O êxodo líbio angustia, mas não vai se
transformar em crise humanitária,
diz estudioso de tragédias
Mala na cabeça, ombro empurrando ombro e um desejo inconteste de 180 mil pessoas: fugir. Esse é o cenário de sofrimento que se instalou na fronteira da Líbia com a Tunísia, nas imediações da cidade tunisiana de Ras Jdir, e, em proporções menores, na divisa com o Egito, no povoado de Salum.
Agências internacionais de ajuda humanitária e as Nações Unidas suprem os acampados nas fronteiras com tendas, cobertas e banheiros químicos, ainda que em número insuficiente. Nações europeias, temerosas de que refugiados do regime de Muamar Kadafi procurem asilo no norte do Mediterrâneo, mobilizam esforços. Inglaterra, Alemanha, França Itália e Espanha puseram navios e aviões à disposição para repatriar, o mais rápido possível, os estrangeiros na Líbia, majoritariamente egípcios, mas também bengalis, filipinos, vietnamitas.
Observador das tragédias humanas do nosso século, Howard Adelman, filósofo e fundador do Centro de Estudos de Refugiados na Universidade York, em Toronto, no Canadá, contextualiza a crise na Líbia. Nada indica, diz ele, que aqueles que tentam escapar da violência do regime de Kadafi terão o mesmo destino dos 6 milhões de pessoas (algumas estatísticas menos conservadoras mencionam até 10 milhões) que hoje vivem em verdadeiros “depósitos humanos”, como descreve os campos de refugiados espalhados pelo mundo. “O cenário na Líbia ainda é manejável e os problemas, relativamente fáceis de sanar”, acredita. Entenda por quê, na entrevista a seguir.
A Tunísia, que acaba de passar por sua própria revolução e vive uma transição política, deu sinais de que não tem condições de abrigar as pessoas que fogem da Líbia. Guardas tunisianos ameaçaram a multidão atirando para o alto e, em alguns casos, usando força bruta. Que fazer para ajudar esse país a lidar com o fluxo de migrantes na fronteira e diminuir o estresse humano?
Num sinal de solidariedade importante dos tunisianos, voluntários desse país foram para a fronteira ajudar as pessoas que tentam escapar da violência na Líbia. Isso se contrapõe à brutalidade dos guardas tunisianos que estão tentando controlar a situação. É em horas como essas que vemos ruídos na ajuda humanitária. Por exemplo, em vez de uma aterrissagem em massa de ONGs estrangeiras para botar banca e dizerem que resolvem o problema - como sempre acontece -, a resposta mais apropriada seria ajudar os tunisianos a enfrentar a situação.
Como isso poderia ser feito?
Seria melhor investir em ONGs que já atuam na área e conhecem melhor as especificidades do local e do povo. Mas o ritual nesses casos continua o mesmo: mobilizar navios e aviões para tirar as pessoas da zona de violência. A maioria dessas pessoas é de trabalhadores temporários, homens viajando sozinhos, que estão sendo repatriados com relativa rapidez. Mesmo assim, alguns grupos ainda enfrentam dificuldades para sair, como os somalis, eritreus, bengalis e palestinos. Se você der assistência para que voltem para suas casas, uma crise maior será evitada. Agora, é triste ver essas pessoas tendo que abandonar todas as posses materiais, casas, roupas, seus móveis. A perda desses recursos é um fator secundário nesse momento, é claro, mas estamos falando de pessoas humildes, e isso terá um impacto significativo em suas vidas. Mas o êxodo da Líbia já está diminuindo diariamente e a repatriação, aumentando.
Então a situação não lhe parece tão crítica?
Veja, não quero minimizar o sofrimento que sei que está ocorrendo ali, mas, pela minha experiência - e tenho testemunhado crises humanitárias por décadas -, a situação atual não está nem perto da escala normal de crises de refugiados. Não acredito que vá se transformar numa crise humanitária de grandes proporções, com refugiados apodrecendo na fronteira por anos, o que de fato acontece com os 6 milhões de pessoas que vivem em campos de refugiados espalhados pelo mundo. Essas não têm para onde ir e há anos aguardam alguma definição quanto ao futuro. O cenário na Líbia ainda é manejável e os problemas, relativamente fáceis de sanar.
"A maneira como o mundo reage
a situações de sofrimento humano
depende muito da publicidade
que os desastres humanos
conseguem na mídia."
Mas o alto comissário da ONU para refugiados, António Guterres, caracterizou a situação na fronteira da Líbia e Tunísia como um ‘pesadelo logístico’.
Nessas crises sempre existe o medo de que ninguém vá estender a mão para os que estão passando fome. Por isso, a única maneira de chamar a atenção do mundo para situações de estresse humano é pelo uso de hipérboles e da palavra “crise”. Quem trabalha em assistência humanitária enfrenta constantemente esse obstáculo. Precisam alardear suas mensagens para chamar a atenção da comunidade internacional e angariar recursos. A maneira como o mundo reage a situações de sofrimento humano depende muito da publicidade que os desastres humanos conseguem na mídia. Não sou um estudioso de mídia e não tenho ideia de por que vocês reagem a uma crise, e não a outra. No tsunami, o mundo das celebridades conseguiu levantar bilhões de dólares. Em alguns casos, recursos chegam em demasia, mas existem muitas crises que se arrastam por anos. A ONU emite press releases sobre o que está acontecendo com os 230 mil somalis no acampamento Dadaab, no Quênia, (o maior campo de refugiados do mundo), mas nada é feito. Ninguém se importa. Essas pessoas comem 400 calorias por dia, o que está muito abaixo do mínimo de que o corpo humano necessita. Alguns campos de refugiados são verdadeiros depósitos humanos. E o que ouvimos? Silêncio.
