sábado, 19 de março de 2011

Pessoa por trás das máscaras

Fernando Pessoa ocultou a identidade em seus versos.
Uma nova biografia revela as dúvidas e 
a sexualidade do poeta português
Norma Curi
Arquivo/Agência O 
Globo e divulgação
DIA A DIA
Fernando Pessoa passeando em Lisboa nos anos 30.
A biografia busca motivos cotidianos para a obra do escritor
Criador de identidades imaginárias e de duplos, o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) deixou aos leitores uma obra repleta de armadilhas e pistas falsas sobre sua verdadeira personalidade. A maioria dos estudiosos contenta-se em submergir no mundo de fantasmas inventado pelo autor e decifrar os fascinantes segredos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e outros de seus 127 heterônimos. O advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti, de 62 anos, preferiu a realidade. Há sete anos, persegue rastros de Pessoa correndo atrás das 31 moradas, 30 escritórios e inúmeras tabacarias frequentadas pelo escritor. Não perdeu um leilão em que uma carta de Pessoa estivesse à venda. Percorreu alfarrabistas em busca de edições raras e livros sobre sua obsessão. “Só num deles comprei de uma vez € 10 mil em livros”, diz. Por outros € 10 mil, levou a coleção de selos do poeta. Montou em casa um minimuseu dedicado a Pessoa, alterou a rotina acordando às 3 horas da manhã para escrever até as 7 e contratou peritos para analisar minúcias da vida do poeta, como o grau de seus óculos, e a causa de sua morte (pancreatite, segundo Cavalcanti, e não cirrose). Ao final de sua empreitada, decidiu compartilhar os resultados de sua pesquisa com o público. Os objetos colecionados estão na exposição de Pessoa no Centro Cultural Correios do Rio de Janeiro, que começa nesta semana. Na abertura, na quinta-feira 24, Cavalcanti lança a mais completa biografia do poeta, Fernando Pessoa, uma quase autobiografia (Record, 750 páginas, R$ 79,90).
Na exposição, os nomes de José Paulo Cavalcanti e sua mulher, Lecticia, aparecem em letras miúdas ao lado de artigos como um bico de pena de Pessoa feito pelo amigo Almada Negreiros no dia do enterro do poeta, uma serigrafia tecida pelo artista Julio Pomar e a primeira e única edição em português publicada em vida (Mensagem, de 1934). Há também o poema “Antinous”, sobre a relação sexual do escravo homônimo com o imperador Adriano, publicado em inglês em 1918 à custa do autor, além de todas as revistas em que o poeta colaborou, dos manifestos que escreveu e do último livro que levava no bolso do pijama para o hospital São Luís dos Franceses, onde morreu em 30 de novembro de 1935 – Sonetos escolhidos, de Bocage.
Assim como Pessoa, Cavalcanti tem uma personalidade multifacetada. Especializado em Direito da Comunicação, é um dos maiores juristas pernambucanos. Estudou na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, publicou 18 livros jurídicos, foi ministro da Justiça do governo Sarney, é membro da Academia Pernambucana de Letras, leitor inveterado, pintor nas horas vagas e músico com vários discos gravados, entre eles um duo com o famoso pianista Arthur Moreira Lima. “Ele toca piano com a mão direita, eu, com a esquerda”, diz Cavalcanti. Em meio a sua rotina cheia de atividades, escreveu parte do livro de frente para o mar, gastando por semana uma caneta Pilot V7 comprada em Lisboa, no verso de cópias dos processos de seu escritório. O resto, completou na copa da casa de Piedade, no Recife, onde a papelada multiplicava-se pela pia, pelo fogão e pela geladeira, enquanto obras de Bach no fone de ouvido o mantinham a salvo das interrupções. 
Segundo seu biógrafo, Pessoa escondia 
sua homossexualidade e 
tinha vergonha do próprio corpo
