MÁRIO CORSO*
HUMANOS DEMASIADO HUMANOS
Enxergamos nos animais a fresta do nosso desamparo.
Deletamos o fato de que o homem morde a mão que o alimenta
Encontraram o Pinpoo. Terminou a novela do cãozinho desaparecido. Quem minimamente acompanha notícias, em qualquer meio, acompanhou o sofrimento do seu desaparecimento por relapso duma companhia aérea. Mas quem já tem certa idade nota que algo mudou por estas paragens. Anos atrás isso seria apenas um drama infantil, nenhum adulto gastaria seu tempo com cães sumidos, e jamais um fato desses ganharia manchetes. Estaríamos todos infantilizados? A nossa geração não cresceu? Difícil dizer, mas isso é mais um dos casos para demonstrar uma sensibilidade diferente em relação aos animais.
Os defensores e amantes dos animais estão ganhando visibilidade a cada dia, e Porto Alegre é uma espectadora privilegiada desse processo. A campanha pelo fim das carroças (pensando nos cavalos), o estudante que se negou a aprender com vivisseção, recentemente o minizoológico da Redenção fechado para não estressar os espécimes e, como em outros lugares, muitos ativistas que pedem o fim de experiências com animais, e ainda os vegetarianos sempre denunciando a indústria da carne com seus inevitáveis maus tratos. Por outro lado, os animais amados, os domésticos, estão ainda mais amados, e sempre numa suspeita, para quem assiste a cena de fora, de um exagero na consideração que recebem. De qualquer forma, não é difícil perceber que uma nova sensibilidade para com a vida animal vem mostrando seu rosto. Embora essa tendência esteja em crescimento, os militantes da causa animal ainda são poucos, mas por sorte são bem barulhentos. Digo sorte por que nos põem a pensar, subvertem as certezas e isso sempre é bom.
Essa visão generosa para com os animais não é exatamente uma novidade. Os Jainistas já defendem essas ideias há séculos. Mas nem precisaríamos ir tão longe, a ideia dos nossos índios sobre a vida animal vira nossa lógica de ponta cabeça. Para eles no começo só existia a humanidade e por escolhas e descaminhos, os animais tomaram outro rumo, decaíram, mas eles seguem “humanos” de certa forma, são nossos parentes distantes. Enquanto no raciocínio ocidental nós viemos dos animais e evoluímos, para eles os animais vieram de nós. Por isso, os casamentos com animais nas mitologias indígenas não nos fazem sentido, mas para eles sim, pois seria outro povo, não outra espécie.
Essa tendência gerou um novo termo: “especismo”, para designar aqueles que tratam os animais como objetos. Especista seria quem se julga pertencer a uma espécie superior (no caso, nós, os humanos) e por isso se arvoraria o direito de dominar as outras espécies. Para seguir matando, criando animais para abate ou deleite (não esqueçam os caçadores, as touradas, as rinhas), ou ainda usando-os como cobaias, não seria possível sem essa dita arrogância especista. Esse novo termo vem acompanhado de um raciocínio onde se diz que o especismo estaria, para nós e os animais, assim como o racismo está para as raças humanas (para quem acredita que elas existam, pois biologicamente elas não fazem sentido) e o sexismo para a dominação de gênero.
Creio que esse paralelo é abusivo, pois não acredito que exista simetria entre racismo e sexismo e por outro lado, especismo pelo outro. Enquanto no racismo e no sexismo temos algo que é em princípio igual – o valor ou capacidade das ditas diversas raças para algumas aptidões, e o mesmo para o gênero – e que são tratados diferentes por motivos de dominação. Ou seja, nesses casos criou-se uma ideologia da dominação que funda uma diferença onde ela na origem não existe. Já no caso do especismo, trata-se de algo distinto, (e até de certa forma ao avesso), ou seja, nós e os animais não somos iguais, e os militantes da causa animal acreditam que devemos assim tratá-los.
Creio que é autoevidente que somos diferentes dos animais, o que sim podemos dizer que é que, nós e eles, teríamos os mesmos direitos de seguir nossa vida sem nos atrapalharmos mutuamente. E penso que em relação aos animais deveríamos é ter deveres e não atribuir-lhes direitos. De qualquer forma, escuto as reivindicações desses defensores num outro tom, no qual uma frase de Kundera é especialmente preciosa: “A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar em toda sua pureza e em toda liberdade em relação àqueles que não têm nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, que se situa em um nível tão profundo que fica fora do alcance do nosso olhar) são suas relações com aqueles que estão a sua mercê: os animais. E é aí que se deu a maior derrota do homem, fracasso fundamental de onde todos outros derivam”. Aliás, essa é a posição de Bauman também: embora ele fique no âmbito dos homens, ele diz que a sua maneira de medir a humanidade de uma civilização é como ela trata os menos favorecidos, os fracos e desvalidos. O espírito é o mesmo, você só seria moralmente elevado se não se aproveitasse da impotência alheia.