O World Food Program alertou para um possível ‘efeito dominó’ econômico e social no Egito, uma vez que esses migrantes são a única renda das famílias e agora, voltando para casa, serão mais bocas para alimentar. Que impacto a repatriação de milhares de desempregados terá no Egito?
Essa é uma preocupação legítima porque 1, 5 milhão de egípcios trabalhavam na Líbia e muitos deles estão retornar, na pior situação possível, o que pode causar certa instabilidade no Egito. Considerando-se a população egípcia - 80 milhões - e os recursos do país, esse impacto pode ser gerenciado sem criar-se uma crise humanitária de grandes proporções. Mas o WFP está correto em se preocupar com essas pessoas que retornam. Elas não podem ser esquecidas. O regime de Mubarak pode ter sido decapitado, mas o Exército e a mubarocracia ainda estão no poder. As instituições políticas ainda funcionam e podem dar algum apoio para os repatriados. Para os tunisianos, a situação é parecida. O mesmo não pode ser dito para os líbios que ficarem no país. Para eles, a situação será mais difícil.
Mais difícil como?
Antes mesmo do início dos protestos, o país já tinha um sistema político frágil e, com a saída de Kadafi, será preciso recriar as instituições políticas de baixo para cima. Existe o risco real do esfacelamento do Estado, que só dificultará o atendimento humanitário à população. Não sei se a Líbia terá condições de manter o leste e o oeste unidos. Existem as divisões tribais e a coesão do país era mantida sob um regime centralizador brutal, que agora parece prestes a cair. Os líbios têm um ditador sangue-frio que está disposto a sacrificar sua população para se manter no poder. Mas, por outro lado, estão sendo tomadas ações sem precedentes que muito me impressionam. Os rebeldes estão organizados, militares desertaram de seus postos para lutar ao lado do povo e delegações diplomáticas líbias se recusaram a continuar representando Kadafi. Mas ainda não sabemos tudo que está se passando. Incidentes de retaliação coletiva contra os mercenários de Kadafi e contra africanos não árabes estão aparecendo. Entretanto, pelo que vimos até agora e considerando o tamanho da revolução no mundo árabe, acho que os líbios, egípcios e tunisianos precisam levar crédito pela maneira relativamente civilizada com que estão conduzindo a deposição de seus regimes.
O ministro de Relações Exteriores da Itália, Franco Frattini, disse que o país teme um ‘êxodo de proporções bíblicas’ que poderá deixar a Itália ‘de joelhos’. Ele também pediu que cada país europeu assuma sua cota de responsabilidade pelo líbios que desembarcaram na ilha de Lampedusa nos últimos dias. Como evitar um fluxo de refugiados para a Europa?
A Itália está, sem dúvida, preocupada porque ela é uma rota de trânsito de líbios e outros africanos para os países europeus. A Europa como um todo tem tentado barrar a imigração ilegal há pelo menos 20 anos. E, claro, a ajuda oferecida agora para conter a crise humanitária responde também a interesses próprios. É verdade que os campos de imigrantes pegos em trânsito estão na Itália, que é o país europeu que arca com o maior ônus da imigração ilegal. O que a Itália está fazendo é usar a crise na Líbia para divulgar um problema que se acumula há décadas e procurar dividir o peso com os demais membros do bloco, redistribuindo esses imigrantes por todo o continente. Mas, neste caso particular, a atitude dos italianos é um pouco exagerada. Isso porque a maioria das pessoas na fronteira é de egípcios e outros trabalhadores africanos que não parecem ter intenção de migrar para a Europa e sim voltar para suas casas. Não acho que nada aponte para uma migração em massa para a Europa. A situação tende a se estabilizar.
O premiê Silvio Berlusconi fez um acordo com Muamar Kadafi, em 2008, e com Zine El Abidine Ben Ali, em 2009, para que os países africanos fizessem sua parte para conter a migração ilegal. Em que medida as autocracias do Norte da África eram, de fato, aliadas dos europeus no controle migratório? Com a indefinição política nesses países, esses acordos podem ser rompidos?
Seja na divisa entre o México e os Estados Unidos ou em qualquer lugar onde existam grandes grupos de pessoas cruzando fronteiras, a maneira mais comum de governos tentarem conter o fluxo humano é pelo aumento das forças de patrulhamento das fronteiras. A Europa, desde 2003, tem tentado agir de forma diferente, por meio de acordos formais com os países emergentes. Quando o governo com quem você manteve negociações cai, os acordos caducam. E isso gera muita dor de cabeça. Numa situação de caos como na Líbia, esses acordos não significam nada e um período de incerteza se estabelece. Mas, quando a comoção acabar, seja qual for a forma de regime que se consolidará na Líbia, Tunísia e Egito, a Europa estará pronta para fazer de tudo para garantir a retomada dos antigos tratados de imigração e exigir que os novos governos árabes controlem suas fronteiras.
---------------------------------Fonte: http://www.estadao.com.br - 05/03/2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário