Antonio Prata*
Publicado na revista WishAs irmãs da Cinderela que me desculpem, mas pé bonito é fundamental. Eu seria incapaz de me apaixonar por uma mulher com pés feios. Confesso até que tenho certa dificuldade em manter uma amizade depois que descubro o que algumas pessoas escondem dentro de seus sapatos, pois acredito que ali, na última fronteira do corpo, condensa-se uma espécie de resumo de cada indivíduo, uma verdade que, uma vez revelada, não pode mais ser esquecida. Mostra-me com o que andas e te direi quem és – eis a minha filosofia podal.
Entenda, caro leitor: não estou falando aqui sobre o caráter. Há pessoas boníssimas com joanetes medonhos e não estranharia se soubesse de santos com unhas encravadas ou nóbeis cheios de calos amarelentos. (Acho até que pés feios combinam com a pureza de espírito, a atividade intelectual – o pensamento ou o coração nas alturas tem, como contrapartida, o desdém pelas coisas baixas, chãs). O que essa parte do corpo traz, a meu ver, é a chave da compleição estética de cada indivíduo. Pés são uma espécie de maquete metafórica da anatomia.
Vejo uma mulher. Pode ser linda, mas se as sandálias revelam dedos feios, com juntas angulosas – desses que parecem cordas, cheias de nós - debruçando-se sobre a sola, de um instante pro outro, toda ela se transforma em pé: o nariz é uma junta, o antebraço é uma falange, a maçã do rosto, saliente - que antes podia até ser uma bela característica –, é agora apenas mais um defeito daquela nodosa figura.
O leitor pode dizer - em defesa de seus atributos físicos ou dos alheios - que o gosto é subjetivo e que a beleza existe nas mais variadas formas. Concordo no que se refere a rostos, quadros ou flores, mas não a respeito dos pés. Uma mulher pode ser bela por ser exótica; um quadro, valioso por sua ousadia e, realmente, é impossível afirmar que a desfraldada camélia é mais ou menos perfeita do que a discreta violeta. Meu relativismo abarca tudo: menos os pés. Neste ponto, sou platônico: existe um pé verdadeiro, bom e belo, que vive no mundo das ideias; todos ou outros são cópias, mais ou menos próximas, dessa matriz ideal.
O pé inteligível e perfeito é discreto: quanto menos chamar a atenção, mais bonito será - originalidade e ousadia são defeitos, nessa área. É arqueado. A unha do dedão é um trapézio invertido e proporcional. A curvatura, tanto na cutícula quanto lá na frente, é pouco acentuada. O dedo médio é ligeiramente menor do que o dedão e todos os outros vão diminuindo gradativamente, até chegar ao dedinho. As unhas têm que ser pequenas e parecidas. As juntas devem ser discretas, preferencialmente invisíveis. O dedinho precisa ter unha de verdade, não apenas aquele fiozinho, e não pode ser despregado dos demais, como um caçula impedido de brincar com os irmãos mais velhos. O modelo serve tanto para homens quanto para mulheres, sendo os femininos menores e delicados, os masculinos maiores e mais fortes.
Longe de mim, com este texto, estimular o preconceito, assoprar a imortal brasa da eugenia. Eu mesmo, devo confessar, não sou dono dos pés mais bonitos do mundo: eles são chatos como um ferro de passar. Quando criança, minha irmã não se cansava de rir das pegadas que eu deixava no chão, ao sair do banho. Dizia que pareciam as de um pato. É o tipo da coisa que a gente tem que aceitar. E entender o significado: a falta de arco tem tudo a ver com minha tendência para ganhar peso, e também com uma postura que nunca foi das mais retas. Isso é óbvio. A leitura de mãos é uma crendice besta, mas a leitura de pés, meus caros, não falha. Pode reparar.
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*Escritor. Nasceu em São Paulo em 1977. Publicou alguns livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (Ed. 34), e escreve no caderno Cotidiano da Folha às quartas-feiras.
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