No futuro, controlaremos máquinas e resolveremos problemas de saúde
pelo comando da mente.
É o que diz o neurocientista Miguel Nicolelis
Inteligência natural: para Nicolelis,
as ligações entre cérebros e máquinas estão próximas
Crédito: Ricardo Corrêa
Há uma década, o nome de Miguel Nicolelis aparecia no topo da lista que descrevia as dez tecnologias que mudariam o mundo, publicada pelo MIT, o Massachusetts Institute of Technology, nos Estados Unidos, um dos centros de pesquisa mais respeitados do mundo. Seu trabalho afirmava que seres humanos poderiam controlar computadores, robôs e outros dispositivos artificiais utilizando apenas a força do pensamento. O mundo parou para escutá-lo: de grandes laboratórios a multinacionais como Microsoft e Apple, todos passaram a estudar as interfaces cérebro-máquina — uma ligação direta entre nossa mente e sistemas virtuais. Os desdobramentos do tema agora são reunidos pelo cientista no seu livro Beyond Boundaries: The New Neuroscience of Connecting Brains with Machines and How It Will Change Our Lives, que sai este mês nos Estados Unidos (por aqui chega em junho com o título Muito Além do Eu). Nele, Nicolelis discute como a ligação entre cérebro e máquina revolucionará a medicina e o modo como iremos nos relacionar. Para o cientista, a linguagem verbal deixará de ser a principal forma de comunicação. Todas as nossas interações, no futuro, serão guiadas pelos comandos da mente enviados às máquinas. É o que ele chama de “rede social de pensamentos”, a próxima grande forma de comunicação em massa. Confira em sua entrevista.
* O que é uma interface cérebro-máquina?
Miguel Nicolelis: Basicamente, é o envio de informações por pensamento. Transferimos o sinal elétrico do cérebro, codificado de forma digital, sem fio, para equipamentos adaptados para receber esse comando. Com essa união da mente a sistemas virtuais poderemos ter grandes avanços na medicina já nos próximos anos.
* Quais serão as aplicações?
Nicolelis: A curto prazo, a paralisia é nosso foco. Trabalhamos para fazer quadriplégicos andar usando uma espécie de esqueleto externo controlado pela mente. A estrutura se move obedecendo aos comandos da mente por meio de eletrodos implantados no cérebro, que transmitem informações para a máquina. A longo prazo, tentaremos encontrar formas de reduzir o processo neurodegenerativo, ou as lesões neuronais, para tratar mal de Parkinson, por exemplo. E, mais adiante, o foco será a melhora de funções cognitivas, não só motoras. Já há estudos de neuropróteses para pessoas que nunca enxergaram ou sofreram lesões severas da retina. Isso sem falar nos distúrbios psiquiátricos e cognitivos. Ainda não temos clareza de suas causas, mas a interface ajudará a entender como o cérebro cria modelos de realidade e como eles são corrompidos durante alguns distúrbios.
* A interação direta com as máquinas mudará o modo como nos comunicamos?
Nicolelis: Por completo. Daqui a décadas, ela permitirá usar sistemas computacionais e máquinas presentes no nosso dia a dia apenas com o pensamento. Internet, redes sociais e voz são interfaces lentas. Digitação e até mesmo a linguagem são imprecisas. Se você pudesse interagir com milhões de pessoas por pensamento ao mesmo tempo, aumentaria a velocidade da comunicação e essas interações seriam muito mais vívidas e reais. Não haveria interface entre você e máquina, seria uma interação quase que como uma fusão, um inconsciente coletivo, uma rede social feita apenas por pensamentos. A linguagem passa a se transformar num meio secundário de comunicação. Mas isso daqui a centenas e centenas de anos.
* No que resultará essa comunicação por pensamento?
Nicolelis: Se estabelecermos um modo de comunicação mais profundo e mais íntimo entre seres humanos, muitos preconceitos irão cair. As pessoas vão perceber que todos os nossos medos, angústias e delírios são muito parecidos, quase idênticos. Não à toa somos parte da mesma espécie. Quando eliminarmos as barreiras da linguagem, que é um filtro muito grande, vamos nos expressar de modo natural e nos conhecer melhor.
