quinta-feira, 10 de março de 2011

A falsificação histórica de “O discurso do rei”

CHRISTOPHER HITCHENS*
Resvale a ponta do dedo no balão da obsessão por prêmios de Hollywood e ele pode explodir com rapidez gratificante, emitindo rajadas de narcisismo e megalomania. Desde que eu e mais um ou outro publicamos algumas críticas ao filme O discurso do rei, houve uma adorável reação de egos. Repórteres me contaram que o produtor Harvey Weinstein andava dizendo que todos que duvidavam da perfeição de sua última contribuição estavam em conluio com os realizadores de A rede social.

Depois, David Seidler, o roteirista do filme vencedor do Oscar, deu uma entrevista hidrofóbica em que fala sobre uma “campanha maliciosa” contra sua cria, uma campanha da qual sou um braço. É isso que dá mergulhar no culto à monarquia hereditária e buscar conforto em seu brilho barato. Seidler começa a mostrar suas baterias ao dizer que eu o “acuso de não saber que (o ex-premiê britânico Winston) Churchill apoiava David (rei Edward VIII) , e não Bertie (rei George VI) ”. Eu não fiz nada disso. Eu o acusei de omitir deliberadamente o fato, ainda que ele tenha dado a entender fortemente que a lealdade de Churchill era ao balbuciante Bertie. Ele agora nos diz que a cena em que Churchill apoiou o principezinho pró-nazi David foi cortada, supostamente porque “ficou chato”.
O discurso do rei também encobre o apoio constante do Palácio de Buckingham a Stanley Baldwin e Neville Chamberlain, os premiês anteriores a Churchill, e a tentativa insistente deles de fazer um acordo com Hitler que daria ao ditador passe livre na Europa se o Império Britânico fosse preservado. Aqui, vou citar novamente Seidler:
“Hitchens também acusa Bertie de apoiar Chamberlain a ‘apaziguar’ Hitler. Bem, quase todo mundo na Inglaterra, exceto Churchill, fez o mesmo. Olhar para trás é sempre fácil. A Inglaterra havia perdido a nata de uma geração na Primeira Guerra. Ninguém queria outra guerra. E a Inglaterra não estava pronta. Chamberlain precisava ganhar tempo para preparar a produção de guerra, o que ele fez; não exatamente a atitude de um apaziguador. Quando ele voltou de Munique com o ‘paz no nosso tempo’, multidões se reuniram perto de Downing Street e o aclamaram como herói. É claro que o rei e a rainha o apoiavam. Constitucionalmente, eles tinham de apoiar”.

O filme encobre o apoio de George VI
 à desastrada política de Chamberlain
de tentar “apaziguar” Hitler

Como eu escrevi no meu texto original:
1) Houve um grande movimento na Inglaterra contra se vender a Hitler. Estendendo-se pelo Partido Trabalhista e Liberal, e incluindo um número significativo de conservadores importantes, conclamou pelo rearmamento e a solidariedade de todos os governos e partidos anti-Hitler. Muitos dos líderes desse movimento ficaram incomodados quando Churchill buscou uma aliança quase suicida com o medonho Edward VIII.
2) O acordo de Chamberlain em Munique não só entregou a Hitler os povos livres da Tchecoslováquia. Também entregou um dos mais importantes centros de fabricação de armas da Europa, baseado na enorme fábrica de munição Skoda. Se algum “tempo” foi “comprado”, foi para o Führer.
3) O rei e a rainha não refletiram a opinião pública. Eles ajudaram de forma decisiva a moldá-la a favor de Chamberlain. Ele foi recebido por um enviado real tão logo pousou vindo de Munique, levado diretamente ao Palácio de Buckingham e exibido no terraço como uma benção monárquica para seu tratado, que ainda precisava ser submetido ao Parlamento.
4) Até a falecida Elizabeth, a rainha-mãe, disse ao seu biógrafo William Shawcross que ela e “Bertie” tinham cometido um erro ao fazer o que fizeram. Ela ainda tentou a defesa de que ninguém queria outra guerra. Mas isso não explicaria por que ela e seu marido lutaram privadamente para manter Chamberlain no cargo mesmo depois da deflagração do conflito.
Ao dar essa entrevista recente, David Seidler foi muito além da inexatidão e da falsificação que jazem no coração do filme. Tornou-se um propagandista da facção de Munique.
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* Escritor, colunista da revista Vanity Fair, autor e colaborador regular do New York Times e The New York Review of Books. Escreve quinzenalmente em ÉPOCA
Fonte: ÉPOCA online, 03/03/2011

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