sexta-feira, 11 de março de 2011

O cético da vida singular

Filosofia: Paul Veyne traça em livro o retrato intelectual e afetivo
 de Michel Foucault, um dos maiores nomes do pensamento
francês no século XX.
Os cursos de Michel Foucault no Collège de France eram disputados por alunos
que chegavam a se estirar no chão para ouvi-lo falar
sobre a genealogia da noção de verdade


Paul Veyne escancara desde a primeira frase sua intenção ao escrever sobre o filósofo Michel Foucault: "Não, Foucault não foi um pensador estruturalista, não, ele também não está ligado a certo 'pensamento de 1968'; tampouco era relativista, historicista, não via ideologia em tudo", escreve o historiador na introdução de "Foucault: seu Pensamento, sua Pessoa" (Civilização Brasileira). Apesar de uma torrente quase constante de referências à vasta obra foucaldiana, persiste em torno do autor de "História da Loucura na Idade Clássica" e "Vigiar e Punir" uma atmosfera de polêmica que Veyne se dispõe a denunciar como mistificadora.
Veyne e Foucault conviveram ao longo de três décadas, desde 1954, quando o primeiro foi aluno do segundo na École Normale Supérieure, até o período em que ambos foram professores no prestigioso Collège de France, de 1970 a 1984, quando morreu o filósofo. Em diversos momentos, os dois trabalharam juntos, além de participarem regularmente dos debates organizados por Foucault em seu apartamento parisiense, referido pela intelectualidade da cidade pelo nome da rua: a frase "vamos à rue de Vaugirard" era uma convocação para comparecer à residência de Foucault.
A forte amizade que os ligou, a ponto de o historiador merecer do filósofo o jocoso título de "homossexual honorário", confere a Veyne o respaldo para produzir um ataque frontal à maneira como a figura e o pensamento do amigo são vistos até hoje. Foucault foi um dos principais alvos do livro "O Pensamento de 68", em que os filósofos Luc Ferry e Alain Renaut atacam as ideias, em sua definição relativistas, que circulavam nos ares universitários franceses da década de 1960 e nortearam a ação dos jovens revolucionários de maio de 1968. Com o recrudescimento do regime repressor de Teerã, não faltam críticos retrospectivos para denunciar a ingenuidade do filósofo que deu o aval à revolução islâmica do Irã, em 1979, encantado que estava pela sublevação popular e pela oratória inebriante do aiatolá Ruhollah Khomeini. Sua afirmação da "morte do homem", apresentada e desenvolvida em "As Palavras e as Coisas", de 1966, é alvo de todo tipo de objeções, na tentativa de demonstrar que o homem, figura sólida e segura para o discernimento das verdades que tecem a vida, é indispensável. Porém, o fio condutor da obra de Foucault é a demonstração de que essas verdades se constroem na medida de seu tempo e podem, portanto, assentar-se sobre muitos outros fundamentos. A noção moderna de "homem", na proposta de Foucault, serviria para sustentar uma forma de discurso, da mesma maneira que a noção pré-moderna de Deus antes dela e, portanto, outras noções em outros momentos e lugares.
Veyne, cuja especialidade é a história do período greco-romano, rejeita os rótulos que recaem sobre Foucault - o pensador que "matou o homem", o "campeão do relativismo histórico", o "último estruturalista" -, para defini-lo segundo uma figura que acompanha a filosofia desde a Antiguidade: o cético. Mas Foucault não seria nem o cético que "duvida de tudo", nem aquele que "suspende o julgamento" e encontra a paz na recusa ao conhecimento positivo. Seria, com sua paixão pela obra de Friedrich Nietzsche e o desafio de encontrar a fonte das verdades na própria terra e na vida de cada instante, "um ser duplo". "Enquanto pensa", sugere Veyne, "mantém-se fora do aquário e observa os peixes que ali ficam girando. Mas como é preciso viver, ele se vê novamente no aquário, peixe ele também".