* Que mudanças aconteceriam em uma sociedade que se comunica assim?
Nicolelis: Essa tecnologia pode realmente libertar a percepção dos limites físicos do corpo. Com o cérebro, conseguiremos não só controlar os mais diferentes artefatos mecânicos, robóticos, virtuais, computacionais, mas também criar novos sentidos. É muito fácil iludir o cérebro em segundos, mudar nossa percepção sobre o próprio corpo e o mundo. Em um experimento feito com primatas, eles manipularam objetos e se comunicaram com macacos digitais, que na realidade não existiam, usando apenas comandos cerebrais transmitidos por eletrodos. Estudos como esse propõem que nossos conceitos de realidade e de corpo não passam de simulações que o cérebro faz. No momento em que conseguirmos fazer com que computadores e smartphones, por exemplo, interajam conosco de uma maneira mais natural, sem tantas barreiras, o sistema operacional do seu laptop e suas máquinas farão parte da sua realidade.
* Estamos próximos de controlar computadores com a força do pensamento?
Nicolelis: Sim. A ligação entre cérebro e máquina já está funcionando em experimentos com animais. Em nosso laboratório em Natal (RN), já testamos a recepção de sinais elétricos no cérebro de macacos. Também há exemplos com seres humanos, como a possibilidade de comandar um smartphone com o pensamento. Recentemente, foi apresentado em feiras de tecnologia um aplicativo de iPhone em que você usa sinais de eletroencefalograma para controlar os ícones dos telefones. Ainda é rústico, pois esse tipo de sinal é facilmente contaminado por interferências, mas já é um princípio. Grandes empresas como Apple, Google, Intel, Microsoft já estão com divisões ou grupos de cérebro-máquina para criar novas interfaces. Acredito que abandonaremos mouses e teclados em pouco tempo.
"Os experimentos cérebro-máquina
têm fortalecido a ideia de que há
uma grande democracia neural
em vez de algumas áreas dominando funções específicas,
como se defende."
* Nesse futuro, há risco de interferências de outras áreas da mente?
Nicolelis: Claro que há várias coisas acontecendo no cérebro ao mesmo tempo, mas há formas de isolar a atividade em que você está interessado, como a motora, que é a principal nos nossos estudos. Isso acontecerá do mesmo modo que fazemos hoje para nos concentrarmos em uma atividade. Mas ainda é preciso melhorar o método para retirar sinais elétricos do cérebro. As técnicas que estamos desenvolvendo para aplicação médica — no tratamento de paralisia a ideia é implantar eletrodos de mais de dois centímetros no cérebro — são invasivas. Ninguém implantará esses eletrodos para quaisquer fins cotidianos.
* O quanto o cérebro será determinante para o processo evolutivo?
Nicolelis: Começará a existir uma pressão seletiva no desenvolvimento da mente, já que ela terá o papel mais importante no novo modo de comunicação, pelo pensamento. Tudo leva a crer que as pessoas agirão e controlarão objetos à distância e quem vai ter o papel decisivo nessa interação com o ambiente é o cérebro. Com isso, você muda as pressões que vão selecionar a espécie e começa a mudar, a longo prazo, a própria espécie. Certos comportamentos terão muito mais relevância que outros: as ações físicas de nosso corpo, por exemplo, acabarão perdendo espaço para a comunicação feita por comandos mentais.
* Quais áreas do cérebro que serão determinantes nessa evolução?
Nicolelis: No livro, apresento um argumento contrário a esse que é um dos dogmas da neurociência: a existência de áreas específicas no cérebro para cada função. Acredito numa visão mais populacional, em que o cérebro participa como um todo do arcabouço comportamental. Os experimentos cérebro-máquina têm fortalecido a ideia de que há uma grande democracia neural em vez de algumas áreas dominando funções específicas, como se defende. Então, acredito que, nos próximos milhares de anos, a atividade cerebral do homem é o que será determinante para a evolução.
---------------------------Reportagem por Guilherme Pavarin
Fonte: Revista Galileu online, março/2011
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