ANTONIO PRATA*
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Não estamos de acordo, somos contra
jovens rindo e trocando soquinhos
na fila do supermercado
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CHEGO AO caixa do supermercado, onde estão a mulher de unhas cor-de-rosa e o senhor de Rider, e nos olhamos de esguelha -nossas pupilas nem se cruzam, trata-se apenas daquela checada rápida, com o canto do olho, herança das savanas, talvez, quando tínhamos que avaliar, num átimo, se havia algum leão à espreita.
Não há: nenhum de nós é skin- head, bêbado ou aparenta levar uma machadinha escondida embaixo do casaco, de modo que a paz logo se instaura no microcosmo do nosso caixa; a mulher diz que sim, quer Nota Fiscal Paulista, não, não tem o cartão do supermercado e, após breve hesitação, decide pagar no crédito; o senhor começa a colocar sobre a esteirinha rolante suas compras de homem solitário, uma pizza congelada, dois limões, três latas de cerveja; eu batuco, despreocupado, na grade do carrinho.
É aí que ouvimos as risadas.
Várias, estridentes. Os mesmos genes responsáveis pela esguelha preventiva nos acionam o alerta laranja: "atenção, barulho, perigo!" e fazem com que viremos na direção da algazarra. São três meninos e duas meninas, entre 16 e 18 anos. Empurram um carrinho com cervejas, uma vodca e um pacote de Doritos. "Ai, cala a boca, Amanda!", diz um deles, bem alto, e logo recebe, da menina, um soco no braço. Riem muito.
Nós, a turma dos veteranos da fila, damos as costas aos garotos e, pela primeira vez, nos olhamos nos olhos. É um pacto silencioso, que diz: a paz foi perturbada, não estamos de acordo com este comportamento, somos contra jovens que chegam rindo, dizendo "Ai, cala a boca, Amanda" e trocando soquinhos, no supermercado.
Eles param atrás da gente, com uma extroversão que é diretamente proporcional ao nosso incômodo. A mulher de unhas rosa espera a máquina emitir seu recibo, tensa, o senhor limpa a garganta, mandando para dentro o pigarro e para fora seu sinal de desaprovação, eu pego uma barra de cereais e finjo a mim mesmo um grande interesse pela tabela nutricional -e é entre kcals e fibras alimentares que a razão do meu desconforto vai se revelando.
"Não, não tenho a menor saudade da adolescência.
Sete anos sem saber se punha as mãos nos bolsos
ou pra fora das calças,
a obrigação de estudar química
às sete e quinze da manhã..."
Faz muito pouco tempo, eu estava ali atrás, falando alto, desdenhando dos adultos, com plena consciência de que o mundo é um palco e todos os papéis são cômicos. Agora, estou do lado do Rider, das unhas cor-de-rosa, do "cada coisa em seu lugar" e "a liberdade de um vai até onde começa a...".
Não, não tenho a menor saudade da adolescência. Sete anos sem saber se punha as mãos nos bolsos ou pra fora das calças, a obrigação de estudar química às sete e quinze da manhã, a certeza absoluta de que iria morrer virgem, puro e besta - cruz-credo.
O lado de cá é bem mais confortável, e é justamente esse conforto que os garotos ameaçam, de maneira tão ingênua e eficaz, inserindo risadas, extroversão e agressividade onde deveria haver apenas "boa noite", "Nota Fiscal Paulista?", "débito ou crédito?".
Enquanto entrega o cartão à moça do caixa, posso ouvir o senhor ruminando: "absurdo! Se cada um fizesse o que tem vontade, na hora que tem vontade, o que seria do mundo?"
O que seria do mundo? E de nossas vidas? Eis as perguntas que não ousamos nos fazer, e que os moleques nos esfregam na fuça, com suas risadas.
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*Antonio Prata é escritor. Nasceu em São Paulo em 1977. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (Ed. 34), e escreve no caderno Cotidiano da Folha às quartas-feiras.antonioprata.folha@uol.com.br
Fonte: Folha online, 16/03/2011
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