Duvidar das "transcendências fundadoras" e, ao mesmo tempo, viver com a intensidade que a vida exige. Esse era o desafio de Foucault, que Veyne condensa na proposta de rejeitar toda verdade universal, atendo-se às verdades singulares, que se organizam de maneira universal segundo o "discurso" de cada sociedade, cada tempo ou cada grupo. É uma tarefa difícil, mas paralela à do pensamento contemporâneo a Foucault. São pensadores que, na esteira dos textos explosivos de Nietzsche, tentaram desenvolver sua filosofia segundo aquilo que Gilles Deleuze, também amigo e admirador de Foucault, denominou "plano de imanência". O século XX, segundo o antropólogo Patrice Maniglier, foi o período mais fértil do pensamento francês desde o Iluminismo e legou teorias amplas e desafiadoras, como o estruturalismo, o existencialismo e a desconstrução. Embora Foucault se inscreva nesse movimento, para Veyne seu traço principal era a independência.
O que resguarda o ceticismo de Foucault de cair na armadilha do niilismo, diz o historiador, é sua adesão inquestionável ao valor das singularidades, das práticas locais pelas quais se manifesta a liberdade humana. Como pesquisador, a orientação para o singular o levou a buscar em todo tipo de arquivos os traços da história, as tensões inevitáveis entre as pequenas verdades da liberdade humana e as "verdades universais" que formam o discurso de uma era. Daí o "método arqueológico" de sua obra. Veyne resume: "Pode ser que nenhuma de nossas opiniões sobre o verdadeiro, o bem ou o normal seja fundamentada, mas isso não nos impedirá de viver, nem de acreditar no normal, no bem e no verdadeiro. A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade".
Na vida pessoal e política, Foucault é apresentado por Veyne como alguém que simpatizava com as pequenas e inesperadas manifestações de liberdade humana, mas se afastava de qualquer programa político. Convivia com o corpo de pensadores da esquerda na universidade de Vincennes, mas mantinha uma distância segura de seus abaixo-assinados e cartas abertas. No entanto, participava com os estudantes de manifestações e reuniões, o que bastou para associar sua imagem ao maio de 1968.
A revolução islâmica do Irã, que derrubou o xá Reza Pahlavi em 1979, ilustra a atração de Foucault pela eclosão de revoltas populares. O filósofo apoiou com entusiasmo a sublevação dos iranianos contra uma monarquia que pouco mais era que um fantoche das potências ocidentais. Por outro lado, ao conhecer o líder da revolução, o aiatolá Khomeini, segundo Veyne, Foucault ergueu os olhos e disse: "Se tomasse o poder, seria de uma idiotice de fazer chorar". O aiatolá tomou, de fato, o poder, e seu regime segue de pé até hoje. Fazendo chorar. Agora, quando jovens árabes tomam as ruas de vários países para tentar derrubar seus ditadores, pode-se imaginar o entusiasmo com que Foucault acolheria as sublevações.
O filósofo teve uma morte precoce, em 1984, aos 57 anos, vencido por uma doença que já assustava, mas ainda não se compreendia: a aids. Trabalhou até o último momento, tentando completar o quanto pudesse de sua "História da Sexualidade". Diante da morte, Foucault teve mais uma oportunidade de exercer, sobre si próprio, o ceticismo mitigado de que fala Veyne. O historiador lhe perguntou se a aids existia mesmo ou era apenas uma lenda moralizadora. A resposta foi positiva: "Estudei a questão, li bastante coisa a respeito: sim, ela existe, não é uma lenda. Os médicos americanos estudaram isso de perto". Em 1984, o discurso em torno da síndrome ainda empregava o sintagma "câncer dos homossexuais". Aquém do discurso, porém, estava uma enfermidade que, de fato, matava.
----------------------------------
Reportagem por Diego Viana De São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 11/03/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário