sexta-feira, 31 de julho de 2009

A esquerda é burra?

Boaventura de Sousa Santos*
Tragicamente para FHC
e seus aliados a frase de autoria do
ex-presidente brasileiro mostrou-se errada
em todos os seus significados desde
a eleição de Lula até à crise do
agora defunto (ressuscitará?)
neoliberalismo.


A frase “a esquerda é burra” é de autoria de Fernando Henrique Cardoso (FHC), sociólogo de renome internacional e Presidente do Brasil entre 1995 e 2003. Ficou famosa pelo simplismo com que desqualificava os adversários das políticas neoliberais do seu governo. Curiosamente tais políticas desqualificavam tudo o que ele antes tinha escrito enquanto sociólogo, o que o levou a pronunciar outra frase que ficou igualmente famosa: “esqueçam tudo o que eu escrevi”.
Tive ocasião de discutir com ele o significado da frase sobre a esquerda. Discordava do seu sentido mais óbvio e intrigava-me a sua arrogância. Para FHC a frase tinha vários significados: a esquerda ainda não entendera que o neoliberalismo era a única solução para a economia mundial e a melhor garantia contra as propaladas crises do capitalismo; o principal líder da esquerda, Inácio Lula da Silva, era um operário ignorante e sem preparação para governar o país; a esquerda estava minada pelo fraccionismo e nunca se uniria (ao contrário da direita) para assumir o poder. Tragicamente para FHC e seus aliados a frase mostrou-se errada em todos os seus significados desde a eleição de Lula até à crise do agora defunto (ressuscitará?) neoliberalismo.
Mas, apesar disso, a frase ficou como um fantasma da esquerda brasileira, como se a esquerda tivesse de demonstrar a cada momento que não era burra e como se o mesmo ônus não impendesse, por outras razões mas com a mesma justificação, sobre a direita, ela sim, afinal perdedora. É sabido que os fantasmas, tal como os espíritos, atravessam tempos e fronteiras. Tal como discordei da caracterização simplista da esquerda brasileira, discordaria dela se aplicada à esquerda portuguesa. Apesar disso, ante os atos eleitorais que se aproximam, pergunto-me se, a título preventivo e como dúvida metódica, não fará sentido pôr a questão: será a esquerda portuguesa burra? Ou melhor: nos próximos atos eleitorais quem se revelará menos burra, a esquerda ou a direita?
Ao contrário dos confusionistas do costume, dou de barato que há esquerda e direita. Tanto uma como outra são plurais, estão divididas em vários partidos e em várias tendências dentro de cada partido. Se tomarmos como referência as últimas eleições para o parlamento europeu e talvez a maioria dos actos eleitorais desde o 25 de Abril de 1974, os portugueses votam majoritariamente à esquerda. De algum modo, a ideia de solidariedade social tem-se sobreposto à de darwinismo social, a ideia de um Estado protetor à ideia de um Estado predador, a ideia do bem público à ideia do interesse privado. E se é verdade que a esquerda governante tem frustrado consistentemente as expectativas que decorrem destas ideias, não é menos verdade que os portugueses têm teimado em crer que tal não é uma fatalidade e que a direita não oferece uma alternativa exceto em desespero de causa.
Daí que as frustrações com a esquerda governante se tenham traduzido, menos no crescimento da direita, do que no crescimento de opções pela esquerda até agora não governante, um fenômeno inédito na Europa de hoje. Em face disto, e a menos que os portugueses se sintam numa situação de desespero de causa, podemos concluir que, se nos próximos atos eleitorais a direita ganhar, a esquerda é mais burra que a direita.
Nas condições portuguesas, a esquerda corre o risco de ser mais burra que a direita por duas razões principais: confundir-se com a direita; dividir-se ao ponto de não poder unir-se no principal: impedir a eleição de um governo de direita. Pelo que disse acima, quando a direita tenta se confundir com a esquerda (o que tem acontecido frequentemente) corre sempre menos riscos que a esquerda quando esta se confunde com a direita. Por outro lado, a direita tem uma história unitária muito mais consistente que a esquerda. Para que estes riscos se não concretizem, as esquerdas têm de mostrar aos portugueses que o coração da esperança continua a bater mais fortemente que o coração do desespero. Não é tarefa fácil mas não é impossível. E isto que é válido para as eleições legislativas é igualmente válido para as eleições autárquicas. No que respeita a estas últimas, o caso de Lisboa será paradigmático. Parece óbvio que só por desespero se pode votar no candidato da direita. Por sua vez, o candidato principal da esquerda é um dos mais brilhantes políticos da nova geração de líderes de esquerda, só comparável ao líder da esquerda mais inovadora da última década. Se ele sair derrotado nas próximas eleições, obviamente a esquerda é burra. Espero vivamente que tal não seja o caso.

*Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4409 29/07/2009

O Livro das citações

''Que outros se jactem das
páginas que escreveram.
A mim me orgulham
as que tenho lido''
Jorge Luis Borges, escritor

O economista Eduardo Giannetti, que escreveu um livro só de citações, dá uma entrevista em que citações substituem as perguntas. E também o título

Dizer que o economista Eduardo Giannetti escreveu um novo livro é força de expressão. Seu O Livro das Citações se compõe apenas disto: citações. O prefácio é um conjunto de citações. O posfácio também. E os capítulos do livro, que agrupam os trechos por temas, não trazem nenhuma abertura, ou reflexão, que tente dar liga ao todo. Estão lá apenas as citações. Citações colecionadas diligentemente ao longo de 30 anos desde que o autor, ainda na graduação, decidiu anotar em cadernos todos os trechos que lhe causavam forte impressão, com o intuito de melhor absorver o conteúdo das matérias da faculdade. Inspirada em O Livro das Citações, BRAVO! resolveu elaborar uma entrevista sem perguntas só citações.

BRAVO!: "Toda gente vive apressada, e sai-se no momento em que devia se chegar", Marcel Proust, escritor. "Toda forma de pressa, mesmo que voltada para o bem, trai alguma desordem mental", E. M. Cioran, filósofo.
Eduardo Giannetti: O tema do tempo é recorrente. O curioso é ver autores do século 19 já com preocupações muito próximas das que nós temos hoje. Enquanto fazia o livro, às vezes me perguntava: se isso aqui fosse escrito hoje, numa revista ou num jornal, sem o autor e sem a data, pareceria que estava falando diretamente de nós. Na questão do tempo, vivemos um paradoxo. Criamos toda uma tecnologia em nome da economia de tempo. A gente viaja de jato, tem forno de microondas, tem equipamentos de comunicação instantâneos, carros velozes, tudo! E, no entanto, quanto mais nós economizamos tempo, mas ele parece nos faltar.

"No que consiste o conhecimento? Quando você sabe alguma coisa, reconhecer que sabe; e, quando você não sabe alguma coisa, reconhecer que não sabe", Confúcio, filósofo. "Na verdade só sabemos quão pouco sabemos com o saber cresce a dúvida", Goethe, escritor. "Nós somente possuímos convicções sob a condição de nada termos estudado plenamente", E. M. Cioran.
Eduardo Giannetti - Um dos objetivos do livro é justamente fazer esse diálogo de citações e isso deu muito trabalho. Rejeitei o critério cronológico, que tivesse uma pretensão de sistematicidade que transformaria o livro num daqueles dicionários de citação no modelo da Universidade de Oxford. Ao rejeitar esse critério, surgiu a questão: qual é a seqüência em que essas citações devem ser ordenadas? O meu ideal era que cada citação dialogasse com a anterior e a posterior. Que o encadeamento fosse totalmente coerente, que a liga fosse bem resolvida. Um encadeamento estruturado em que uma citação dialoga com a que precede e com a que a sucede, de maneira contínua, sem cortes abruptos. Em alguns capítulos, acho que cheguei perto. Em outros, quando releio, eu falo: "Não. Aqui há um buraco". Talvez esteja faltando alguma citação que eu desconheço e que me permitiria fazer a transição suave.

"Aquele que ama é um ser mais divino do que o amado, pois está possuído por um deus. (...) Concluo, portanto, que Eros é o mais antigo, o mais honorável e o mais capaz entre os deuses de propiciar a virtude e a felicidade dos homens, seja durante a vida, seja após a morte", Platão, filósofo. "No amor basta uma noite para fazer de um homem um deus", Propércio, poeta. "Quando não se ousa amar sem reservas é que o amor já está muito doente", Goethe. "O amor é o desejo de alcançar a amizade de uma pessoa que nos atrai pela beleza", Cícero, filósofo e político.
Eduardo Giannetti - Aí temos mais do que um diálogo de citações. O que aparece é a noção da idéia replicante. São idéias muito poderosas que vão adquirindo, ao longo das gerações, novas configurações e novas formulações. A citação de Cícero é maravilhosa, não? É o tipo de passagem que, quando você lê, se pergunta: "Como é que eu não escrevi isso?".
"Dizem que no Brasil as pessoas só morrem de velhice; o que se atribui à pureza e à calma do ar que respiram, e que, a meu ver, provém antes da serenidade e da tranqüilidade de suas almas isentas de paixões, de desgostos, de preocupações que excitam e contrariam", Montaigne, escritor.
Eduardo Giannetti - O Montaigne está usando o Brasil para se contrapor ao Shakespeare - que, em A Tempestade, criou uma figura nada serena do homem tropical, que é o Caliban. Que é puro sexo, drogas e rock'n'roll. Caliban é um pacote de vícios condenáveis pela moral puritana. Eu acho incrível o Próspero ter ficado furioso com ele. Próspero pegou um índio caribenho e o colocou numa gruta junto com a sua filha virgem, adolescente. E depois ficou furioso com ele quando ele tentou fazer amor com ela. Eu me pergunto o que seria mais monstruoso: ele tentar ou não tentar?

