domingo, 27 de março de 2011

Cioran: Do Inconveniente de ter nascido


Três horas da manhã. Apercebo-me deste segundo, e do que se lhe segue, faço o balanço de cada minuto.
Por que tudo isto? – Porque eu nasci.
Questionarmos o nascimento resulta de um tipo especial de vigílias.

“Desde que estou no mundo” – este desde parece-me carregado de um significado tão assustador que se torna insuportável.

Existe um conhecimento que retira peso e alcance ao que fazemos: para ele, tudo está desprovido de fundamento, à exceção de sei mesmo. Puro ao ponto de abominar a própria ideia de objetivo, ele traduz essa sabedoria extrema segundo a qual é indiferente praticar ou não praticar o ato, e que se faz acompanhar por uma satisfação também ela extrema: a de poder repetir, em todas as circunstâncias, que nenhum gesto que façamos justifica a nossa adesão a ele, que nada é valorizado por qualquer vestígio de substância, que a “realidade” é alçada da insensatez. Um tal conhecimento mereceria ser chamado póstumo; ele atua como se o conhecedor estivesse e não estivesse vivo, simultaneamente ser e recordação de ter sido. “É já passado”, diz ele de tudo o que realiza, no próprio instante do ato, que deste modo fica para sempre destituído de presente.

Podemos suportar qualquer verdade, por muito destrutiva que seja, na condição de que ela faça as vezes de um todo, de que ela contenha tanta vitalidade como a esperança que veio substituir.

Eu não faço nada, como é sabido. Mas vejo as horas passarem – o que é bem melhor do que tentar preenchê-las.

Existe um deus no início, ou pelo menos no fim, de qualquer alegria.

Não me sentindo nunca á vontade no imediato, apenas me seduz aquilo que me precede, aquilo que me afasta daqui, os instantes inumeráveis em que não existia: o não-nascido.

Com que direito se põem a rezar para mim? Não preciso de um intercessor, desvencilhar-me-ei sozinho. Talvez pudesse aceitar isso da parte de um miserável, mas nunca de outra pessoa, ainda que se tratasse de um santo. Não consigo tolerar que se inquietem com a minha salvação. Uma vez que a receio e fujo dela, nada é mais indiscreto do que as vossas orações! Tratai de as dirigir noutro sentido;para todos os efeitos, não estamos ao serviço dos mesmos deuses. Se os meus são importantes, tudo leva a crer que os vossos e não são menos. Supondo até que eles sejam como vós os imaginais, faltar-lhes ainda o poder de me curarem de um horror mais velho do que a minha memória.

Não há nada tão miserável como uma sensação! O próprio êxtase não passa, provavelmente, disso.

Desfazer, descriar, é a única tarefa a que o homem se pode dedicar, se ele aspira, como tudo indica, a distinguir-se do Criador.

Eu sei que o meu nascimento foi um acaso, um acidente risível, e contudo, assim que me esqueço disso, comporto-me como se ele fosse um acontecimento capital, indispensável ao progresso e ao equilíbrio do mundo.

Ter cometido todos os crimes, exceto o de ser pai.

Quando percebemos o fim no começo, andamos mais depressa do que o tempo. A iluminação, decepção fulminante, concede uma certeza que transforma o desiludido em liberto.

A minha capacidade de ser desiludido, ultrapassa o entendimento. É ela que me faz compreender Buda, mas é ela também que me impede de segui-lo.

Aquilo de que já não nos podemos apiedar, não conta nem existe já. Por aí se percebe a razão de o nosso passado deixar tão depressa de nos pertencer para se transformar em história, em algo que já nada tem a ver com ninguém.

No mais íntimo de nós mesmos, aspirarmos a ser tão despojados, tão lamentáveis como Deus.

O verdadeiro contato entre os seres apenas se estabelece através da presença muda, da aparente não-comunicação, da troca misteriosa e sem palavras que se assemelha á oração interior.

O que eu sei aos sessenta, sabia-o igualmente bem aos vinte. Quarenta anos de um longo, de um supérfluo trabalho de verificação...

Ao contrário de Jó, eu não amaldiçoei o dia do meu nascimento; os outros dias, em compensação, cobri-os todos de anátemas...

Se a morte apenas tivesse aspectos negativos, morrer seria um ato impraticável.

Tudo existe; nada existe. Uma e outra fórmula trazem-nos uma serenidade idêntica. O ansioso, para sua infelicidade, fica entre as duas, trêmulo e perplexo, sempre à mercê de um matiz, incapaz de se estabelecer na segurança do ser ou da ausência do ser.

Estar na vida – sou de repente fulminado pela estranheza desta expressão, como se ela não fosse aplicável a ninguém.

Gostaria de ser livre, desvairadamente livre. Livre como um nado-morto.

A obsessão do nascimento, ao transportar-nos para antes do nosso passado, faz-nos perder o gosto pelo futuro, pelo presente e até pelo passado.

Quando revemos alguém depois de muitos anos, devíamos sentar-nos um diante do outro e nada dizermos durante horas, para que graças ao silêncio a consternação se pudesse saborear a ela própria.

Atrai-me a filosofia hindu, cujo desígnio essencial é ultrapassar e eu; pois tudo o que faço e tudo o que penso se reduz ao eu e às desgraças do eu.

Pois todo o desassossego não passa de uma experiência metafísica abortada.

Quando gastamos o interesse que tínhamos pela morte, e nos convencemos de que já nada temos a extrair dela, debruçamo-nos sobre o nascimento, dispomo-nos a enfrentar um abismo igualmente inesgotável...

A clarividência é o único vício que nos torna livres – livres num deserto.

À medida que os anos passam, decresce o número daqueles com quem nos podíamos entender. Quando já não tivermos mais ninguém a quem nos dirigirmos, seremos finalmente tal como éramos antes de cairmos num nome.

É impossível aceitar ser julgado por alguém que sofreu menos do que nós. E como cada um de nós se julga um Jó desconhecido.

Sonho com um confessor ideal, a quem dissesse tudo, a quem revelasse tudo, sonho com um santo insensível.

O paraíso não era suportável, senão o primeiro homem ter-se-ia acomodado a ele; este mundo também está longe de o ser, porque nele lamentamos o paraíso ou gozamos antecipadamente um outro. Que fazer? Onde ir? Não façamos nada, nem tentemos ir a lado nenhum, muito simplesmente.

Alguns têm infelicidade, outros obsessões. Quais deles deveríamos lamentar mais?

O que é uma crucificação única quando comparada com aquela, quotidiana, que os insones tem de suportar?
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Excertos do livro: CIORAN, E.M. DO INCONVENINTE DE TER NASCIDO. Ed. Letra Livre, Lisboa, 2010, pp. 5-16

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