Virgilio Arraes*
O final da Guerra Fria sepultou na África do Norte a antiga aspiração do pan-arabismo, ou seja, a de unir de modo político e secular a região de cultura majoritariamente muçulmana, ao estender-se até o Oriente Médio. Muitos dos partidários pan-arabistas advogavam a revolução para a materialização do projeto.
O posicionamento favorável de Estados Unidos e União Soviética ao fim dos impérios europeus reiterou a idéia de autonomia. Com o passar dos anos, o norte da África se alterou politicamente, após o fim de monarquias ou de governos abertamente pró-europeus. Novos horizontes pareciam desdobrar-se à população, mas o tempo encarregar-se-ia de eliminar expectativas otimistas.
Formalmente democráticos, por causa da realização regular de eleições, os países norte-africanos assistiram ao longo do tempo à estratificação no poder de diversos dirigentes voltados no longo prazo para a transformação de seu status governamental: de presidentes ou primeiros-ministros a dinastas, ainda que disfarçados.
Egito e Líbia são exemplos de líderes, em cujas famílias se encontravam os possíveis sucessores no poder, apresentados, por sua vez, aos meios internacionais de comunicação como politicamente moderados, por conta de períodos de estudos ou de trabalho na faixa euro-americana, em especial na Grã-Bretanha, império do qual vários de seus membros expressavam admiração, por ser uma estável monarquia constitucional.
Assim, apresentavam-se os herdeiros à opinião pública como filodemocratas, encarregados de efetivar em um futuro remoto a transição para a democracia substantiva em seus países.
No momento, eles seriam os responsáveis por atualizar suas sociedades, de acordo com padrões ocidentais, por meio de organizações não governamentais – de certa forma, um estágio.
Desta forma, as elites daquela região adquiriam melhores condições para permanecer no poder de maneira indefinida, ao flertar com as grandes potências a possibilidade de alteração política e preferencialmente econômica – a adoção do neoliberalismo. Em determinados casos, algumas se anteciparam, ao aliarem-se com corporações petrolíferas.
A oposição ao terrorismo fundamentalista, a partir de setembro de 2001, possibilitou à região a oportunidade de aproximar-se - caso da Líbia – ou de intensificar os laços – Egito – com os Estados Unidos sem aparentar submissão ou concessão extrema.
Assim, a Líbia finalmente concordou em indenizar as famílias dos mortos do vôo 101 da Pan Am, de 1988, explodido intencionalmente ao sobrevoar a Escócia. O valor chegou próximo dos 3 bilhões de dólares. Como contrapartida, os Estados Unidos suspenderam as sanções econômicas aplicadas ao país.
Ao mesmo tempo, o governo líbio despendeu milhões de dólares em contratos de consultoria, de empresa de origem norte-americana, com o propósito de apresentar outra imagem de Muamar Kadafi perante a sociedade ocidental.
Destarte, seu tradicional perfil de ditador excêntrico e violento seria aos poucos substituído por um de estadista, afinado às transformações globais e propenso a habilitar-se como mediador político naquela área.
"Com o fito de consolidar a postura
diferente de Kadafi, incluiu-se a visita ao longo
dos últimos anos de diversos intelectuais:
Francis Fukuyama,
Bernard Lewis – cunhador da expressão
‘choque de civilizações’ - Joseph Nye e
Anthony Giddens – formulador da malograda
Terceira Via dos anos 90."
Afastava-se paulatinamente a avaliação negativa que na década de 80 desencadeou a expulsão de diplomatas líbios de Washington em 1981 ou o bombardeio do próprio país em 1986, por ter sido considerado o governo respectivamente um dos mais importantes apoiadores do terrorismo no Líbano e o responsável por um atentado em Berlim contra militares norte-americanos.
Em fevereiro de 2009, o dirigente líbio foi eleito por um ano para a presidência da União Africana (UA). Sua proposta seria a de transformar o continente nos Estados Unidos da África, inspirado administrativamente na União Européia, com moeda, passaporte e forças armadas comuns. Na prática, isso foi o ressuscitamento de uma proposição do início dos anos 60. Durante sua gestão, ele proporia sanções a governos golpistas.
Com o fito de consolidar a postura diferente de Kadafi, incluiu-se a visita ao longo dos últimos anos de diversos intelectuais: Francis Fukuyama, Bernard Lewis – cunhador da expressão ‘choque de civilizações’ - Joseph Nye e Anthony Giddens – formulador da malograda Terceira Via dos anos 90.
Outrossim, o ditador recebeu vários chefes de Estado, entre os quais Lula, presente na Líbia em junho de 2009, em decorrência de reunião de cúpula da União Africana.
A diplomacia presidencial líbia pareceu até o ano passado surtir efeito sobre os meios tradicionais de comunicação. Não se mencionava mais o país como um Estado renegado; a imagem externa de um governo violento esvanecia-se, ainda que alguns relatos jornalísticos ou diplomáticos mencionassem a manutenção do terror internamente.
Portanto, sabiam todos os centros de poder que se estava diante de uma miragem apenas, porém conveniente para a retomada de negociações de porte.
Destarte, o primordial no andamento atual das intensas movimentações de protesto é não ocasionar instabilidade duradoura, principalmente em territórios de vultosos recursos energéticos, como a Líbia, ou de grandes contingentes populacionais, como o Egito.
Com isso, a oposição logo adquire condições de requisitar o apoio ocidental; em breve, ela poderá assegurar sem muitos percalços sua fixação no poder.
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* Virgílio Arraes é doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/ 06/03/2011
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