"O modo de produção capitalista pressupõe o domínio do homem sobre a natureza. Uma natureza excessivamente pródiga 'mantém o homem preso a ela como uma criança sustentada por andadeiras'", Karl Marx, economista e filósofo. "A pátria do capital não é o clima tropical com sua vegetação exuberante, mas a zona temperada", Karl Marx.
Eduardo Giannetti - É a idéia recorrente de que a natureza mantém o homem tropical infantilizado. É uma natureza tão exuberante, e tão avassaladora, que quem mora nela se sente pequeno como uma criança. Por isso, não surge aqui o capitalismo. O capitalismo surge num clima temperado. Agora, na mesma linha, para o Marx não ficar mal na foto, seria legal citar o Noel Rosa, o único compositor popular que entra no livro.

"A minha terra dá banana e aipim, meu trabalho é achar quem descasque por mim", Noel Rosa, músico.
Eduardo Giannetti - O Marx, claro, não sabia nada sobre os trópicos. Ele tinha uma certa desconsideração pelo conhecimento direto. Escreveu volumes e volumes sobre o mundo da fábrica, até bons, com muita informação relevante, mas não tinha a humildade que um Adam Smith tinha, por exemplo. Quando quis falar sobre uma fábrica de alfinetes, Smith foi conhecer uma. Marx, não. Ele era contra o empirismo clássico. Esses alemães olham para os empíricos como se fossem rústicos. Gente estranha que vai visitar fábricas, visitar tribos, essas coisas.

"Tenho visto óperas na Inglaterra e na Itália; são os mesmos enredos com os mesmos atores: mas a mesma música produz efeitos tão díspares nos habitantes dessas duas nações que parece inconcebível uma delas tão calma, a outra tão entusiástica", Montesquieu, filósofo. "Os franceses freqüentemente falam todos ao mesmo tempo quando estão juntos. Suas conversações são ruidosas. Em meio a um grupo de ingleses, ao contrário, pelo silêncio que reina, seria possível dizer que temem se distrair uns com os outros. Os franceses, pelo barulho que fazem, não se entendem; os ingleses não dizem uma palavra: o que dá praticamente no mesmo", Nicolas Trublet, abade.
Eduardo Giannetti - Só para completar a sua coleção com mais uma que eu acho memorável, do Adam Smith, sobre ingleses e italianos: "Um italiano revela mais emoção ao receber uma multa de 20 libras do que um inglês ao ser condenado à pena de morte". O tema da identidade nacional era muito mais presente nos séculos 18 e 19 do que atualmente. Em grande medida, talvez por influência do marxismo, que suprimiu a legitimidade de uma consideração mais atenta às diferenças de culturas nacionais. No século 20, a questão do caráter nacional virou meio tabu. Uma vez eu tive a temeridade de perguntar para o Roberto DaMatta se o trabalho dele, no fundo, não estava resgatando essa idéia de caráter nacional. Ele ficou furioso! Ele acha isso uma coisa antiga, detestável, comprometida, embora trabalhe sistematicamente com o assunto. Há que se reconhecer que esse campo se presta muito a divagações impressionistas; não é à toa que se tornou um assunto tão delicado e tão escorregadio."
No despontar da juventude eu havia deploravelmente faltado. Rezava a Deus pela castidade e dizia: 'Dai-me a castidade e a continência, mas não já'. Pois temia que Deus atendesse prontamente às minhas preces, e cedo demais me curasse da enfermidade da lascívia, a que desejava satisfazer, não suprimir", Santo Agostinho, filósofo.
Eduardo Giannetti - Esta frase tem muito a ver com meu livro O Valor do Amanhã. Quando você escreve um livro, lê muito sobre um assunto, reúne muito material. E, na verdade, o que acaba sendo usado é uma proporção muito pequena do trabalho de pesquisa que você fez. Então, às vezes, eu realmente ficava me lamentando por não ter conseguido incorporar mais do que eu tinha pesquisado no trabalho final que acabou sendo publicado. O Livro das Citações me deu a chance de usar e organizar muito material de Auto-Engano, de Felicidade, de O Valor do Amanhã. O outro lado dessa moeda é que eu espero que este livro seja também o fim de uma etapa na minha atividade autoral. Eu não pretendo mais citar daqui pra frente. Você teria uma citação para encerrar a conversa?
"Que outros se jactem das páginas que escrevemos. A mim, me orgulham as que tenho lido" - Jorge Luis Borges, escritor.
Reportagem de João Gabriel de Lima - Revista BRAVO 08/2008- Acesso 31/07/2009

Um círculo vicioso mortal

Leonardo Boff *


Estamos todos sentados em cima de paradigmas civilizacionais e econômicos falidos. É o que nos revela a atual crise global com suas várias vertebrações. Nada de consistente se apresenta como alternativa viável a curto e a médio prazo. Somos passageiros de um avião em vôo cego. O que se oferece, é fazer correções e controles à la Keynes, que, no fundo, são mudanças no sistema mas não do sistema. Mas é este sistema que comparece como insustentável, incapaz de oferecer um horizonte promissor para a humanidade. Por isso, a demanda é por um outro sistema e um outro paradigma de habitar este pequeno, velho, devastado e superpovoado planeta. É urgente porque o tempo do relógio corre contra nós e temos pouca sabedoria e parco sentido de cooperação.
Em razão dos interesses dos poderosos que não fazem o necessário para evitar o fatal, as soluções implementadas mundo afora vão na linha de "mais do mesmo". Mas isso é absolutamente irracional pois foi esse "mesmo" que levou à crise que poderá evoluir para uma tragédia completa.

Estamos, pois, enredados num círculo vicioso letal. Dois impasses estão à vista, gostem ou não os economistas, "os salvadores" do mundo: um humanitário e outro ecológico.

O primeiro é de natureza ética: a consciência planetária, surgida à deriva da globalização, suscita a pergunta: quanto de inumanidade e de crueldade aguenta o espírito humano ao verificar que 20% das pessoas consome 80% de toda a riqueza da Terra, condenando o resto à cruz do desespero, encurralada nos limites da sobrevivência? Esta aceitará o veredito de morte sobre ela? Ela resiste, se indigna e, por fim, se rebelará por instinto de sobrevivência O ideal capitalista de crescimento ilimitado num planeta limitado parece não ser mais proponível ou só sob grande violência.

O segundo é o limite ecológico. O capitalismo criou a cultura do consumo e do desperdício cujo protótipo é a sociedade norte-americana. Generalizar esta cultura - cálculos foram já feitos - precisar-se-iam de duas ou mais Terras semelhantes à nossa, o que torna o propósito irrealizável. Por outra parte, encostamos nos limites dos recursos e serviços da Terra e os ultrapassamos em 40%. Todas as energias alternativas à fóssil, mantido o atual consumo, atenderia somente 30% da demanda global. Como se depreende, dentro do mesmo modelo, somos um sapo sendo lentamente cozido sem chances de saltar da panela.

Há três propostas criativas: a da economia solidária que não mais se guia pelo objetivo capitalista da maximização do lucro e de sua apropriação individual. A do escambo com as moedas regionais. A terceira é a da biocivilização e da Terra da Boa Esperança, do economista polonês que dirige um centro de pesquisa sobre o Brasil em Paris: Ignacy Sachs. Ela confere centralidade à vida e à natureza, tendo o Brasil como o lugar de sua antecipação. As três são possíveis mas não acumularam ainda força suficiente para ganhar a hegemonia.

Talvez elas nos poderiam salvar. Mas teremos tempo hábil? Bem dizia Gramsci: "o velho não acaba de morrer e o novo custa em nascer". Não se desmonta uma cultura de um dia para outro. Quem está acostumado a comer bife de filé dificilmente se resignará a comer ovo.

Meu sentimento do mundo diz que vamos ao encontro de uma formidável crise generalizada que nos colocará nos limites da sobrevivência. Chegando a água ao nariz, faremos tudo para nos salvar. Possivelmente seremos todos socialistas, não por ideologia mas por necessidade: os parcos recursos naturais serão repartidos equanimemente entre os humanos e os demais viventes da comunidade de vida.

Santo Agostinho sabiamente ensinou que dois fatores ocasionam em nós grandes transformações: o sofrimento e o amor. Devemos aprender já agora a amar e a sofrer por esta única Casa Comum a fim de que possa ser uma grande Arca de Noé que albergue a todos. Então será, sim, a Terra da Boa Esperança, um sinal de um Jardim do Éden ainda por vir.

