domingo, 18 de abril de 2010

Eu a desapontei...

Rubem Alves*
No seu livro Primeiros Cadernos Albert Camus escreveu: “E hoje não conheço maior glória que viver só e ignorado.” Acho a palavra “glória” excessiva. Eu diria: felicidade. Na palavra “glória” há uma dose de narcisismo, rabo de pavão. “Glória” não pode ser modesta. “Glória” me parece mais um atributo dos deuses. Já “felicidade” pode acontecer na solidão e no ser ignorado. Quando eu era ignorado, quando ninguém sabia o meu nome, eu era feliz...

Eu era professor na Fafi — Faculdade de Filosofia Ciências e Letras — de Rio Claro. Era um lugar acadêmico modesto, em nada comparável à “glória” que cercava o nome Unicamp. Era inevitável que os professores da Fafi, eu inclusive, sentíssemos uma pitada de inveja ao nos compararmos com nossos colegas gloriosos...

Faculdade do Interior... Era preciso pegar o trem da Paulista. Professor proletário... Mas havia uma vantagem que só descobri depois de havê-la perdido: o espaço humano da Fafi-Rio Claro era manso. Como se houvesse uma auréola de inocência em torno daquele lugar. Lá não era preciso estar em guarda. Não havia armadilhas pelo caminho.

Aprendi bem depois que o espaço humano da Unicamp era bélico. Eu não sabia que quando o poder está em jogo a mansidão e suas virtudes desaparecem.

Nietzsche já havia se dado conta disso. Nunca se deu bem com as astúcias acadêmicas. Por isso quando escrevia sobre a universidade e a vida acadêmica suas palavras se transformavam em martelos: “Eles se vigiam uns aos outros com desconfiança. Inventivos em espertezas pequenas, eles esperam por aqueles cujo conhecimento anda com pés aleijados: como aranhas eles esperam. Eu sempre os tenho visto cuidadosamente preparando veneno; e eles sempre usam luvas de vidro para fazê-lo. Eles também sabem como jogar com dados viciados; e eu os vi jogar com tanto empenho que chegavam a suar”.

Mas eu não sabia disso, não sabia o quanto eu era feliz. Viajava de trem e era divertido e mesmo instrutivo. Eu, sozinho, era “todo ouvidos”, ouvindo as conversas dos professores primários que iam pingando nas pequenas estações. Em três anos de escuta silenciosa aprendi muito sobre a sua alma.

Fofocas... As fofocas acontecem quando duas pessoas que vivem no mesmo mundo se assentam juntas. Essas pessoas têm figurinhas a trocar. Wittgenstein, um dos meus filósofos favoritos, mostrou que,quando falamos estamos envolvidos naquilo que ele denominou de “jogos de linguagem”, que muito se parecem com jogos de baralho. As mesmas cartas, tantos jogos diferentes. As mesmas palavras, tantos jogos diferentes... A fofoca é um desses jogos. Durante três anos ouvi tudo sobre as escolas, sobre a vida das diretoras (sempre odiadas), sobre os casos amorosos. Só nada ouvi sobre os alunos e a educação. Os alunos e a educação não eram cartas do jogo que os professores jogavam.

De vez em quando eu não ia de trem; ia de carro. Quando isso acontecia eu tinha companhia: uma aluna sorridente e bonita ia comigo, de carona. E assim foi. Passados muitos anos encontrei-me com ela e o seu marido. Ela então, protegida pela liberdade que a idade concede, resolveu fazer-me uma confissão. “— Sabe, Rubem, só nós dois no carro... Era inevitável que eu fizesse fantasias sobre aquilo que você poderia fazer comigo... Até que chegou o dia (temido? desejado?). Sem nenhuma razão aparente você freou o carro e o levou para o acostamento. Pensei: É agora. E me preparei. Você abriu a porta do carro, saiu e me disse: ‘Veja como está lindo aquele ipê amarelo florido...’”

Fiquei com vergonha e arrependido... Agora, passados muitos anos, só me resta rir da minha inocência...
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 18/04/2010

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