domingo, 10 de julho de 2011

Maçãs

Rubem Alves*



Era Outono no Estado do Maine. Maine é um estado dos Estados Unidos, extremo Norte, Leste, muita neve, até aurora boreal... No Outono os bosques se incendeiam de cores brilhantes, especialmente os vermelhos e os amarelos. Disseram-me que naquele ano as cores estavam especialmente fortes. A beleza era tanta que doía: a última explosão do Inverno. Tempo de maçãs. No centro de meu pequeno apartamento, uma cesta cheia de maçãs vermelhas.
Para amenizar a solidão triste das noites passei a levar meus alunos para o meu apartamento. Ali eu dava minhas aulas. Meus estudantes espalhados pela sala.
Eu disse: "Amamos não a coisa mas as palavras que estão escritas nelas."
Um dos estudantes me olhou, pegou uma maçã, deu uma mordida e disse:
"Eu amo maçãs..."
O suco lhe escorria pelos cantos da boca enquanto ele me sorria de forma matreira. Entendi o que ele dizia sem palavras:
"Uma maçã é uma maçã: este fruto redondo, vermelho, suculento. Quando mordo uma maçã mordo uma maçã somente. Não sinto o gosto de palavra alguma em minha boca..."
Peguei a maçã de sua mão, o mesmo fruto, e dei outra mordida e disse:
"Eu também gosto de maçãs. Mas nós dois nunca poderemos comer o mesmo fruto, mesmo que a maçã seja a mesma, como esta. Esta maçã é moradora de dois mundos diferentes. A sua está cheia de memórias de outonos passados. Ela está cheia de folhas amarelas e vermelhas; e até mesmo uma brisa fria. Se se prestar bem atenção ela dirá o poema de Robert Frost:
"O hushed October moning mil,
Thy leaves have ripened
to the fall...
Tomorrow's wind, if it will,
Shall waste them all..."
Você não vê as cores? Não ouve o barulho que as folhas fazem sob os pés? Sua pele não se arrepia sentindo o vento?
Mas em volta de minha maçã gira outro universo que você nunca conhecerá...
Eu era um menino numa cidadezinha no Brasil. Ali as maçãs não cresciam. Eu nunca havia visto uma. Sabia o nome, da estória de Branca de Neve. Sabia também que elas cresciam em países distantes e que, para chegarem até onde eu vivia, teriam de fazer uma longa viagem de navio. Meu pai voltou de uma viagem e me trouxe presentes. Era véspera de Natal. Dos presentes não guardo memória alguma. Com exceção de uma maçã. Ela veio embrulhada num papel de seda amarelo. Eu não tinha coragem de comê-la, porque se a comesse eu a perderia. E eu pensava que, naquela cidade, eu era o único menino que tinha uma maçã.
Assim, fiquei polindo sua casca, para que brilhasse como um espelho, como uma forma de adiar seu fim inevitável. É, eu também gosto de maçãs... Mas, como você vê, a sua e a minha, muito embora sejam a mesma, moram em universos diferentes. Elas contam estórias diferentes...

***

"Parece que existe em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxuleante", disse Bachelard (Gaston Bachelard, A Chama de uma Vela, p.14). É "diante da página branca colocada sobre a mesa na justa distância da minha lâmpada que, realmente, estou à minha mesa de existência. Tudo em volta de mim é repouso, é tranquilidade; meu ser só, meu ser que procura o ser... Mas será que ainda há tempo para mim...?" (CV,p.112). Essa pergunta, "Será que ainda há tempo...?" é a pergunta de um homem que percebe que a vela está chegando ao fim.
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*Teólogo. Educador. Escritor e poeta das palavras.
Fonte: Correio Popular online, 10/07/2011
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