Cavalcanti não se intimidou quando, ao começar suas pesquisas, deparou com uma lista de 5.500 livros sobre Pessoa. Diz ter lido 1.000 e saído a campo para encontrar a tabacaria Havaneza da Rua dos Retrozeiros, que inspirou o famoso poema “Tabacaria”. Ali o poeta comprava cigarros Provisórios, Definitivos ou os preferidos Bons. Quando o amigo Mário Sá-Carneiro (1890-1916) vinha a Lisboa, experimentava a Mônaco e as Tabacarias Costa e Inglesa. Frequentador de botecos, nunca voltava para casa sem bater ponto nesses estabelecimentos, pedindo “dois , oito e seis” – um código que Cavalcanti decifrou: “Dois tostões para a caixa de fósforos, oito para o maço de cigarros Bons e seis para o cálice de Macieira”. Em jejum no balcão, fazia em gestos o número sete – “sete tostões, um copo de vinho”. Na hora do almoço, um bife. À noite, tomava sopa no restaurante Martinho da Arcada. O proprietário, Mourão, costumava enfiar um ovo no prato à revelia do cliente, que achava muito frágil. Lá, Pessoa escreveu a maior parte dos poemas.
Leo Caldas/ÉPOCA
OBSESSÃO
O advogado José Paulo Cavalcanti levou 20 anos levantando 
fontes inéditas de Fernando Pessoa
Um dos aspectos da personalidade de Pessoa desvendados por Cavalcanti é sua vaidade. “Os cobradores viviam na porta da casa dele, mas ele continuava a se vestir no melhor alfaiate”, diz. “A vaidade era tanta que ele driblava com óculos de 3 graus a prescrição do oculista para 12 de miopia.” Para enxergar o mundo à maneira de Pessoa, Cavalcanti deu a um oculista a missão de torná-lo míope de 12 graus com várias lentes e colocou óculos de 3 graus por cima delas. “É um horror. Ele preferia a vida turva a ficar com o olho aumentado pelas lentes grossas.”
O livro também expõe detalhes sobre a visão de mundo (leia as sete regras de vida abaixo) e a sexualidade do poeta. Em seus textos, ele insinua a homossexualidade de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares e cria um Álvaro de Campos homossexual assumido (“Olha Daisy, quando eu morrer tu hás de... contar àquele pobre rapazito/que me deu horas tão felizes”) . Antonio Botto, amigo de Pessoa que morreu atropelado no Rio nos anos 50, contou ao escritor Jorge de Sena que Pessoa “olhava de certa maneira para os rapazinhos”. Também revelou ter ficado assustado com o tamanho diminuto do pênis de Pessoa. Em suas supostas comunicações mediúnicas, Pessoa escrevia como Wardour, “homem envergonhado com clitóris em vez de pênis”. “É provável que nunca quisesse se expor, acreditando ser homossexual até os 30 anos”, diz Cavalcanti. O poeta tinha horror à flacidez de seu corpo: “Tenho um corpo tão feio, um focinho envergonhado que ofende a humanidade (referia-se ao nariz) . Meu corpo é um abismo entre eu e eu. O criador do espelho envenenou a alma humana”. Outra aflição eram as dívidas. Precisava de dinheiro, a ponto de não ir à entrega de um dos poucos concursos que ganhou. Explicou o motivo em poemas: “Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse”.
   Divulgação
FLAGRANTES
 1. Fernando Pessoa aos 7 anos, em 1895 em Lisboa 2. Esboço de Almada Negreiros, feito no dia do enterro de Pessoa, em 30/11/1935 3. Pessoa (o segundo da esq. para a dir.) ao lado do cunhado, Caetano Dias (à esq.), em foto feita na Quinta dos Marechais entre 1923 e 1925 4. Dedicatória ao primo Victoriano Braga 5. Pessoa bebe vinho na adega de Abel Fonseca em 1929
Apesar de ter acumulado um valioso acervo de relíquias sobre Pessoa, Cavalcanti teve de lidar com algumas frustrações durante a pesquisa. Uma delas foi sua tentativa de comprar as cartas trocadas entre o poeta e Ophélia Queiroz, sua grande paixão. O bibliófilo Pedro Correa do Lago revelou que nas cartas há trechos censurados pela família de Pessoa que tratam da “doença feminina”, a menstruação. Lago não vendeu o lote “nem pelo preço de dois carros importados”, segundo Cavalcanti. Em outros casos, porém, sua insistência foi recompensada. O desenho que Almada entregou a Ophélia depois do enterro, Cavalcanti levou menos pelo depósito sem recibo na conta da sobrinha Maria da Glória do que pelo relato de ter visto Pessoa andando pelo Chiado. “Contei que tentei persegui-lo e ao se dar conta ele fugiu”, diz. Quando a mulher de Cavalcanti fez pouco da suposta experiência sobrenatural, dizendo não acreditar em fantasmas, Maria da Glória reagiu: “Pois se tratando de Fernando, acredite!”.
   Reprodução



Excerto do Prefácio clicado do site da Revista Época.