Mas o que sempre me pergunto frente a esses movimentos, aos quais geralmente, mas com reservas, tenho simpatias, é se estamos diante de um avanço da sensibilidade humana ou um de retrocesso. Em outras palavras: isso seria uma forma mais ampla de humanismo revigorado? Ou estaríamos, apesar das boas intenções, frente a um sintoma de desencanto com a humanidade?
Não acredito que vivemos um retorno ao modo romântico de amor a natureza e seus velhos paradigmas que atribuem nosso desequilíbrio a um afastamento dela. O certo é que a distância nos permite idealizá-la. Uma das questões que é facilmente esquecida é que a natureza é um eterno entredevorar-se, os vivos alimentam-se dos mortos. Em todos os níveis. Para Joseph Campbell uma das nossas contradições, da qual não conseguimos uma síntese, é que as criaturas vivas sempre se alimentam de outro ser vivo. O mundo biológico é um eterno entredevorar-se. Talvez a melhor resposta seja a mais simples. De fato, estamos todos infantilizados. Mas não de qualquer forma, isso decorre duma tentativa de simplificação do mundo, queremos um cosmo unívoco, um mundo básico, do certo e do errado, do bandido e do mocinho, e isso os humanos com sua labilidade e complexidade não podem nos dar. Creio que esse movimento usa sem saber a seguinte máxima de Mark Twain: “Recolha um cão de rua, dê-lhe de comer e ele não morderá: eis a diferença fundamental entre o cão e o homem.” Nossos amigos sabem que correm o risco de ser mordidos se escolherem os humanos e se refugiam no amor fácil dos animais.
Os animais nos mergulham num mundo sem mal entendidos, cuidar e ser amado. Você dá e você recebe. Eles nos refrescam a memória dos cuidados maternos. Viemos ao mundo banhados no amor da mãe, ou ele existe ou não nos constituímos. Um amor que não pede nada (na verdade não é nada assim, mas é assim que gostamos de pensá-lo). Enxergamos nos animais a fresta do nosso desamparo. Deletamos cognitivamente o fato de que o homem morde a mão que o alimenta. Reduzimos o mundo às vicissitudes desse amor unívoco. E como recompensa, passamos por boas almas, os malvados são os outros, nós amaríamos os mais fracos.
Escrevo com os pés aquecidos no meu velho buldogue desenganado por tantos veterinários. Vive de teimoso. Minha filha longe pede que eu cuide para que ele não morra antes de ela voltar, a menor não concilia o sono sem sua presença. Eu cuido dele por elas e por mim. Embora um pouco mentiroso, é um bom papo e sei que posso contar com ele para tudo.
--------------------------------------------Os defensores e amantes dos animais estão ganhando visibilidade a cada dia, e Porto Alegre é uma espectadora privilegiada desse processo. A campanha pelo fim das carroças (pensando nos cavalos), o estudante que se negou a aprender com vivisseção, recentemente o minizoológico da Redenção fechado para não estressar os espécimes e, como em outros lugares, muitos ativistas que pedem o fim de experiências com animais, e ainda os vegetarianos sempre denunciando a indústria da carne com seus inevitáveis maus tratos. Por outro lado, os animais amados, os domésticos, estão ainda mais amados, e sempre numa suspeita, para quem assiste a cena de fora, de um exagero na consideração que recebem. De qualquer forma, não é difícil perceber que uma nova sensibilidade para com a vida animal vem mostrando seu rosto. Embora essa tendência esteja em crescimento, os militantes da causa animal ainda são poucos, mas por sorte são bem barulhentos. Digo sorte por que nos põem a pensar, subvertem as certezas e isso sempre é bom.
Essa visão generosa para com os animais não é exatamente uma novidade. Os Jainistas já defendem essas ideias há séculos. Mas nem precisaríamos ir tão longe, a ideia dos nossos índios sobre a vida animal vira nossa lógica de ponta cabeça. Para eles no começo só existia a humanidade e por escolhas e descaminhos, os animais tomaram outro rumo, decaíram, mas eles seguem “humanos” de certa forma, são nossos parentes distantes. Enquanto no raciocínio ocidental nós viemos dos animais e evoluímos, para eles os animais vieram de nós. Por isso, os casamentos com animais nas mitologias indígenas não nos fazem sentido, mas para eles sim, pois seria outro povo, não outra espécie.
Essa tendência gerou um novo termo: “especismo”, para designar aqueles que tratam os animais como objetos. Especista seria quem se julga pertencer a uma espécie superior (no caso, nós, os humanos) e por isso se arvoraria o direito de dominar as outras espécies. Para seguir matando, criando animais para abate ou deleite (não esqueçam os caçadores, as touradas, as rinhas), ou ainda usando-os como cobaias, não seria possível sem essa dita arrogância especista. Esse novo termo vem acompanhado de um raciocínio onde se diz que o especismo estaria, para nós e os animais, assim como o racismo está para as raças humanas (para quem acredita que elas existam, pois biologicamente elas não fazem sentido) e o sexismo para a dominação de gênero.