* Teólogo, filósofo e escritor
http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=40171

O poder e o perigo das massas

Entrevista com Andrea Cavalletti*


Por que falar, hoje, de classe? Ela desapareceu da cena política e teórica que a havia mantido firmemente por mais de um século. Desde que Marx viu no conflito entre as classes o motor da história, fileiras de políticos e estudiosos (não só marxistas) consideraram os operários, o proletariado urbano, como os heróis do progresso e das mudanças sociais, objeto também de uma poderosa mitologia (a "rude raça pagã" de Mario Tronti). As transformações da economia das últimas décadas deram um fim a tudo isso e deixaram a palavra "classe" sozinha na boca de alguns irremediáveis nostálgicos.
Eis que, pelo contrário, um filósofo de 40 anos, Andrea Cavalletti, dedica um livro ao tema, intitulado justamente "Classe" (Editora Bollati Borighieri, 160 p.). Que não tem nada de "retrô" e contém, pelo contrário, uma perspectiva inédita que ilumina de modo surpreendente também o nosso presente, deixando para trás os textos da tradição econômica e sociológica e adotando, ao invés, os instrumentos conceituais da filosofia, da literatura e da psicologia.Cavalletti nasceu em 1967, estudou urbanística com Bernardo Secchi, filosofia com Giorgio Agamben, ocupou-se do estudioso do mito Furio Jesi, editando algumas de suas obras. Depois de um longo período na Alemanha, hoje ensina estética na Universidade IUAV de Veneza [Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza] e vive em Bolonha.
Eis a entrevista.
Professor Cavalletti, dedicar um livro hoje à classe pode parecer uma operação quase bizarra.
Com efeito, é uma palavra "impronunciável". Mas aqueles que, depois de tanto uso, a abandonaram por vergonha, arrependimento, embaraço também a libertaram para um novo uso que não é mais ideológico. Eu parti de uma nota de Walter Benjamin que me pareceu de uma atualidade fulgurante, na qual ele defende que é a solidariedade que transforma a massa informe em classe revolucionária.
O que significa?
A massa é mantida unida por sentimentos como a inimizade e o medo. A solidariedade rompe esse mecanismo e cria a consciência de classe. Vice-versa, quando esta não existe, só existe a massa indistinta pequeno-burguesa, a multidão perigosa.
Por que o senhor julga essa intuição tão importante?
Benjamin escreveu isso em 1936. O seu texto inverte todas as definições que queriam ancorar a classe operária no dado sociológico ou econômico. E também a ideia de Lukács que identificava a consciência de classe na consciência do processo histórico. A data é decisiva, pela lucidez com que Benjamin se dá conta de que justamente aquelas massas que deveriam assegurar a marcha rumo à revolução proletária dão vida, pelo contrário, a um agregado criminoso que leva ao nazismo. Ainda em 1936 sai o filme de Fritz Lang, "Fúria". Há uma cena crucial, quando os habitantes da cidade veem a filmagem que os faz recuar enquanto tentam linchar Spencer Tracy. E se assustam consigo mesmos quando agem como uma multidão.
Por que tudo isso também é de grande atualidade?
Pode-se ler naquela nota: "As manifestações da massa compacta revelam sempre um pânico tenso, independentemente se nele se expressa o entusiasmo bélico ou o ódio pelos judeus". E, acrescenta, a multidão está sempre latente. Como não pensar nessas palavras quando lemos notícias como a dos coquetéis molotov lançados contra um campo nômade em Nápoles? Hoje, essa multidão perigosa, me parece, é o verdadeiro espaço da política, habitada como ela é por uma força que pressiona por dentro com as rondas e por fora com as rejeições aos imigrantes.
Uma sociedade que se sente "sob assédio".
Estamos diante de uma pequena burguesia "ilimitada", não ligada à economia da produção, mas sim aos mecanismos de financiamento dos consumos, que reage não tanto quando sente ameaçadas as bases materiais da existência, a subsistência, mas sim quando é colocado em discussão o modelo de vida complexo que se manifesta, justamente, no consumo e no tempo livre.
E a crise econômica está destinada a agravar essas inseguranças ou a colocar esse modelo em crise?
Naturalmente tudo se torna mais duro em tempos de crise. E a reação do indivíduo poderia soar assim: vocês me ensinaram a ter medo de tudo, e o desastre financeiro e econômico do qual vocês têm a responsabilidade me assusta ainda mais. De qualquer modo, portanto, estimular a percepção de um perigo sempre pronto a atacar, a técnica usada para manter as massas em um perene estado de multidão (com a ilusão de controlá-las), pode se voltar contra quem o coloca em prática.
O senhor destaca a importância da relação entre a massa e o líder.
A multidão não precisa de um chefe. Aqui, Benjamin também vê muito bem as mudanças em curso e explica que o novo político não é o parlamentar tradicional, mas um homem que "deve estar diante das câmeras". Antes dele, autores como Le Bon haviam visto só a manobrabilidade das massas por parte dos líderes. A novidade da sua análise está em compreender que a influência é recíproca.
Fala-se de sugestão.
É o conceito chave. A multidão é sugestionável, mas, por sua vez, quem a guia também o é e, ao invés, acaba muitas vezes por satisfazê-la. A figura do demagogo já tinha preocupado diversos autores. Bernheim falava de um "imbecil instintivo" que sempre precisou de uma roda de fiéis. Tarde havia indicado o palhaço carismático.
Figura que podem ser encontradas no presente?
Talvez, mas eu vejo, de todo modo, duas novidades substanciais. O mecanismo de sugestão e de autossugestão é tão desenvolvido que a política hoje pertence àqueles que se convencem daquilo que dizem. Depois, a multidão é modelada pelo "encanto da empresa". O estilo de sugestão dominante em toda a sociedade é o empresarial. A consequência natural é que o líder seja um empresário, como Berlusconi.
A massa e a multidão são o destino inexorável da sociedade contemporâneo ou há alguma esperança?
A atualidade da multidão e a da classe são a mesma coisa. A solidariedade que transforma uma na outra é só uma possibilidade, mas ela sempre existe. O fato de que algumas pessoas dediquem o seu tempo livre aos direitos dos imigrantes ou que outros entrem em greve pelos trabalhadores temporários (talvez contra os seus próprios interesses) está ali demonstrando isso.
Mas não se trata de algo que apresenta o risco de se limitar ao testemunho sem provocar qualquer mudança?
Mesmo só o testemunho de um modo de vida diferente do dominante é importante. Insisto no fato de que quem faz essas escolhas as faz por prazer, por amor à vida, e não por um "sacrifício bondoso", uma exigência moral abstrata. É a prova de que existem exigências irredutíveis que não devem ser satisfeitas pelo dispositivo social em que vivemos. E que, nesse mecanismo, abrem-se rachaduras.
*A reportagem é de Leopoldo Fabiani, publicada no jornal La Repubblica, 30-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
IHU/Unisinos, 31-07-2009

8 falhas para fracassar

Raúl Candeloro*

Todos desejamos obter sucesso em nossos projetos, metas e objetivos. Nos esforçamos e buscamos o que queremos, mas, às vezes, cometemos erros que fazem com que toda a nossa dedicação seja em vão. Quer evitar isso? Conheça as principais falhas que levam ao fracasso e evite-as!
1. Não estabelecer seu objetivo – É muito mais difícil alcançar o que quer quando você esquece de responder estas perguntas ao definir suas metas: o quê, por quê, onde, quem, quando, como e quanto custará para atingir o que deseja.
2. Não confiar em si mesmo – Se você não acredita que é capaz de conquistar o que se propõe, como se esforçará para obter o que quer?
3. Não respeitar regras – Caso ache que regras não servem para você, pense novamente. Quebrá-las continuamente é a melhor maneira de ser despedido.
4. Não se dar bem com os outros – Aprenda a lidar com as pessoas, sejam elas colegas, clientes ou chefes. Trabalhe em equipe na empresa e seja parceiro de seus clientes.
5. Não entregar o prometido – Não cumprir suas promessas, tanto para seu chefe como para colegas ou clientes, é um desastre do qual você pode não ter a chance de se recuperar.
6. Não entender que quanto mais trabalha, mais sorte tem – Olhe para as pessoas que você acha que têm sorte. Elas, ou alguém em suas famílias, com certeza, em algum momento deram um duro danado.
7. Não se responsabilizar – Não culpar os outros e aceitar a total responsabilidade é o ponto de partida de qualquer sucesso. Fazer algo com isso é o caminho. Agir é o prêmio, e não o dinheiro, que é resultado de uma ação perfeita.
8. Não persistir – Você não pode desistir diante do primeiro "não" ou obstáculo. Tenha a paciência necessária para aguardar melhores condições e resultados.
Um grande abraço!

