Em entrevista a ÉPOCA,
o escritor britânico Neil Gaiman fala sobre a fama,
a obsessão por temas sobrenaturais e
o romance "O livro do cemitério",
recém-lançado no Brasil
Depois de escapar do assassino que matou toda sua família, o bebê Ninguém Owens foge para um cemitério próximo à sua casa. É encontrado por um casal de fantasmas, que passa a educá-lo e protegê-lo enquanto ele prepara sua vingança. A história normalmente passaria longe de qualquer livro infantil – a não ser que o autor seja Neil Gaiman. Aos 49 anos, após uma carreira de grande sucesso como roteirista de quadrinhos, o escritor britânico tornou-se uma espécie de “astro do rock” na literatura. Além de conquistar a crítica, que concedeu prêmios importantes como o Hugo e o Nebula aos seus livros, o autor acostumou-se a atrair multidões de fãs - tanto pessoalmente, em eventos e noites de autógrafos, como na internet, em seu blog e em seu perfil no Twitter. Em entrevista a ÉPOCA, Gaiman fala sobre a fama, a obsessão por temas sobrenaturais e o romance O livro do cemitério, recém-lançado no Brasil.
ÉPOCA – Ao contrário do Livro do cemitério, a maioria dos livros infantis evita abordar temas como a morte. Você considera isso um erro?
Gaiman – Eu acho que as crianças têm fascínio pela morte – eu sei que eu tinha. E elas também são fascinadas por cemitérios. Elas olham para os cemitérios e ficam imaginando o que acontece ali. Eu quis escrever um livro para entender esse olhar. Falar sobre a morte é uma maneira de falar sobre a vida, sobre o que é a infância.
ÉPOCA – Você disse que tinha fascínio pela morte quando era criança. Como esse interesse começou?
Gaiman – Eu lembro que havia um belo cemitério na rua da minha casa. Quando eu era criança, as pessoas diziam que havia bruxas enterradas lá. Elas tinham sido queimadas vivas. Depois, quando me tornei adulto, voltei para lá e descobri que elas haviam sido queimadas porque eram prostitutas, e não bruxas. Fiquei muito desapontado, sempre acreditei que eram bruxas.
ÉPOCA – Há elementos da sua própria infância no Livro do cemitério?
Gaiman – Sim, claro! Sempre me inspiro na minha vida e na minha infância. Eu coloquei meu cemitério favorito no livro.
ÉPOCA – Deve ter sido uma infância diferente: poucas crianças têm um cemitério favorito...
Gaiman – É mesmo? (Risos) Esse é um assunto interessante. Uma das coisas que me inspiraram a escrever o livro foi um documentário sobre a Argentina na ditadura militar. E havia uma mulher que dizia que na época em que era criança, a polícia invadiu a casa dela para prender sua família e ela fugiu para um cemitério, com ajuda de pessoas de lá. Ela passou uma boa parte da vida ali. Para ela, era um lugar muito seguro – e eu percebi que aquilo era verdade: num cemitério, as únicas pessoas que podem te machucar são os vivos. Isso me deu a ideia para o começo do livro, quando a criança foge para o cemitério. É um lugar seguro.
ÉPOCA – A vingança também é um tema central do livro. Você acredita que esse é um conceito natural para crianças?
Gaiman – É só conversar com uma professora de jardim da infância para ver que as crianças são naturalmente vingativas. (Risos) É fascinante ver o que elas fazem para se vingar. É algo importante na vida delas.
ÉPOCA – Seu livro pode ser lido como um romance de formação, um livro sobre a passagem da infância para a vida adulta. Você acha que essa passagem exige que a criança aprenda a lidar com a morte?
Gaiman – Acho que não. Uma pessoa pode passar a vida inteira sem aprender a lidar com a morte, ou pelo menos a infância inteira. Mas um livro não é necessariamente sobre como as uma criança aprende sobre a morte, mas sim sobre como ela aprende sobre a vida. Em um lugar bastante estranho, no caso do meu livro (risos).
ÉPOCA – Você também se inspirou nos seus filhos?
Gaiman – Sim, muito. Na verdade toda a história começou com o meu filho Mike, que hoje tem 26 anos e é programador do Google. Nós vivíamos em uma casa não muito grande, sem muito espaço para brincar. Ele queria andar de triciclo, mas não tínhamos jardim. Como morávamos perto do cemitério, quando ele precisava de um lugar para andar de triciclo, sempre íamos para lá. Vê-lo brincando lá me deu a ideia de escrever o livro.
ÉPOCA – Era o cemitério favorito dele também?
Gaiman – Não sei nem se ele via dessa forma, para ele era um lugar onde ele brincava. Era tranquilo, grande, e ele podia andar de triciclo à vontade. Eu olhava para ele brincando, feliz no cemitério, e então pensei em juntar isso com o Livro da selva, do Rudyard Kipling, em que um garoto é criado por animais da floresta.