Creio que esse paralelo é abusivo, pois não acredito que exista simetria entre racismo e sexismo e por outro lado, especismo pelo outro. Enquanto no racismo e no sexismo temos algo que é em princípio igual – o valor ou capacidade das ditas diversas raças para algumas aptidões, e o mesmo para o gênero – e que são tratados diferentes por motivos de dominação. Ou seja, nesses casos criou-se uma ideologia da dominação que funda uma diferença onde ela na origem não existe. Já no caso do especismo, trata-se de algo distinto, (e até de certa forma ao avesso), ou seja, nós e os animais não somos iguais, e os militantes da causa animal acreditam que devemos assim tratá-los.
Creio que é autoevidente que somos diferentes dos animais, o que sim podemos dizer que é que, nós e eles, teríamos os mesmos direitos de seguir nossa vida sem nos atrapalharmos mutuamente. E penso que em relação aos animais deveríamos é ter deveres e não atribuir-lhes direitos. De qualquer forma, escuto as reivindicações desses defensores num outro tom, no qual uma frase de Kundera é especialmente preciosa: “A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar em toda sua pureza e em toda liberdade em relação àqueles que não têm nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, que se situa em um nível tão profundo que fica fora do alcance do nosso olhar) são suas relações com aqueles que estão a sua mercê: os animais. E é aí que se deu a maior derrota do homem, fracasso fundamental de onde todos outros derivam”. Aliás, essa é a posição de Bauman também: embora ele fique no âmbito dos homens, ele diz que a sua maneira de medir a humanidade de uma civilização é como ela trata os menos favorecidos, os fracos e desvalidos. O espírito é o mesmo, você só seria moralmente elevado se não se aproveitasse da impotência alheia.
Mas o que sempre me pergunto frente a esses movimentos, aos quais geralmente, mas com reservas, tenho simpatias, é se estamos diante de um avanço da sensibilidade humana ou um de retrocesso. Em outras palavras: isso seria uma forma mais ampla de humanismo revigorado? Ou estaríamos, apesar das boas intenções, frente a um sintoma de desencanto com a humanidade?
Não acredito que vivemos um retorno ao modo romântico de amor a natureza e seus velhos paradigmas que atribuem nosso desequilíbrio a um afastamento dela. O certo é que a distância nos permite idealizá-la. Uma das questões que é facilmente esquecida é que a natureza é um eterno entredevorar-se, os vivos alimentam-se dos mortos. Em todos os níveis. Para Joseph Campbell uma das nossas contradições, da qual não conseguimos uma síntese, é que as criaturas vivas sempre se alimentam de outro ser vivo. O mundo biológico é um eterno entredevorar-se. Talvez a melhor resposta seja a mais simples. De fato, estamos todos infantilizados. Mas não de qualquer forma, isso decorre duma tentativa de simplificação do mundo, queremos um cosmo unívoco, um mundo básico, do certo e do errado, do bandido e do mocinho, e isso os humanos com sua labilidade e complexidade não podem nos dar. Creio que esse movimento usa sem saber a seguinte máxima de Mark Twain: “Recolha um cão de rua, dê-lhe de comer e ele não morderá: eis a diferença fundamental entre o cão e o homem.” Nossos amigos sabem que correm o risco de ser mordidos se escolherem os humanos e se refugiam no amor fácil dos animais.
Os animais nos mergulham num mundo sem mal entendidos, cuidar e ser amado. Você dá e você recebe. Eles nos refrescam a memória dos cuidados maternos. Viemos ao mundo banhados no amor da mãe, ou ele existe ou não nos constituímos. Um amor que não pede nada (na verdade não é nada assim, mas é assim que gostamos de pensá-lo). Enxergamos nos animais a fresta do nosso desamparo. Deletamos cognitivamente o fato de que o homem morde a mão que o alimenta. Reduzimos o mundo às vicissitudes desse amor unívoco. E como recompensa, passamos por boas almas, os malvados são os outros, nós amaríamos os mais fracos.
Escrevo com os pés aquecidos no meu velho buldogue desenganado por tantos veterinários. Vive de teimoso. Minha filha longe pede que eu cuide para que ele não morra antes de ela voltar, a menor não concilia o sono sem sua presença. Eu cuido dele por elas e por mim. Embora um pouco mentiroso, é um bom papo e sei que posso contar com ele para tudo.
*Psicanalista, coautor de “A Psicanálise na Terra do Nunca” (Penso, 2010) e de “Fadas no Divã” (Artmed), ambos com Diana Corso
mariofcorso@gmail.com
FONTE: ZH online, 26/03/2011
Imagem da Internet
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