Revista Motivação - matéria publicada em: 03/10/2008

http://www.motivaonline.com.br/php/materia.php?id=44341

Raúl Candeloro é palestrante e editor das revistas VendaMais, Motivação e Liderança. Autor de vários livros, é também mestre em Empreendedorismo pelo Babson College.E-mail:
raul@vendamais.com.br

O 'mestre ignorante', de Jacques Rancière

Provas técnicas de uma
"revolução cultural"
para anular a hierarquia
entre professores e alunos.
Uma provocação que atravessa os
muros das universidades,
envolve os lugares da produção e
tira de cena a paixão pela desigualdade
que domina a vida nas
sociedades contemporâneas.
Páginas que merecem ser lidas mais vezes para se compreender o porte da "revolução cultural" proposta por
porque supera os limites dentro do quais o seu autor queria constrangê-la.*
No livro "O mestre ignorante" (Editora Autêntica, 2002), o filósofo francês aponta o dedo contra a "paixão pela desigualdade" que domina a cena política nos países capitalistas, oferecendo ao mesmo tempo uma mudança radical de roteiro, em que os papéis da divisão social do trabalho são simplesmente anulados.
A cena da qual Rancière parte é uma sala escolar, onde a figura do professor perde a aura do depositário do saber e – o que é mais importante – do poder único de indicar o caminho para acessá-lo. Um mestre que se considera único possuidor do conhecimento ajuda a perpetuar a "paixão da desigualdade" e a dividir a sociedade em sábios e ignorantes, em meritórios e "inúteis". E, visto que no capitalismo a unidade de medida da inteligência é dada pela posição ocupada na hierarquia social, o ensino é parte integrante da divisão da sociedade em classes.
Uma tese em que são fortes os ecos da crítica à escola de classes de 1968, mas Rancière parte habilmente de uma experiência amadurecida nos anos da derrota da Revolução Francesa e da restauração para estender o fio condutor da igualdade que une a tomada da Bastilha, o nascimento, o eclipse político do movimento operário e as teorias radicais do início do milênio.
A tríade liberdade, igualdade e fraternidade que servem de moldura para as discussões nos clubes republicanos e na assembléia nacional francesa, nas sedes operárias ou nas barricadas do quarteirão Latino sempre tiveram como fundo o acesso ao conhecimento, porque é por meio da cultura que os homens e as mulheres podem transformar os ideais republicanos ou de igualdade em normas que regulam o processo de transformação da sociedade.
De Paris a Louvain
É esse primado do ensino na formação de uma subjetividade política assinalado por Rancière que fornece ao pensamento crítico elementos importantes na crítica contemporânea ao "progressismo" de quem quer educar o povo para a liberdade e para o pensamento conservador, que considera a desigualdade como um fator congênito à natureza humana. Mas também porque o texto do filósofo francês fornece instrumentos sofisticados para a crítica da produção capitalista do saber e do conhecimento.
Nessa realidade em que a universidade funciona segundo uma lógica capitalista, a partilha do saber e o cancelamento da distância entre professores e alunos devem ser consideradas certamente como variações sobre o tema da crítica à mercantilização da cultura, mas também como o terreno da crítica à produção de mercadorias justamente pela centralidade do saber na sociedade do capital.
Um protagonista indiscutível do livro é Joseph Jacotot, republicano que foi obrigado pela restauração ao exílio nos Países Baixos, onde chegará a ser cátedra na Universidade de Louvain. Não sabia a língua e teve que aprendê-la rapidamente. Para fazer isso, leu um livro em francês que tinha uma tradução na língua do país hóspede ao lado e tentou aplicar com os estudantes o método usado por ele mesmo. É o primeiro passo para focar a figura do "mestre ignorante", que aceita o desafio de subverter a hierarquia tradicional entre o sábio e o ignorante.
O mestre, para Jacotot, é, além disso, aquele que abole a distância entre aprender e compreender. Mas nesse cancelamento da distância, é preciso agir às apalpadelas, "observando, recordando, repetindo, fazendo e verificando e refletindo" sobre o que, até agora, foi feito. Um método que o republicano derrotado mas não resignado chama de "método do acaso", em que não há a necessidade de nenhum mestre, só uma forte vontade e convicção da igualdade de todos os homens e mulheres.
O bom professor é, portanto, aquele ou aquela que tem como objetivo não tanto transmitir aos alunos aquilo que estes ignoram, mas fornecer a chave de acesso à sua emancipação, obrigando-os a usar a sua inteligência, que é igual em todos os humanos, mesmo que desigual nas suas manifestações.
O bom mestre é quem interroga e verifica com atenção a manifestação da inteligência, porque é preciso inverter o lema cartesiano "penso, logo existo" para "eu sou homem e por isso existo". Todos, assim, são capazes de pensar. O acesso ao saber e ao conhecimento é um ato de emancipação, não porque há uma figura institucional que a legitima, porque expressa uma vontade de tomar a palavra para afirmar a própria liberdade e a própria singularidade dada pela "desigualdade nas manifestações" da inteligência, igual em todos os homens e mulheres.
Pedagogia da libertação
O texto de Jacques Rancière foi escrito na segunda metade dos anos 80, isto é, no azimute da contrarrevolução neoliberal. Por isso, está marcado pela necessidade política de fazer frente à derrota dos movimentos sociais radicais e de inovar o pensamento crítico.
A escolha de propor uma espécie de "pedagogia da libertação" é, assim, a passagem obrigatória para colocar as bases de uma crítica radical renovada da já existente. O mestre ignorante tem, porém, um objetivo duplo, porque 1968 não colocou sob acusação as hierarquias de classe do capitalismo, nem a pretensão do movimento operário de educar para a igualdade.
O mérito do livro não está só nessa "revelação" da comum "paixão da desigualdade" que congrega "progressistas" e "conservadores", mas sim em fornecer indicações preciosas sobre como afirmar a "igualdade das inteligências" em um capitalismo que fez do saber a matéria-prima da produção.
O "método do acaso", justamente por ser parte do pressuposto de que todos podem pensar, é assim uma arma política para denunciar o uso capitalista do conhecimento e para romper o encanto que regula a vida nos atuais laboratórios da produção.
Rancière defende que, se todos podem pensar e aprender, todos podem também organizar a produção sem a figura "parasitária" do empresário. Ao mesmo tempo, na fábrica do saber, a autoformação não é só exercício de liberdade, mas também afirmação de um processo de partilha do saber. De fato, é realista afirmar que todas as experiências que menosprezam as tradições hierárquicas, estimulando a cooperação social, apresentam politicamente a crítica da "paixão da desigualdade" e, ao mesmo tempo, a possibilidade de um modo diferente de organizar a produção da riqueza.
Em testemunho disso, são citadas a produção "open source" ou livre do software, mas também a livre circulação da ciência, mas só se a autoformação e a auto-organização não são relegadas a um pretexto para se eximir da "fadiga" do aprendizado e a experimentações de relações sociais baseadas na "igualdade das inteligências".
O roteiro e o cenário propostos por Rancière devem incluir, assim, além das salas universitárias, todos os lugares onde há produção de mercadorias. Só assim o mestre ignorante e o seu "método do acaso" mantêm a sua força política, para deixar para trás a dissimulação da ação política que o republicano Joseph Jacotot havia construído em torno à sua experiência de leitor de francês em Louvain.
*A reportagem é de Benedetto Vecchi, publicada no jornal Il Manifesto, 21-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Reproduzida por IHU/Unisinos, 31-07-2009

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Rubedo - Artigos - 5 AULAS SOBRE NIETZSCHE - Oswaldo Giacóia Júnior

Rubedo - Artigos - 5 AULAS SOBRE NIETZSCHE - Oswaldo Giacóia Júnior

Carpe Diem

Mário Faustino*

Que faço deste dia, que me adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha livra.
(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar — tão nobre.
Já nele a luz da lua — a morte — mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)

Postado por Conceição Freitas, Correio Braziliense, 30/07/2009
*O piauiense Mário Faustino foi jornalista, tradutor, critico literário (feroz) e poeta (dos melhores). Morreu jovem, aos 32 anos, quase numa premonição de uma vidente e dele mesmo, num poema. Deixou apenas um livro publicado, O homem e sua hora.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Nós, o Diabo e o automóvel

Jorge Wilheim*
O triunfo do egoísmo sobre a
reflexão cidadã revelar-se-á
desastroso em curto prazo,
mormente na próxima crise: a do
estacionamento