ÉPOCA – Numa entrevista antiga você chegou a dizer que um dos seus motivos para preferir escrever histórias em quadrinhos era o fato de todo seu trabalho ser novo, pois não havia uma grande tradição no gênero. Agora que você é um romancista premiado, sua opinião mudou?
Gaiman – Nas histórias em quadrinhos, uma das coisas que mais me agradava era o fato de não ter de competir com Rudyard Kipling, Jorge Luis Borges, Gabriel García Marquez ou Jane Austen. Muitos autores já haviam escrito grandes romances, mas eu não precisava me preocupar com isso. Agora eu sinto que já escrevi meu nome na “parede” dos escritores. Posso não ter escrito em um lugar muito alto, ou com uma letra muito bonita, mas ele está lá. Eu não me sinto mais como se estivesse competindo. Também não me acho um romancista: há pessoas que são, e eu sou fã delas, mas eu prefiro me considerar um contador de histórias. Gosto de contar algo da melhor maneira possível – pode ser em forma de livro, quadrinhos, filmes, qualquer coisa.
ÉPOCA – Quando você tem uma ideia para uma história, como decide se vai ser um livro, uma revista em quadrinhos ou um filme?
Gaiman – Depende muito de como a história surge na minha cabeça. Se ela aparece na forma de cenas, é um filme; se há desenhos, mas eles não se movem, é uma história em quadrinhos. Se são só palavras, é um romance, ou um conto. Mas às vezes também me engano: tentei escrever Os filhos de Anansi como um filme, primeiro, mas acabou virando um livro.
ÉPOCA – E o que você acha dos filmes baseados em seus livros?
Gaiman – Eu sempre gosto. Coraline (2009) é o meu favorito, mas também gosto muito de Stardust (2007).
ÉPOCA – O livro do cemitério também vai virar filme?
Gaiman – Sim, o [diretor e roteirista] Neil Jordan está trabalhando no script.
ÉPOCA – Você tem alguma expectativa para o filme?
Gaiman – Eu procuro não criar expectativas para filmes. A minha única expectativa é que uma hora eles acabem sendo feitos (risos). Eu espero pelo melhor, mas me preparo para o pior.
ÉPOCA – Você já tem planos para o próximo livro – ou filme, ou história em quadrinhos?
Gaiman – Agora estou trabalhando em um filme baseado em Os filhos de Anansi. Depois, quando terminar, quero publicar um novo romance. Na verdade não é um romance, é um livro sobre minhas viagens para a China.
ÉPOCA – Será um livro de não-ficção?
Gaiman – A maior parte, sim. Eu quero fazer de tudo.
ÉPOCA – A impressão é que você parou de se preocupar com a competição. Escrever agora é uma diversão para você?
Gaiman – Já estou me divertindo há alguns anos. Acho que há dois jeitos de levar escritor. Um deles é levar uma vida de preocupações, encarar tudo como um trabalho e pensar no que agradaria o mercado. O outro é inventar histórias que te agradem e ver o que acontece. E eu tenho sorte, porque invento histórias que me agradam e elas também agradam outras pessoas.
ÉPOCA – Numa outra entrevista, há alguns anos, você disse que adorava o fato de não ser famoso. Depois disso você se tornou uma espécie de “astro do rock” na literatura...
Gaiman – É, agora sou famoso... (Risos)
ÉPOCA – Você já se acostumou com isso? O que mudou em sua vida?
Gaiman – Não, não me acostumei. Eu gosto de algumas coisas: há algumas semanas eu fui para Moscou pela primeira vez e havia multidões me esperando. Participei de grandes eventos e noites de autógrafos em lugares onde você não conseguia nem se mexer, havia pessoas até do lado de fora. Honestamente, isso tudo é muito divertido! Eu também gosto quando isso faz as pessoas felizes. Minha noiva diz que gosta quando vou com ela a uma festa, por exemplo, porque seus amigos ficam ansiosos para conhecer o Neil Gaiman. Eu nunca imaginaria isso, é algo que eu nunca teria percebido. O lado ruim é que sou uma pessoa muito reservada, fico facilmente envergonhado. Eu sou tímido. Gostava bastante de não ser famoso, viver num mundo em que não era conhecido. A revista Time acabou de divulgar uma lista prévia das 200 pessoas mais influentes do mundo, e eu estou nela! (Risos) Sério, eu não acho que eu seja uma das 200 pessoas mais influentes do mundo. Isso é muito estranho.
ÉPOCA – A fama influenciou o seu trabalho de alguma forma?
Gaiman – Eu espero que não. As pessoas falam muito sobre a fama, sobre coisas como prêmios literários, mas a verdade é que, no fim do dia, você é só uma pessoa com um papel em branco na sua frente. Isso nunca muda. O que importa o que você vai colocar naquela folha de papel.
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Reportagem:Danilo Venticinque
Fonte: Revista ÉPOCA online, acesso 18/04/2010
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