sábado, 24 de abril de 2010

Na tragédia, uma estética do sublime

EDUARDO VIEIRA DA CUNHA*


Atentados, terremotos e erupções vulcânicas criam imagens, objetos e ruínas que nos lembram das forças de destruição latentes sob a sensação de segurança produzida pela tecnologiaEpisódios trágicos como a erupção do vulcão Eyjafjallajökull na Islândia e as chuvas que assolaram o Rio de Janeiro, assim que passam, deixam como resultado uma ruína que vem se somar a uma série de outras ruínas de outras tragédias recentes: as do atentado de 11 de Setembro nos Estados Unidos, a da inundação de Nova Orleans no ano passado e a do terremoto do Haiti no início deste ano. São ruínas do presente, e não do passado, mas que trazem como as de tempos distantes um elemento comum: uma incompreensível beleza que vem da tragédia. E que nos lembram que a segurança trazida pela sociedade tecnológica é também acompanhada por uma força de destruição cada vez mais intensa.

Mas parece que assim que são retirados os restos mortais, a ruína é liberada para ser admirada, consumida como um prato frio pelas revistas semanais e até mesmo pelo trabalho de artistas. O que é curioso é que esse tempo encurta cada vez mais. Os atentados de 11 de Setembro, por exemplo, tiveram um período de latência para que pudessem passar a ser vistos como portadores de uma beleza estética. Fotos liberadas recentemente, e que estiveram proibidas à mídia e ao grande público por um período, reaparecem, após o período de latência, com um novo e revigorado estatuto, o da estética do sublime.

O sublime tem a origem no trágico, no patético. Vem do latim sublimis, que quer dizer elevado. O adjetivo qualifica as formas de sacrifício, da abnegação e do heroísmo humano quando enfrenta os perigos incontroláveis da natureza. Por isso, a erupção de um vulcão, ou um terremoto, ou uma tempestade possuem uma estética do sublime: diante da força, há uma possibilidade de retomada da vida.

Nossos sentimentos são ambíguos em relação aos restos da destruição contemporâneos: de um lado o horror da destruição, da perda de vidas. De outro a curiosidade pelas pequenas histórias de heroísmo, de sublimação. Isso é utilizado pela arte. Principalmente pela fotografia, cada vez mais presente na arte contemporânea. Haveria alguma coisa de sublime na própria fotografia como linguagem que a fizesse ser um meio privilegiado na escolha dos artistas para fixar essas ruínas contemporâneas para a eternidade? Como é possível que a ruína aquela que enaltece o poder de destruição do homem diante da natureza, nos produza um prazer?

Hoje a ruína está cada vez mais presente em forma de fotografia, seja nas paredes dos museus e galerias, seja nos livros de artistas. Que perversidade é essa, que nos traz satisfação ao contemplar a destruição? Há pouco tempo, uma das principais revistas americanas ofereceu uma boa quantia em dinheiro ao artista plástico Andrés Serrano, para que ele realizasse um ensaio fotográfico na New Orleans destruída pelas águas. O artista recusou, alegando razões éticas. Vejamos aí como essas questões de mercado de arte e de tragédia, de ruína contemporânea, de sublime e de ética estão próximas.

Na verdade, a ruína representa transformação, da presença do passado e da possibilidade de reconstrução. A ruína, ensina-nos alguns autores como Rosa Olivares, é uma categoria simbólica que vem do Renascimento. O homem do Renascimento tinha a plena consciência que estava vivendo em um período de esplendor. Por isso, voltava-se ao passado, à Roma e Atenas, que ficaram como ruínas. A ruína representa uma associação entre presente e passado gloriosos. Mas ela é essencialmente bipolar: ela simboliza na filosofia e na literatura tanto aspectos nobres de transformação e de melhora, de renovação, como de destruição e de tragédia irremediáveis. A tecnologia ajuda a construir prédios cada vez mais altos, verticais. Mas as forças descontroladas da natureza (ou do próprio homem) estão aí para lembrar que tudo pode voltar ao que era antes: o plano horizontal.

Será essa bipolaridade o elemento que permite que, no terreno da imagem, não só na fotografia, como também na escultura, transformar a ruína como uma chave para processar nossas contradições mais internas, mas ocultas? Talvez seja porque o artista tem muito pouco controle sobre o processo em que se engaja na construção de coisas, de imagens, assim como tem pouco controle sobre o seu próprio destino. Ao enfrentar inúmeros obstáculos, a figura da criação aparece ao artista como um caminho descendente onde a realidade pode ser alcançada somente através de atos de destruição: martelar, serrar, cortar. São instrumentos que o artista utiliza em uma guerra particular, cujo objetivo é a liberdade, e o preço a pagar é a ruína. O artista é o vanguardista de seu próprio campo de batalha, um operário demolidor de seu próprio canteiro de obras. Destruir para criar.

Mas voltando à tragédia da atualidade: talvez não se trate apenas do sentimento de compaixão, ou de um desvio marcado pelo prazer da tragédia o que tanto fascina nessa estética das ruínas contemporâneas. Talvez a ruína nos ensine algumas coisas, além na reflexão sobre descontrole desenfreado da tecnologia: a possibilidade de uma reconstrução, a aceitação de um processo de envelhecimento, e principalmente nos ensine uma possibilidade simbólica de processar contradições eternas do ser humano.
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* Artista plástico e professor do Instituto de Artes da UFRGS
Fonte: Zero Hora online, 24/04/2010

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