CELSO GUTFREIND*
TERAPIA DO DIZERFilme vencedor do Oscar chama a atenção para a comunicação oral, sua relação com a nossa capacidade de expressão e com as nossas emoçõesPor ser um filme sobre a fala, O Discurso do Rei, dirigido por Tom Hooper e grande vencedor da 83ª edição do Oscar, é também uma história sobre histórias. Com este conteúdo, dá-nos mais ainda a liberdade de contarmos o que nos fez sentir. Isto é narratividade de forma um tanto moderna em uma psicanálise que se aproxima da teoria do apego e uma teoria da literatura, que se aproxima da peculiaridade de uma recepção. Este é o sonho de um discurso. Cada um recebe a trama alheia conforme a própria trama necessita, do jeito como – vivente que ouve e conta – falarei agora.
Em seu conteúdo, O Discurso do Rei é uma aula sobre a narratividade e, sob diversos pontos de vista, conta justamente o que está por trás de uma fala. George, interpretado por Colin Firth, é o segundo na sucessão do trono na Grã-Bretanha. Mas, quando tem a oportunidade de falar, a língua claudica, as palavras trancam. E todos os precursores de uma linguagem estão presentes por trás deste discurso quebrado, quase ausente. Refiro-me aos precursores no sentido emocional a partir de uma abordagem que circula entre a psicologia do desenvolvimento e a psicanálise. A neurologia, aqui, está fora. O aparelho fonador e o aparato do corpo, idem, sem que os negligenciemos. Mas consistem em outra história e, embora a fala surja na esquina destas duas histórias pelo menos, priorizamos a avenida da psicanálise, com Freud na alameda principal, que se bifurcará em novas vias (pós-freudianas), incluindo ruas recém inauguradas, como a de Bernard Golse, o psicanalista obcecado em mapear o começo da fala e já tendo encontrado rastros no encontro entre os corpos da mãe e do bebê.
Olhemos, então, o que há de principal nas ruelas de um inconsciente em seus primórdios: imagens. Iniciamos como cinema; a literatura, paradoxalmente, vem depois. Aliás, o roteiro premiado do filme deixa bem claro que a dificuldade de fala é uma questão de começos. Não se nasce gago, conta-nos o terapeuta, mas se o torna logo em seguida.
Há ali uma cena fundamental em que a mãe de George é descortinada como ser humano. Dá-se na morte do marido, quando ela não corresponde ao abraço do filho mais velho, o primeiro na sucessão para o trono e também a revelar o tamanho da falha na relação maternal.
A mãe do protagonista é afetivamente reservada, vastamente contida e culturalmente vitoriana. Ora, a fala vem do corpo e, sobretudo, de uma interação satisfatória com o corpo da mãe. É preciso que esta interação seja realmente satisfatória em um encontro com qualidades reais de presença. E afetivamente satisfatória em um encontro feito daquilo que é essencial para a fala esguichar, que é ser banhada de afetos.
Esta dimensão afetiva faltante está à mostra na cena. E também nos relatos de George, já com o seu terapeuta, ao descrever seus primeiros anos, entregues a uma babá, a substituta negligente que o preteria ao irmão mais velho, castigando-o com privações afetivas de toda ordem. A sequência da história repetia o seu começo de privações, como costuma ser o funcionamento mental humano, repleto de repetições compulsivas – os tratamentos anteriores haviam falhado – até que alguém consiga deter (acolher) as paralisias de um passado, relançá-lo em uma nova rede de falas e narrativas (com poesia), e a repetição dê lugar ao novo ou à história autêntica.
A fala não é filha da frieza, pelo contrário. Ela surge na frieza ou na ausência, mas quem a insufla é o calor dos encontros primordiais, anteriores a ela. Lionel, o terapeuta da fala, interpretado por Geoffrey Rush, sabe trabalhar no limite desta fogueira humana e acolher todos os sentimentos terríveis de um passado que vive no presente:
– Tu não tens mais cinco anos – tenta dizer ao paciente a fim cumprir a difícil tarefa de pôr o passado em seu lugar.
Lionel quer ser chamado de Lionel e chama o príncipe (depois rei) de Bertie, como este era chamado em sua família. Com isso garante condições humanas capazes de candidatar-se sem garantias, como no amor ou na psicanálise, a mitigar ou suprir uma relação primordial deficiente. A formalidade e a frieza, afinal, não engendram sujeitos nem falas verdadeiros.
Lionel é afetivo sem ser frouxo e sequer ostenta o título de terapeuta, em uma Inglaterra monarquista e absolutamente ligada em formalidades, que, como dissemos, não engendram dizer. Toda fala é dirigida ao outro, reedita cenas antigas e conta a história de um encontro, presente permeado de passado.
Lionel retoma a história de George: a relação com os pais, os maus tratos cometidos pela babá, o conflito com o irmão mais velho, a dificuldade no apego e desapego, a impossibilidade de impor “a própria voz”. Então é preciso limpar um terreno repleto de silêncios e não ditos e, especialmente, de relações afetivas insuficientes para a constituição de um sujeito capaz de falar.
Afinal, na vida de George e de todos nós, muito não foi falado em termos de afetos, tornado fantasmas, neuroses, psicoses. E muito não foi tocado nos corpos, tornados mentes pouco expressivas. A fala vem do corpo, lá onde foi banhado de gestos com sentidos afetivos.
O terapeuta Lionel sabe colocar-se de igual para igual com seu paciente e apagar a diferença, porque a apagava em sua vida de ator frustrado, mas capaz de brincar, com os filhos, de sua própria falta. Ele soube, na relação com George, abrir espaços para os não ditos, para a representação do pulsional, berço das emoções e dos ritmos. Assim, um tipo mais rico de apego é refeito. Com canções e toques. Uma história é recontada com espaço para ouvi-la. Os precursores da fala se tornam presentes.
Terapia da fala? A mais pura das psicanálises, aliás, a terapia da fala.
Agora sim, devidamente contado e tocado, George pode falar. Pode tornar-se rei, o que é mera metáfora na história do filme, que o transcende.
Reis somos todos nós que, devidamente banhados de afeto no corpo, lá no começo, ou consertados disso, através de novos encontros no meio da jornada, já podemos reinar em nossa vida, ocupar espaços com a gente mesmo e com o outro, apropriar-se da própria voz. E ser. E falar.
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*Psicanalista e escritor
Fonte: ZH online, 12/03/2011
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