O DRAMATURGO italiano Luigi Pirandello (1867-1936) disse, na década de 1930, que "o automóvel é uma criação do Diabo". Mas qual seria a estratégia empregada pelo Diabo e qual o seu objetivo?
Por meio do mecanismo da sedução, o Diabo tornou o automóvel um objeto de desejo do ser humano, pois o carro nos dá um onipotente sentimento de liberdade: locomovo-me quando quero, para onde quero e com quem eu quero! Contudo, o automóvel não nos seduz só ao agir sobre a natural aspiração de liberdade, mas também ao nos distinguir de quem não tem um: somos diferentes, melhores, com mais recursos ao revelar aos demais que temos um carro. Finalmente, e o Diabo nos conhece bem, o carro seduz porque é um objeto bonito, sensual e poderoso.
Mas qual seria o real objetivo do Diabo? Utilizando a sedução irresistível, o egoísmo e a ambição por status dos seres humanos, alcança o objetivo diabólico de gerar o caos nas cidades, o congestionamento das vias, a impossibilidade de estacionar, tudo seguido da paralisação da vida urbana. Perante Deus, o anjo caído sempre se mostrará inocente, pois são os seres humanos que, em sua imprevidência, cupidez e estupidez, provocam o caos.
Segundo as principais religiões monoteístas, o homem foi criado à imagem de Deus, sendo vital sua controvérsia com o Diabo. Porém, segundo outras religiões, os deuses, cuja biografia constitui mito, foram moldados a partir de características (boas e más) do ser humano. Donde sua ambivalência multiuso.
Não nos admiremos, portanto, se, no caso do automóvel, nos entregamos ao mal com prazer, sorriso nos lábios. Será preciso muito esforço para dominá-lo, reduzindo-o a um objeto útil e bonito, mas com menos poder demoníaco sobre nossas mentes, retirando-lhe o poder de obliterar nosso pensamento e ofuscar realidades.
Mas este artigo não pretende ser reflexão metafísica. Os parágrafos anteriores introduzem comentário sobre o comportamento das pessoas, dos formadores de opinião, dos governantes a respeito de alguns fatos atuais da cidade de São Paulo: a) a pressão sobre a prefeitura para que veículos voltem a circular no vale do Anhangabaú; b) o aumento das pistas da marginal do Tietê; e c) o sacrilégio que se comete no Pátio do Colégio.
O atual Anhangabaú é uma reconquista dos direitos do pedestre no coração da cidade e resultou de concurso que, entre 95 propostas, tive a ventura de vencer em 1981, com coautoria da paisagista Rosa Kliass. Sua implantação, dez anos após o concurso, deve-se à iniciativa dos prefeitos Jânio Quadros (a praça da Bandeira) e Luiza Erundina (o restante do vale).
Embora destinado primordialmente a atividades envolvendo pedestres, todos os problemas de circulação de veículos na área foram considerados e resolvidos. Agora, por pressão dos comerciantes locais, que olvidam o fato de que a única atividade comercial a exigir a presença do carro é o posto de combustível, a prefeitura é solicitada a permitir novamente a circulação de veículos em parte do vale.
Segundo exemplo: para o alargamento das faixas carroçáveis das marginais do Tietê, começou o corte das árvores. Anuncia-se que haverá vasto plantio de reposição, mas não se diz que tal compensação se dará na APA do Tietê, entre Itaquaquecetuba e as nascentes do rio em Salesópolis.
E não se menciona na mídia a existência de alternativas para obter o pretendido e necessário descongestionamento diário das marginais: o rodoanel norte e as duas vias de suporte leste-oeste, paralelas às marginais, diretrizes do Plano Diretor propostas desde... 1968.
Por fim, São Paulo tem um espaço sagrado: o Pátio do Colégio, emblemático lugar da fundação da cidade. Em sua reurbanização, que projetei com misto de emoção e honra, na década de 1970, cogitei sobre essa sacralidade, limitando-me ao ensinamento "o menos é mais": espaço e lugar de visitação respeitosa e reflexão silenciosa. Pois os responsáveis por sua manutenção, embora ligados à ordem religiosa que fundou a cidade, transformaram-no em estacionamento dos veículos da Associação Comercial!Compreende-se que ninguém seja contra o próprio carro. Nem sequer os que não o têm, mas aspiram um dia a tê-lo. Detestamos a existência do carro dos outros na nossa frente.
Porém, o triunfo do egoísmo primitivo sobre a reflexão cidadã, do imediato sobre o definitivo, revelar-se-á desastroso em curto prazo (mormente quando da próxima crise: a do estacionamento).
Será que o silêncio em torno dessas "entregas" ao automóvel faz parte do projeto do Diabo? Nem instituições responsáveis pela preservação e órgãos de classe que deveriam defender projetos, nem editores da mídia e governantes manifestam-se a respeito dessas obras. Elas vão avançando envoltas no silêncio cúmplice em busca da conveniência egoísta e urgente, levando a melhor sobre o planejamento, sobre o futuro da cidade e a vida de todos nós.
*JORGE WILHEIM , 81, é arquiteto e urbanista. Foi secretário municipal de Planejamento Urbano de São Paulo (governo Marta Suplicy), secretário-geral da Conferência Habitat 2 da ONU, secretário estadual de Economia e Planejamento (governo Paulo Egydio) e secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo (governo Quércia).http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2807200909.htm

Três causas do medo na sociedade atual

Dan Gardner*
"Os sociólogos descrevem os países desenvolvidos como “sociedades de risco”, querendo dizer que as preocupações com saúde e segurança têm hoje uma predominância que não tinham na primeira metade do século XX, ou antes disso. Você pode dizer: “bem, e daí? Temos mesmo muito com o que nos preocupar”. E é verdade.
Mas também é verdade que somos de longe os humanos mais saudáveis e com mais segurança
em toda história da espécie. Nos últimos cem anos, a expectativa de vida subiu de maneira inédita. A mortalidade infantil diminuiu espetacularmente.
Então é um paradoxo que ao mesmo tempo sejamos assolados pelo medo como nunca antes. Por quê?
Há obviamente muitas causas, mas três são cruciais.
1)Uma é a mídia, e seu modo geralmente ruim de lidar com informações sobre risco.
2)A segunda é o que chamo de “marketing do medo”, a desinformação promovida por indivíduos e organizações que têm a ganhar com o medo excessivo.
3)A última é a mais importante: psicologia. Nossos cérebros evoluíram num ambiente de Idade da Pedra, totalmente diferente da Era da Informação em que vivemos.
Como resultado, nós rotineiramente avaliamos mal os riscos — nos preocupamos com coisas que não deveriam nos preocupar, e não nos preocupamos com coisas que deveriam nos preocupar."
*Jornalista canadense. Lançou no Canadá "Risco: a ciência e a política do medo" (publicado aqui pela Odisséia).
(Entrevista é de Miguel Conde do jornal O GLOBO, 25/07/2009, tb postado no IHU/Unisinos, 28/07/2009)

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O Monge reflete osbre o PODER

Indicado ao Nobel da Paz e
um dos líderes espirituais
mais respeitados,
Thich Nhat Hanh fez um
manual para conciliar
autoridade com felicidade


Muito já se falou sobre o poder: é a pior das drogas, o melhor dos afrodisíacos... Você acaba sem saber se o possui ou se suas garras tomaram posse de você. O que fazer, então, uma vez que já o tenha conquistado? Reconsiderar o seu significado é o que aconselha Thich Nhat Hanh, 83 anos, monge vietnamita indicado ao Nobel da Paz por Martin Luther King, em 1967, e um dos líderes espirituais mais respeitados do mundo. Em 2001 ele fez, no Fórum Econômico Mundial (Davos), uma impactante conferência intitulada “Empenhados em Melhorar a Condição de Cada Coração”. Vale dizer: o slogan do fórum era “Empenhados em Melhorar a Condição do Mundo”.

Thich Nhat Hanh (www.plumvillage.org) tem vários livros publicados no Brasil, todos com mensagens de extrema beleza expressas com absoluta simplicidade, e entre eles está A Arte do Poder (Editora Rocco): quase um “manual” para quem quer repensar sua maneira de lidar com esse atributo para construir maior felicidade, paz e compaixão em sua vida. Três sentimentos inegociáveis pelo budismo. Por você também?

O livro mostra por que os cargos não conferem poder. Que uma certa autoridade pessoal se dá quando você irradia alegria, paz e estabilidade. Quando você é, para sua equipe, alguém revigorante, sereno e sábio. Quando lhe escutam porque você é autêntico – não em função de seu cargo, riqueza e posição na sociedade. “O bom uso do poder”, diz o monge, “não é apenas uma questão de espiritualidade e, sim, um assunto de vida e morte para as nações. Empresários e políticos precisam saber usá-lo com sabedoria.”

O livro A Arte do Poder mostra que a autoridade se dá quando há alegria, paz e estabilidade
Thich Nhat Hanh nos fala, à sua maneira, sobre aquilo que conceituamos como “responsabilidade social empresarial”. Ele celebra o que chama de “homem de negócios por amor” e lembra que muita gente, ao iniciar um empreendimento, sonha em ajudar a família e a comunidade mas, aos poucos – com o alcance do sucesso –, a ansiedade toma o lugar do amor e tudo passa a girar em torno de poder e fama. O desejo de prosperar fica maior que o de amar.

Thich Nhat Hanh ensina também como cultivar cinco virtudes espirituais por meio de sugestões absolutamente viáveis para o dia a dia: meditações e exercícios individuais e em grupo, para você praticar com a família e com os colegas na empresa, além do que ele propõe batizar como “dia não comercial”.

Segundo ele, os cinco poderes espirituais são:
a , aqui significando uma confiança e uma convicção que conduzem à liberdade e à transformação das aflições;
a perseverança, no caso relacionada à disciplina em praticar as virtudes inerentes a esses poderes e às meditações;
a plena consciência, ou mente alerta, que é a energia ou a capacidade de estar consciente do que está acontecendo no momento presente, de reconhecer as coisas como elas são;
a concentração, que é a capacidade de estar no “agora”(quando beber chá, apenas beba o chá, não beba o seu sofrimento, nem o seu desespero, nem os seus projetos) e, dessa maneira, produzir discernimento, o quinto, chamado também de “superpoder”, porque baseado na compreensão de duas chaves do crescimento pessoal/espiritual – a natureza transitória de todas as coisas e circunstâncias e a “ausência do eu”. Desse modo, você nunca mais pensará sobre o poder ou o empregará como faz hoje em dia.
Reportagem de GERALDINO VIEIRA, revista ÉPOCA NEGÓCIOS - julho 2009, pg.174
http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,EMI80759-16365,00-O+MONGE+REFLETE+SOBRE+O+PODER.html

Um brinde: primeiro à consciência, depois ao Papa

Rodrigo Coppe Caldeira*


Não é de hoje que Bento XVI demonstra preocupação com o que chama de “ditadura do relativismo” Desde a Congregação para a Doutrina da Féç, Joseph Ratzinger critica o estado espiritual do ocidente contemporâneo, como se lê em “Fé, Verdade e Tolerância: o cristianismo e as religiões do mundo”, publicado pela primeira vez em 2003 e em 2007, com edição brasileira pela Raiumudo Lulio.
O relativismo ético, que também tem seus reflexos no campo teológico, parece ser o principal cavalo de batalha de Bento XVI. Em meio à descrença generelaziada em qualquer tipo de discurso como possível portador de verdade e significados universalizantes, Bento XVI torna-se um padre no deserto da sequidão existencial.

Em seu último livro publicado na Itália – L’elogio della coscienza: la verità interroga il cuore – Bento XVI tenta demonstrar, em meio ao relativismo moral que perpassa as sociedades ocidentais, qual a função do papado. De fato, o papado é uma instituição não muito compreendida, especialmente nesses tempos.
Corriqueiramente me perguntam sobre o que acho de Ratzinger, sempre em comparação a João Paulo II, o papa midiático que encantava a todos com seu sorriso e até mesmo fragilidade com o passar dos anos.
Frente à repulsa a qualquer tipo de autoridade, Bento XVI, nesse seu último livro,visa lembrar qual o significado do papado e, para isso, utiliza-se de uma frase do famoso Cardeal John Henry Newman (século XIX), sacerdote anglicano inglês convertido ao catolicismo. Em uma tradução livre, Newman afirma: “Certamente se eu tivesse de trazer a religião para um brinde depois do almoço – coisa que não é muito indicado fazer – então eu brindaria ao Papa. Mas primeiro pela consciência, depois pelo Papa”.
Com essa assertiva o Cardeal pretendia minimizar as premissas da Igreja ultramontana – que centraliza a autoridade no papado devido à emergência do liberalismo e suas conseqüências políticas - ao afirmar que se deva aceitar a autoridade do Papa somente quando é considerada junto do primado da consciência. Ratzinger utiliza-se dessa frase para afirmar, contra o subjetivismo moderno, que o indivíduo tem em si a “presença perceptível e imperiosa da voz da verdade” dentro de si e que “a consciência é a superação da mera subjetividade no encontro entre a interioridade do homem e a verdade que provém de Deus” (p.18).
Segundo Bento XVI, “a verdadeira natureza do ministério de Pedro tornou-se incompreensível no todo na época moderna precisamente porque nesse horizonte mental se pode pensar a autoridade só com categorias que não consentem mais alguma ponte entre sujeito e objeto”. Ratzinger utiliza-se do conceito de anamnesis para falar da missão petrina. Como carregamos as “sementes do Verbo” em nossos corações, somos capazes, como nos fala Santo Agostinho, do Bem. Mais ainda: o homem é capax Dei (capaz de Deus). Essa capacidade, porém, não é tematizada, mas sim, experimentada como um senso interior, uma capacidade de reconhecimento.
Para Bento XVI, a anamnesis infusa no nosso ser precisa de uma ajuda do exterior para tornar-se consciente de si. Aí está a função central do Papa, uma função maiêutica, como lembra em algumas linhas a mensagem socrática..
Mais do que diretivas da hierarquia, que vêm de cima para baixo, afirma Bento XVI, é a capacidade de orientação da memória da fé simples, que leva ao discernimento dos espíritos. “Só em tal contexto se pode compreender corretamente o primado do Papa e a sua correlação com a consciência cristã”, nos diz ele.
(Texto do O Lutador, 1º a 10 de julho de 2009, pg.03)
*Graduado em História pela Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestrado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor Assistente III do Departamento de Filosofia e Teologia da PUC/Minas Gerais.

domingo, 26 de julho de 2009

As biografias do homem

Paulo Brabo

Em 1943, no primeiro parágrafo de uma reflexão sobre o Vathek de William Beckford, Jorge Luis Borges escreveu:

«Tão complexa é a realidade e tão fragmentária e tão simplificada a história, que um observador onisciente poderia redigir um número indefinido, quase infinito, de biografias de um homem, que destacassem acontecimentos diferentes, e teríamos de ler muitas delas antes de compreender que o protagonista é o mesmo».

Borges, que cria (ou fingia crer) que cada homem é todos os homens, sugere aqui o esboço de uma doutrina ou de um conto fantástico a que nunca deu forma final. Posso resumi-lo assim: toda a literatura e toda mitologia e toda as narrativas populares contam, independentemente, acontecimentos diferentes de uma mesma e única biografia; apenas não lemos um número bastante delas para reconhecermos que o homem que retratam é o mesmo. Todas as histórias, de um Ulisses a outro, são descrição parcial das contradições e percalços desse vasto e solitário protagonista.
Todos os homens são um único homem. Com outro vocabulário, Jesus propõe vertigem semelhante: “Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes”.
http://www.baciadasalmas.com/do Blog bacia das almas, visitado 26/07/2009

Isaac e Édipo

Luis Fernando Veríssimo*


Kalman J. Kaplan ensina nas universidades americanas de Wayne State e Illinois. Tem escrito sobre paralelos bíblicos para os mitos gregos e publicou uma comparação das histórias de Isaac e Édipo, duas versões para o drama familiar que, segundo a ortodoxia freudiana, está na origem da civilização e das suas neuroses. Isaac era o filho amado que Deus mandou Abraão imolar; Édipo, o filho enjeitado condenado a cumprir a profecia feita a seu pai de que um filho o mataria. São duas figuras igualmente sacrificiais e expiatórias, e Kaplan estranha que Freud, mesmo sendo um judeu secular, não tenha preferido o exemplo bíblico ao grego para a sua tese sobre o conflito mais antigo da humanidade. O que diferencia Isaac de Édipo é a natureza do sacrifício e a consequência da expiação de cada um. Deus poupa Isaac da imolação e pai e filho chegam a um acordo que, no fim, é o acordo inaugural do judaísmo. Os terrores do filho diante do pai são atenuados pela sua ritualização – como a circuncisão, que é uma castração simbólica – e o terror do pai diante do filho é transferido: a vinda do Messias, o filho que sustará ele mesmo a faca imoladora e desafiará o pai, fica para um futuro indefinido. Já Édipo cumpre a sua danação. Mata o pai, ganha as glórias passageiras do reino de Tebas e da cama da mãe, mas é derrotado pelo remorso. Sucumbe ao destino reincidente de todo homem e inaugura não uma religião, mas um complexo.
O Jesus das escrituras tem muitos precedentes em mitos da antiguidade, heróis expiatórios de outras culturas cujo martírio precede a ressurreição e voltam dos seus abismos e das suas provações como líderes ou deuses. A especulação, hoje disputada, de Freud era que todos os mitos de redenção tinham origem na revolta dos filhos rebeldes contra o pai tirano, nas hordas primitivas. Os filhos matavam e comiam o pai e aplacavam o remorso, o medo de serem literalmente comidos por dentro em retribuição, designando um dos seus como o culpado, sacralizando o crime e o criminoso e imolando o irmão/herói numa oferenda ao pai vingativo. Os mitos judaicos e os mitos gregos substituíam o monomito primevo de formas diversas, mesmo que os dois mitos fossem essencialmente os mesmos. A história de Isaac é um mito de conciliação, a de Édipo, um mito de recorrência trágica. As duas buscam a superação do conflito pai x filhos, a de Isaac pela integração sob os olhos de Jeová – nas palavras do profeta Malaquias, “e converterá o coração dos pais aos filhos, e o coração dos filhos a seus pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição” –, a de Édipo pela resignação aos ciclos da condição humana, inegociáveis, pelo menos até que venha a psicanálise. Já a tradição messiânica dá no Cristo, cujo triunfo histórico se deve ao seu ineditismo. No mito cristão, o filho confronta o pai, mas filho e pai são a mesma coisa. O pai não mata o filho, o filho é imolado em oferenda a si mesmo. E é a carne do irmão/herói, não a do pai, que os irmãos comem, simbolicamente, na eucaristia, subvertendo o rito primevo enquanto o repetem.
E o mito cristão não é cíclico. Ele rompe a reincidência protelatória do mito judaico e a dos eternos retornos do mito grego. Seu herói venceu, expiou a culpa coletiva transformando-se por nós no seu próprio pai sem precisar matá-lo, e em vez de um acordo como o de Isaac com Abraão com a bênção de Jeová ou a submissão a um destino trágico como a de Édipo, trouxe uma novidade que nenhum mito, antes, oferecera: a salvação.
*Luis Fernando Verissimo é escritor e cronista em vários jornais

