domingo, 3 de julho de 2011

UM AVANÇO FASCINANTE

Entrevista

DERRICK ROSSI

O cientista americano explica como gerou célula-tronco em laboratório, um dos feitos mais promissores no combate a doenças degenerativas como Parkinson e Alzheimer.
Quem entra no laboratório de pesquisa do biólogo Derrick Rossi, na Universidade Harvard, não encontra nada de especial. São bancadas com pipetas e tubos de ensaio, prateleiras atulhadas de frascos de reagentes. Ali, trabalham nove pessoas – seis com pós-doutorado, dois técnicos e um estudante, com orçamento anual de 1 milhão de dólares. Nesse ambiente austero, Rossi conseguiu um feito espetacular: criou um novo método, mais eficiente, menos perigoso e menos invasivo, de reprogramar células adultas, fazendo-as voltar a um estado infantil, quando têm a capacidade de se transformar em qualquer tecido do organismo humano. É o caminho mais promissor para a cura da doença como diabetes, Parkinson e Alzheimer. Em seu minúsculo e despojado escritório, ele deu a seguinte entrevista a VEJA.
O método com que o senhor gerou célula-tronco de pluripotência induzida animou os cientistas, mas, antes de mais nada, o que são células-tronco de pluripotência induzida? Essas células são conhecidas como iPS ( a sigla vem do nome em inglês: induced pluripotent stem cells) e foram geradas pela primeira vez em laboratórios pelo professor Shinya Yamanaka, da Universidade de Kyoto, no Japão. Em 2007, ele conseguiu pegar uma célula adulta comum e introduzir nela quatro fatores, fazendo com que ela voltasse ao estado pluripotente. O estado pluripotente é uma fase inicial da vida da célula, quando ela ainda tem a capacidade de se diferenciar em qualquer um dos diversos tecidos do organismo humano, como acontece com as células-tronco embrionárias. É o feito mais sensacional que já vi na biologia celular em toda a minha carreira. Mesmo hoje, revendo a pesquisa do professor Yamanaka, fico impressionado com o volume de conhecimento biológico que envolveu. É um trabalho brilhante.

Qual a diferença entre as células pluripotentes do professor Yamanaka e as suas? A diferença central está no método de reprogramar as células. Nosso método é mais eficiente. A taxa de sucesso de reprogramação celular do método de Yamanaka é de 0,1%. O nosso é pelo menos 100 vezes mais eficiente. Segundo ponto: nos experimentos do professor Yamanaka, a reprogramação usa um vírus como, digamos, meio de transporte. O vírus transporta os fatores para dentro da célula, alterando o seu genoma. O problema é que o vírus é um vetor indesejável, perigoso. Ele pode ativar ou desativar funções da célula, o que acaba resultando em doenças. No nosso caso, em vez de vírus, usamos um RNA sintético, que chega à célula de modo, por assim dizer, invisível. Por ser invisível, o RNA sintético não provoca nenhuma resposta antiviral da célula e, melhor ainda, também não altera o genoma da célula.

Qual a vantagem de evitar uma resposta antiviral e não alterar o genoma da célula? A vantagem está na segurança e no controle. O uso de vírus e a mudança do genoma são um risco. Podem levar as células a um desenvolvimento descontrolado, desordenado, resultando em câncer, o que inviabiliza seu uso em pacientes. No nosso método, isso não existe. O genoma da célula permanece inalterado. Quando nossa pesquisa foi publicada, a imprensa americana deu muita atenção a esses aspectos, que são realmente relevantes, mas acabou esquecendo um dado que, a meu ver, é ainda mais importante. Além de gerarmos iPS mais seguras, verificamos se as nossas células pluripotentes se transformavam nas células que quiséssemos. Em outras palavras, testamos se era possível direcionar a diferenciação das células pluripotentes para a linhagem que desejássemos. Fizemos a experiência induzindo a criação de células musculares, e deu certo. Criamos músculos.

"A ideia é chegarmos ao momento
em que poderemos pegar
uma célula-tronco da pele de um
paciente com um grave problema hepático e,
a partir dela, criar um fígado novo.
Será o auge da terapia celular"
Mas já houve experiências de criação de músculos em laboratório. Por que o senhor considera isso tão importante na sua pesquisa? Criamos músculos como prova de conceito, para verificar em termos práticos se nossas células iPS tinham mesmo o potencial que esperávamos. É razoavelmente simples criar músculos em laboratório porque envolve apenas um fator, e testamos nossa experiência com músculo exatamente por se simples. O conceito se comprovou. Isso é importante porque fechamos todo um ciclo: de uma célula adulta – no nosso caso, uma célula de pele – criamos uma célula pluripotente que direcionamos para que se transformasse em uma célula muscular, sem a presença do vírus e sem alteração no genoma. Agora, estamos trabalhando na geração de tipos mais complexos de células. Junto com Douglas Melton, diretor do instituto de células-tronco de Harvard, tentamos criar células beta do pâncreas, que produzem e liberam insulina. No meu laboratório, estamos trabalhando para fazer células-tronco hematopoiéticas, que dão origem ao sangue. Em parceria com outros laboratórios de pesquisa, estamos tentando criar cardiomiócitos, que são fibras do músculo cardíaco.

(...)

Qual o benefício mais imediato que sua descoberta pode trazer para pacientes? A curto prazo, as células iPS vão nos permitir pesquisar sobre doenças que, por qualquer razão, são difíceis de estudar. O diabetes Tipo 1, por exemplo, é uma doença que surge com um ataque autoimune massivo que, basicamente, mata as células beta, que fazem a insulina. Quando a criança é diagnosticada com diabetes tipo 1, a maioria das células beta já foi destruída. Como não podemos examinar o desenvolvimento da doença, fica difícil entendê-la. Até hoje não sabemos exatamente o que deflagra o ataque autoimune. Agora, com a tecnologia que criamos, será possível a curto prazo gerar células beta para estudar o diabetes tipo 1 e descobrir tratamentos mais eficazes. Isso vale para muitas outras doenças, como Parkinson ou Alzheimer. Estou falando apenas da biologia celular, mas essa tecnologia tem aplicação em 10 000 áreas da biologia. Nossa tecnologia levará, com certeza, a uma explosão de pesquisas.

Como seu método cria iPS semelhantes às células-tronco embrionárias, os cientistas poderão deixar de usar embriões humanos em pesquisas, encerrando a polêmica moral e religiosa sobre o uso de células embrionárias em laboratórios? Essas pesquisas seguem sendo fundamentais. Toda vez que surge uma experiência criando algo parecido com células-tronco embrionárias, a direita religiosa divulga a ideia de que vamos poder dispensar o uso de embriões. Foi o que aconteceu em 2002, quando Catherine Verfaillie descreveu na revista Nature uma nova classe de célula-tronco adulta com propriedades típicas de célula-tronco embrionária. Também foi o que aconteceu em 2007, quando o próprio Yamanaka gerou células pluripotentes. Agora, estão dizendo a mesma coisa. Se tivéssemos parado a pesquisa com embriões depois do trabalho de Verfaillie, Yamanaka não teria feito o seu achado. Sem Yamanaka, nós não teríamos feito o nosso. As células-tronco embrionárias são a medida-padrão das pesquisas em biologia celular. Sem elas, estaríamos trabalhando no escuro. A direita religiosa diz que é imoral usar embriões em pesquisas porque isso equivale a acabar com uma vida humana. Creio que é o contrário. Os embriões estão em clínicas de fertilização e foram descartados. O destino deles é a lata de lixo. É um imperativo moral que sejam aproveitados em pesquisas para o bem da humanidade. Imoral é jogá-los no lixo.

As células-tronco apareceram como a grande promessa da ciência, mas, como ainda não saíram do laboratório para o hospital, criou-se a sensação de fracasso. O que deu errado? A ciência demora - e é bom que demore, em nome da segurança. O transplante de medula óssea levou décadas. No ano 50, quando Donnall Thomas fez o primeiro transplante, que valeu o Nobel, não sabíamos nada sobre rejeição. O primeiro transplante foi feito entre gêmeos idênticos. Aos poucos, fomos entendendo o processo. Hoje, são realizados cerca de 30 000 transplantes de medula óssea por ano nos Estados Unidos, mas, para chegar a isso, foram anos e anos de estudo. Temos todos os motivos para estar otimistas com as células iPS, mas não vamos ignorar a realidade. Tenho recebido muitas cartas e e-mails de gente que tem um amigo, um filho, o marido doente, perguntando se as iPS podem ser usadas para ajudá-los. Não chegamos lá ainda. A pior coisa que pode acontecer é a terapia ser aplicada cedo demais e matar pacientes. Isso faria parar tudo por anos a fio. Precisamos dar tempo à ciência.

Em algum momento, a terapia celular vai criar órgãos humanos inteiros, como um rim ou um fígado, ou isso é ficção científica? Creio que será possível, sim. Já fazemos isso com o sangue. O sangue, embora não pareça, é um tecido. Quando transplantamos células que formam sangue – as chamadas células hematopoiéticas – de uma pessoa para outra e reconstituímos o tecido, estamos criando sangue. Talvez, o sangue sejam um tecido especialmente fácil de criar porque não tem veias nem nervos, mas o fato é que pequenos organoides são desenvolvidos toda hora. Não são órgãos inteiros, mas têm as propriedades de um órgão. A criação de um rim ou um fígado, contudo, é coisa para longo prazo. A ideia é chegarmos ao momento em que poderemos pegar uma célula-tronco da pele de um paciente com um grave problema hepático, digamos, e a partir dela criarmos um fígado novo. Será o auge da terapia celular, mas é para longo prazo. Não sabemos como criar um fígado. É preciso reproduzir vasos, nervos, toda uma estrutura. É difícil chegar lá. A vida é complexa, mas estamos cada vez mais perto.
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Reportagem de ANDRÉ PETRY, de Boston
Fonte: Revista VEJA impressa (reportagem completa). Ed. nº 2224, 06 de julho de 2011, paginas amarelas.
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