. Depois, quem sabe, começo a pensar em participar da direção do Santos”, brinca, ao encerrar a entrevista.
O habeas corpus de Daniel Dantas foi um momento difícil. Não fui eu que escolhi o enfrentamento, mas era preciso reagir. Quem tentou inventar um estado de direito de jabuticabas se deu mal
O que foi possível concretizar nesses dois anos na presidência do STF e do CNJ?
Foram dois anos de intenso trabalho, com a aplicação de medidas importantes de modernização do andamento dos processos. Aprovamos diversas súmulas vinculantes, demos prioridade aos processos de repercussão, abrindo caminho para a conclusão de centenas de milhares de casos que estão na escada judiciária. E, assim, reduzimos o número de distribuição de processos vindos de outros tribunais para o STF. Pela primeira vez em 10 anos, temos um estoque abaixo dos 100 mil. A média anual de distribuição era de 10 mil processos por ministro. Hoje, está entre 3 e 4 mil, graças ao mecanismo de racionalização que adotamos. Assim, o tribunal está se aproximando de uma Corte Constitucional.
O senhor já declarou que em certos momentos os confrontos se fazem necessários. Quais foram esses momentos na sua gestão?
O episódio do habeas corpus de Daniel Dantas foi um momento difícil que superamos galhardamente. Ali, houve uma segunda ordem de prisão e uma segunda ordem de soltura do STF. Vimos uma opção clara feita por parte da magistratura, Ministério Público Federal e Polícia Federal de confronto com o Supremo. Não fui eu que escolhi o enfrentamento, mas era preciso reagir. Quem tentou inventar um estado de direito de jabuticabas se deu mal.
Bem, jabuticaba é fruta que só dá no Brasil... O que o senhor chama de Estado jabuticaba?
Um estado em que a polícia e alguns agrupamentos do MP e juízes querem mandar no cenário institucional, determinar os que outros devem fazer. Esse modelo foi vencido de forma clara nesse episódio. Ganhou a democracia, o estado de direito.
Um dos desdobramentos da polêmica da Operação Satiagraha foi a sua denúncia de que estaria sendo alvo de grampos telefônicos. Os grampos nunca apareceram. O senhor ainda está convencido de que aquilo existiu?
Não tenho dúvida de que havia um quadro de bagunça institucional, uma mistura de polícia, MP e juiz, num consórcio promíscuo. A gente não sabe tudo dessa história. Se não tivéssemos êxito em enfrentar isso, teríamos outras operações semelhantes. Tudo que já se revelou neste caso mostra o grau de desordem: delegado de polícia despachando com diretor da Abin, destacando funcionários de um órgão em operação de outro. Delegado sem registrar parte de investigação nos autos, guardando documento em casa. Falta de ordem completa. Era uma prática comum desse modelo de ação policial tentar chantagear os próprios magistrados. Já tínhamos antecedentes. Não me supreenderiam as tentativas de escutas telefônicas direcionadas a nós.
Ao fazer essas declarações, o senhor provoca reação indignada nas categorias que representam as instituições citadas de participar desse consórcio promíscuo. Como lida com esses manifestos?
Vejo-os de forma natural. Eles dizem que não houve combinação. Vejamos os fatos. A primeira ordem de soltura saiu do Supremo por volta das 23h, 23h30 de 10 de julho. Às 9h do dia seguinte ele foi libertado e intimado a comparecer à audiência às 14h e, nesse horário, ele já estava preso novamente, com um pedido da Polícia Federal longo e fundamentado, um parecer do Ministério Público e um longo despacho do juiz. Julguem as próprias pessoas. Se eles começaram a trabalhar a partir das 9h ... Basta isso, o resto a história dirá.
À frente do CNJ, o senhor conseguiu mobilizar o Judiciário no cumprimento da Meta 2. O resultado ficou a desejar?
Era necessária a articulação dos 91 tribunais do país, celebrar um pacto de equalização da prestação de serviço judicial. Estabelecemos 10 metas, a primeira de planejamento estratégico no mínimo quinquenal. E a Meta 2 foi a de julgar em 2009 todos os processos em estoque ajuizados até 31 de dezembro de 2005. De início pareceu utópico, mas depois vimos o bom resultado. Alguns tribunais cumpriram integralmente. A média nacional foi de 60%, o que é satisfatório. O mais importante é que conseguimos identificar as razões que emperravam os processos.
Que razões, por exemplo?
Alguns tribunais tiveram dificuldade de cumprir a Meta 2 por falta de recursos e meios, por exemplo, perícia nos casos de interesse das pessoas pobres, pagar perícia para exame de DNA. Há sobrecarga dos serviços de perícia. Alguns tribunais buscaram parcerias com outras instituições. Mas o cenário nos faz pensar na necessidade de se criar um fundo para subsidiar esse tipo de perícia. Um fundo público que garanta esse tipo de atividade.
Qual o principal problema do Judiciário?
Nas inspeções pelo CNJ percebemos nos tribunais estaduais um certo amor, vamos dizer, muito intenso, por parte deles no cuidado consigo mesmo e uma falta de percepção da necessidade de democratizar a alocação de recursos. Constatamos 30 servidores lotados em gabinetes de desembargador, enquanto faltam funcionários nas varas. Existe um estrangulamento na primeira instância, enquanto tribunais conseguem manter baixa taxa de congestionamento. Isso porque os juízes estão sobrecarregados. O primeiro grau está asfixiado. Também vimos gastos excessivos com hora extra e excesso de servidores em cargos de confiança. Há algo de errado. E concluímos que a eficiência não está relacionada diretamente à quantidade de verbas no orçamento. Os que têm mais recursos nem sempre são os que apresentam melhores resultados.
O que o senhor aponta de medida mais eficiente de sua gestão?
Considero como grande êxito os Mutirões Carcerários. Cerca de 20 mil pessoas foram libertadas, mais de 100 mil processos examinados. Instalamos varas de excecução penal virtuais para controle de penas, passamos a ter controle eletrônico da prisão provisória, evitando a situação canhestra de termos pessoas presas há 14 anos provisoriamente, como vimos no Ceará. Estamos discutindo com o governo a liberação de recursos para a construção de novos presídios. Enfim, mudamos o quadro de abandono que havia em relação à Justiça Criminal.
E o que o senhor deixa com a sensação de que poderia ter sido melhor?
Eu me esforcei no que diz respeito à política judicial em favor da criança e do adolescente. Desejava que isso ainda fosse maior. Nós nos posicionamos quando o Correio denunciou o problema da prostituição aqui na Rodoviária. É preciso ser mais enérgico ainda. O Judiciário e o Ministério Público têm a missão para a melhoria das políticas públicas na proteção a esses meninos e meninas que não são infratores mas estão em situação de risco.
Tivemos a tragédia em Luziânia, de um ex-presidiário pedófilo que matou jovens. Ele tinha sido beneficiado com a liberdade e reincidiu. O caso reabriu a polêmica sobre tais benefícios a condenados. Qual sua posição sobre essa discussão?
Não se deve atribuir ao benefício da progressão de pena a um condenado a reincidência do crime após ele ser libertado. Nada garante que um preso que cumpra a pena integralmente, digamos 30 anos, não vá cometer outro crime. Infelizmente, o problema está no desaparelhamento do sistema judicial para garantir o devido acompanhamento dos presos e dos beneficiados pela progressão. São necessárias equipes multidisciplinares para avaliar a condição do preso, para atestar precisamente se tem condições de ser libertado. É lamentável que venhamos discutir isso depois de uma tragédia.
_________________________________Reportagem de Samanta Sallum
Fonte: Correio Braziliense online, 22/04/2010
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