O livro começou quando pretendi saber quantos foram seus heterônimos. Por isso, em destaque, seguem biografi as de todos. Para Pessoa, eramsuas máscaras. “Depus a máscara e tornei-me a pô-la. Assim é melhor. Assim sou2 a máscara.” A imagem é nele recorrente: “How many masks wear we, and undermasks?” (Quantas máscaras e submáscaras nós usamos?), diz no oitavo de seus 35 sonnets. Nas máscaras mortuárias do Antigo Egito, os olhos dos faraós eram furados como preparação para o futuro de sombras que lhes fora prometido. O mesmo morto em um “mundo que fosse qualquer coisa que não fosse mundo”. No teatro grego, ao contrário, os atores (homens, todos) eram convertidos em personagens representados por más-caras — na Grécia, prosopon; em Roma, persona, pessoa. O carioca Ronald de Carvalho não por acaso dedicou livro a Fernando Pessoa, esquisito escultor
de máscaras, seus heterônimos. Aos poucos, criador e criaturas se confundem. “Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara.” Um de seus biógrafos, Robert Bréchon, diz dele que não se pode arrancar do rosto único qualquer de suas máscaras sem que a carne venha agarrada. Foram pelo
menos 127, conformando o doloroso mosaico de seu verdadeiro rosto — se é que tinha um, apenas.
*

Conheci Fernando Pessoa em 1966, pela voz de João Villaret. Foi o começo de uma paixão que até hoje me encanta e oprime. Tenho mesmo a sensação de que gostava dele ainda mais naquele tempo. Talvez porque todo começo de paixão seja assim mesmo... depois arrefece; ou então, como o rio
de sua aldeia, ele apenas pertencesse a menos gente. Pouco a pouco, fomos nos aproximando. Leio frases suas, hoje, como se tivesse estado a seu lado quando as escreveu; e chego a pressentir as reações que teria perante algum fato do quotidiano. Não se deu apenas comigo. Jorge Luis Borges, 50 anos depois de sua morte, pediu: Deixa-me ser teu amigo; e Luiz Ruff ato lembra que era outono e azul quando apresentei-me a Fernando Pessoa. No íntimo, é como se continuasse vivo. Penso que será sempre assim em livros como este, que se propõem contar a história de uma vida. Ao passar dos anos, fui compreendendo melhor esse homem inquieto, o corpo frágil, a angústia da alma, a dimensão grandiosa da obra. Em Lisboa, pude conversar com pessoas que o conheceram. Tocar, com os dedos, papéis escritos por ele. Visitar as casas onde morou. Em frente à escrivaninha do seu quarto, imaginar que o via escrever O guardador de rebanhos. No fundo, agora o percebo, queria sentir os limites do seu destino; e, a cada passo dessa viagem ao passado, era como se sua fi gura fosse ganhando matéria. Como se em cada canto, impressentidamente, começasse a escapar das sombras. Tanto que o vi, no
Chiado, próximo à esquina da Livraria Bertrand. Amigos juram que não era ele; mas esses, coitados, nada conhecem de fantasmas. “Cada um de nós é um grão de pó que o vento da vida levanta, e depois
deixa cair.” Não será assim com todos. “Deuses são amigos do herói, se compadecem do santo; só ao gênio, porém, é que verdadeiramente amam”; e alguns poucos apenas, os escolhidos por esses deuses, alcançam “aquela coisa que brilha no fundo da ânsia, como um diamante possível, o cárcere infinito”. Tocados pela eternidade. “Mais vivos, depois de mortos, que quan- do estão vivos.” Os vemos de longe, reverenciosos, em “um grande silêncio, como um deus que dorme”. Entre eles, sem dúvida, o corpo, a alma, a lenha e o fogo que é Fernando Pessoa.

Senhor, meu passo está no Limiar
Da Tua Porta.
Faze-me humilde ante o que eu vou legar...
Que fi que, aqui
Esta obra que é tua e em mim começa
E acaba em Ti.
O resto sou só eu e o ermo mundo...
E o que revelarei.
“Prefácio – Prece”, Fernando Pessoa
JPCF, 13
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Fonte: Revista Época online, 16/03/2011

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