Frase de camiseta

Luiz de Aquino*

Com esse título, o poeta Marcelo Ferrari cumprimentou-me na manhã. Marcelo é presença diária entre meus e-mails, em mensagens curtas e densas, com a profundidade que o bom poeta sabe medir.
Vejam-no:http://ferrarinanet.blogspot.com.
Pois bem! Desta vez, ele resume tudo dessa forma:
*“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida a minha face?”
Quando leio estes versos da Cecília, vejo alguém derramar em poesia a dor de se ver envelhecendo. E foi num espelho que vi o rosto de Cecília pela primeira vez. Os olhos vazios estavam estampados numa camiseta, ao lado de muitas outras, numa vitrine. Despencando sobre o ombro da sofredora, feito mão amiga, estava a camiseta de Caetano, que dizia:
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.” Comprei e vesti. Desde então fiz da frase um lema. Leme. Uso a camiseta toda vez que estou com pena de mim mesmo. Vesti-la é como pelar a dor. Faz lembrar que é minha delícia.Que só eu tenho o privilégio de vesti-la”.*
O parágrafo acima, todo ele, é a mensagem de Marcelo Ferrari.
Lembrei-me: lá pelos idos de 1968, uns raros estudantes brasileiros, retornados de intercâmbio cultural, usavam camisetas com as letras UCLA, de Universidade da Califórnia. Torcíamos narizes: eram alienados, baba-ovos dos imperialistas do Norte, os que bancavam as ditaduras militares da América Latina. Nossas camisetas ostentavam frases em português do Brasil. Mas volto ao texto de Ferrari e recordo o que li, ouvi, aprendi e curti. Noel Rosa escreveu “Pra que mentir?” em 1937 (o ano de sua morte), em parceria com Vadico.
Pra que mentir se tu ainda não tens?
Esse dom de saber iludir??
Pra quê?!
Pra que mentir?
Se não há necessidade de me trair?
Pra que mentir, se tu ainda não tens?
A malícia de toda mulher??
Pra que mentir? se eu sei que gostas de outro ?
Que te diz que não te quer?
Pra que mentir?
Tanto assim ?
Se tu sabes que eu já sei ?
Que tu não gostas de mim?!?
Se tu sabes que eu te quero ?
Apesar de ser traído?
Pelo teu ódio sincero ?
Ou por teu amor fingido?!
Em 1982, Caetano respondeu-lhe com “Dom de Iludir”:
Não me venha falar?
Na malícia de toda mulher
Cada um sabe a dor?
E a delícia?
De ser o que é... ??
Não me olhe?
Como se a polícia?
Andasse atrás de mim ?
Cale a boca?
E não cale na boca?
Notícia ruim... ??
Você sabe explicar ?
Você sabe?
Entender tudo bem ?
Você está ?
Você é ?
Você faz ?
Você quer /?
Você tem... ??
Você diz a verdade?
A verdade é o seu dom?
De iludir ?
Como pode querer?
Que a mulher?
Vá viver sem mentir.”
Em suma: temos à nossa disposição centenas de milhares de belos versos para enfeitar camisetas, mas o que se vê nas lojas são expressões na língua dos imperialistas. Se eu fosse usar alguma camiseta com inscrição no idioma deles, a frase só poderia ser uma, trazida dos meus verdes anos:
“Yankees, go home”.
*Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras e escreve aos domingos neste espaço (poetaluizdeaquino@gmail.com)
http://www.dm.com.br/materias/show/t/frase_de_camiseta -26/07/2009

Explicando políticas às crianças II

Rubem Alves
Meninas e meninos:
Terminamos nossa história
com a vitória democrática do
Partido dos Abacaxis.
Empossado o congresso, os representantes elegeram o seu presidente. O bicho que recebeu mais votos foi a Hiena, famosa por seu senso de humor: estava sempre dando risadas. Na sua posse ela fez um lindo discurso sobre as excelências da dieta vegetariana. E para terminar deu uma aula de filosofia. “Como disse o filósofo alemão Ludwig Feuerbach, nós somos o que comemos. Vacas comem capim; portanto são capim. Macacos comem banana; portanto são bananas. Galinhas e patos comem milho; portanto são milho. Pássaros comem alpiste; portanto são alpiste. Assim, onças que comem vacas estão, na verdade, comendo capim. Uma cobra que come um macaco está, na realidade, comendo bananas. Um gambá que come galinhas está, na realidade, comendo milho. E um gato que come passarinhos está, na realidade, comendo alpiste. São todos, portanto, vegetarianos. Assim sendo, e em cumprimento às promessas que fizemos no período eleitoral, proclamo a lei de que todos os animais terão de ser vegetarianos, cada um do seu jeito. Viva a República Vegetariana!” Se vocês argumentarem que as conclusões filosóficas da Hiena estão erradas direi que vocês estão com toda razão. Mas é preciso que se aprenda uma outra regra da política: ‘Na política quem tem razão não é quem tem razão. É quem tem o porrete maior..
O discurso da Hiena foi saudado com uma grande salva de palmas, seguido por um festival gastronômico em que hienas, onças, lobos, cães vadios, cobras, gambás e gatos vegetarianamente churrasqueavam vacas, veados, macacos, galinhas e passarinhos. “Pois Feuerbach não disse que somos o que comemos? A lei é clara: todos os animais são vegetais transformados..”.
Aí os membros do Partido das Bananas perceberam que haviam caído numa armadilha. Leis são armadilhas. Uma vez feitas não podem ser desrespeitadas, a menos que sejam revogadas por aqueles que as fizeram, os representantes eleitos.
Mas quem teria poder para revogar essa lei? Olhando para seus gordos representantes no Congresso era claro que nenhum deles estava disposto a trocar costeletas, lombos e lingüiças por alface, couve e cenoura... Concluíram, então, que com aquele congresso de carnívoros a reforma política jamais seria realizada. O Ganso, metido a intelectual, repetiu então uma frase que havia lido num livro em inglês: “might makes right”... É o Poder que estabelece o Direito.
Foi então que um leitão rechonchudo chamado Alfred Hitchcock pediu a palavra. Ele já havia experimentado a dor da perda de sua mãe, comida por uma onça que falava enquanto comia: “Que deliciosa é essa porca! Ela é milho, é abóbora, é mandioca, é batata! Como é boa a dieta vegetariana!” Pois bem. O dito leitão ponderou: “Eu não posso enfrentar a onça. As galinhas não podem enfrentar os gambás. Os cordeiros não podem enfrentar os lobos! Mas os pássaros! Milhares de pássaros em seus vôos rasantes e bicos pontudos! Que poderão fazer as onças, os gambás e os lobos contra o ataque de milhares e pássaros? Vamos chamar os pássaros! Eles são vegetarianos! São nossos aliados!” E assim aconteceu. Vieram então, em bandos que tapavam o sol, milhares de andorinhas, pássaros pretos, sabiás, pardais, tico-ticos, periquitos... Invadiram o edifício do Congresso. Foi um pandemônio. O espaço escureceu. O barulho dos pios e dos gritos dos pássaros era ensurdecedor. Milhares de bicos bicando sem parar em mergulhos certeiros. Além disso, por onde iam soltavam seus excrementos moles e fedidos que escorriam pelas caras dos excelentíssimos. Os representes gritavam histéricos: “Isso é conspiração! Estão tentando desestabilizar o governo!” Mas os pássaros nem ligaram. Continuaram a fazer o que estavam fazendo. Os gambás, onças, lobos, cães vadios e hienas fugiram e nunca mais voltaram, com medo de que os pássaros lhes furassem os olhos...”
Isso, meninos e meninas, tem o nome de revolução. Revolução é quando os eleitores resolvem, eles mesmos, demitir os seus representantes e fazer, eles mesmos, as leis. Só é preciso uma coisa: vamos chamar os pássaros...
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?
noticia=1644693&area=2220&authent=BFBD9A92604032BF9F9AB06062329 - Correio Popular - 26/07/2009

sábado, 25 de julho de 2009

A busca da igualdade

Delfim Netto*

Vivendo na sociedade moderna, cada indivíduo tem a percepção de que participa de dois universos separados: o político e o econômico, dos quais ele é interseção. O universo político é o do governo democrático, que implica:
1. Eleições honestas e periódicas, com sufrágio universal e partidos competitivos.
2. A existência de uma oposição bem definida.
3. A proteção dos direitos das minorias.
4. A liberdade de associação e expressão.
Nesse universo se realiza a justiça na política, que é expressa na Constituição. Nesta, os homens depositam os valores que definem como desejam viver na sociedade: liberdade individual, relativa igualdade, atendimento das necessidades básicas de todos e suprimento de certos bens públicos (o próprio mercado e a estabilidade monetária) que permitem a convivência civilizada. É no universo da política que se produz o Estado e a Constituição que o regula para proteger o cidadão e definir a base institucional sobre a qual ele construirá o seu universo econômico.
O universo econômico, por outro lado, se organiza, perigosamente, em torno de um só poder: o mercado. Séculos de observação mostraram que a interação de um número muito grande de agentes, cada um procurando seus próprios interesses, produz, misteriosa e espontaneamente, uma certa autocoordenação a que chamamos de mercado. O que os economistas observaram, ao longo do tempo, é que esse comportamento organizado que parece emergir da desordem (o mercado), depende de condições especiais:
1. De uma definição precisa do direito de propriedade, que permita ao indivíduo a apropriação dos benefícios dos seus esforços.
2. Da liberdade de iniciativa.
3. Da existência de instituições políticas que, além da estabilidade monetária, garantam o estrito controle das práticas de poder monopolístico, que permanentemenente seduzem os agentes econômicos. É óbvio que essas condições só podem ser estabelecidas no universo da política, o que mostra o universo econômico (o mercado) inserido dentro dele.
Talvez o exemplo mais claro disso sejam as intituições criadas (em 1951) pela chamada Economia Social de Mercado, que foram a base da reconstrução e da prosperidade da Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial até praticamente 1970. Após a reunificação (1990), a Alemanha sofreu uma recessão com alguma inflação, mas manteve suas velhas instituições trabalhistas, que sempre se negaram a aceitar que o trabalho e o conhecimento são uma mercadoria qualquer: um insumo igual à energia ou ao capital. Quem olhar de perto a organização do trabalho e sua codeterminação no processo industrial na Alemanha, vai enxergar um processo democrático e participativo insuspeitado. Ao contrário de todas as previsões terroristas de esclerose do seu mercado de trabalho, pequenas adaptações reduziram o desemprego e permitiram à Alemanha expandir-se dentro das condições do Tratado de Maastricht e das complicações da reunificação.
Para encontrar funcionalidade, uma sociedade tem de procurar, pragmaticamente, o ponto áureo, que equilibra os valores dos dois universos. Esta parece ser a construção constitucional de um Estado forte o bastante para garantir os direitos individuais, que respeite o trabalho como a atividade na-tural do homem, que proteja a propriedade privada e a competição e seja capaz de construir uma rede de segurança que atenda às necessidades básicas dos cidadãos menos afortunados.
Mas há um problema. O mercado, quando bem regulado, pode levar à eficiência produtiva e respeitar a liberdade, mas está longe de produzir a relativa igualdade. Ora, gostemos ou não, uma relativa igualdade (no sentido mais geral) é uma das aspirações fundamentais da justiça política nas sociedades democráticas, como observou Alexis de Tocqueville. A ideia de igualdade é o poderoso demônio que atormenta o homem cada vez que ele tem tempo para o pensamento crítico. Ela é permanente na História: em Aristóteles, 300 anos a.C., já encontramos uma discussão sobre o tema.
É precisamente a igualdade o valor que mais tem sofrido com o funcionamento desabrido dos mercados, que se realizou sob os auspícios das políticas sugeridas pelos organismos supranacionais, como o FMI, o Bird e a OMC, apoiados numa suposta ciência econômica. Mais dia, menos dia, para o bem ou para o mal, o processo democrático (isto é, as urnas!) vai corrigir esse fundamentalismo mercadista que esqueceu os ensinamentos da História.

*Delfim Netto , economista e escreve na Carta Capital.
Sextante
http://www.cartacapital.com.br/app/coluna.jsp?a=2&a2=5&i=4635

O valor dos pequenos prazeres

Cristiane Segatto*
A felicidade está nos
'micoromomentos',
sugere estudo de
universidade americana
Sábado eu fui feliz. Aluguei uma bicicleta e pedalei na ciclovia do Parque Villa-Lobos, em São Paulo. Nunca tinha estado ali num final de tarde. O sol não ardia, a luz era alaranjada, o encanto era outro. Meus músculos trabalhavam para minha mente se desgarrar. Viajou ao passado, analisou o presente, bisbilhotou o futuro – não necessariamente nessa ordem.
Na primeira volta, fiz uma descoberta deliciosa: o point dos namorados no Parque Villa-Lobos não é o viveiro de mudas, não é a sombra das árvores, não é um cantinho qualquer. É uma ribanceira com vista para a Marginal Pinheiros. É ali que os casais – abonados, pobres ou remediados – estendem toalhas no chão e fazem o tempo parar.
Como se estivessem no mais belo dos mirantes, contemplam o rio imundo e a passagem frenética dos carros. Precisei dar mais uma volta completa no parque até conseguir entender que prazer eles conseguiam enxergar.
Alinhei o meu olhar com o deles e respeitei o silêncio. O que se ouve é um "vrummmmm" contínuo e distante. Ele serve de fundo sonoro para uma experiência incomum: a de sair do palco da cidade para ser espectador. Quem passa a semana praguejando no trânsito da Marginal ganha, no sábado, a chance de olhar aquelas tantas pistas por uma outra ótica. De cima, como se não fizesse parte daquela engrenagem.
Os carros, o trem, o rio – nada daquilo parece real quando deitamos na grama e os observamos de longe. Concordo com os casais. Aquele lugar "dá um barato". E é romântico.
É admirável a capacidade dos moradores de São Paulo de encontrar a felicidade numa cidade tão dura. A explicação, para mim, só pode ser uma: esses heróis da resistência sabem enxergar o valor dos pequenos prazeres. Inventam oportunidades para que o prazer exista nos lugares mais improváveis.
Um carioca, numa rápida visita a São Paulo, não entenderia a felicidade dos casais que contemplam a Marginal Pinheiros como se estivessem nas Paineiras. Estranharia também a alegria da mulher apaixonada que ganha flores compradas no Cemitério do Araçá.
Sempre precisei de muito pouco para ser feliz. Coisas como namorar a noite inteira e, entre um cochilo e outro, reconhecer Neil Young tocando no aparelho três em um. Acordar ao meio-dia com uma fome de um mês. Caminhar pela rua plana até a feira de domingo. Comer dois pastéis com caldo de cana. A lembrança dessa felicidade vira-lata, que me inspira há tantos anos, vai durar para sempre.
Qual é o efeito terapêutico dos momentos felizes que acumulamos na vida? O senso comum nos diz que eles só podem fazer bem. Há quem se dedique a responder isso cientificamente. A professora de psicologia Barbara Fredrickson, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, tentou medir o valor dos pequenos prazeres.
Durante um mês, 86 voluntários relataram diariamente as emoções que sentiram, em vez de responder a questões genéricas, do tipo "Nos últimos meses, quanta alegria você sentiu?". O resultado foi publicado no mês passado na revista científica Emotion, publicada pela Associação Americana de Psicologia.
Quanto mais emoções positivas uma pessoa sentia a cada dia, mais acentuada era sua capacidade de se recuperar de situações difíceis ou estressantes, concluiu Barbara. "Pequenos momentos de prazer fazem florescer as emoções positivas. Elas nos tornam mais abertos", diz Bárbara. "E essa abertura para o mundo nos ajuda a construir recursos que favorecem a recuperação diante da adversidade, nos mantém longe da depressão e nos permite continuar a crescer."
Segundo o estudo, ninguém precisa adotar uma postura de Polyana e negar as decepções que a vida nos reserva. Nem achar que a felicidade seja decorrente apenas dos momentos grandiosos. As emoções positivas que produziram mais benefícios durante a pesquisa não eram derivadas de eventos extraordinários. "É preciso valorizar os 'micromomentos' que podem produzir uma emoção positiva aqui ou ali", diz Barbara.
Cada vez mais busco esses "micromomentos". Quando minha filha me mostrou no sábado que já era grande o suficiente para deslizar sobre patins in-line, vivi um desses "micromegamomentos". Ontem mesmo eu estava grávida. Hoje ela já é essa menina apaixonante que, equilibrada sobre as rodinhas, alcança meu ombro.
Quanto vale olhar aqueles longos cabelos ao vento, aquela franjinha que encobre as sobrancelhas grossas e retribuir o sorriso mais sincero que já vi? Como diz aquela propaganda de cartão de crédito, isso não tem preço.
E você? O que tem feito para ser feliz? Conte pra gente. Queremos ouvir a sua opinião.
*Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 14 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI84212-15230,00-O+VALOR+DOS+PEQUENOS+PRAZERES.html

A hora da estrela

Oscar D'Ambrosio*
Análise da Obra de Clarice Lispector

Escritora nascida na Ucrânia mas radicada no Brasil desde criança, Clarice Lispector (1920 - 1977) é um caso ímpar na literatura nacional, já que sua abordagem intimista, questionadora sobre os tênues limites entre a ficção e a realidade - e sobre o próprio ato de escrever -, surge numa época em que predominava o romance regionalista, com denúncias sociais sobre a vida no Nordeste.
O impacto de sua prosa foi tamanho, que a escritora e filósofa francesa Hélène Cixous chega a dividir a literatura brasileira em dois momentos: A.C. (Antes da Clarice) e D.C. (Depois da Clarice). O último livro da autora, publicado no ano de sua morte, aparentemente narra apenas o sofrimento da migrante alagoana Macabéa no Rio de Janeiro.
A estrutura, porém, é bem mais complexa. Há, no texto, um tripé: a vida comum e sem graça de Macabéa; a história do narrador Rodrigo; e a reflexão dele sobre a escritura. A habilidade de Clarice está em articular esses planos de uma maneira que não dificulta a leitura ou deixa o texto empolado ou pernóstico.
Sonhadora e ingênua, Macabéa é o retrato da saga sem glamour de uma brasileira perante um outro Brasil, que ela desconhece. Seu namoro com Olímpico de Jesus, nome pleno de ironia, já que ele não tem nada das poderosas divindades gregas que habitavam o Monte Olimpo e muito menos do lado humano da Santíssima Trindade católica, não tem futuro algum.

Ascensão social

Macabéa é trocada por Glória, colega de trabalho que, por ter um pai açougueiro, parecia oferecer ao também nordestino Olímpico uma possibilidade de ascensão econômica e social. A desilusão afetiva soma-se a uma progressiva degradação do corpo, causada por uma tuberculose.
É justamente Glória, outro nome bastante crítico, já que ela pouco tem para ser glorificado, que aconselha a deprimida Macabéa a encontrar uma orientação para a sua vida, aparentemente sem sentido, numa cartomante, Madame Carlota, que anuncia um futuro pleno de felicidade com um estrangeiro.

Mercedes-Benz

Ao sair desse encontro, com a cabeça literalmente nas nuvens, Macabéa é atropelada por um Mercedes-Benz. Termina assim uma existência em que predomina um grande vazio existencial, contada com momentos que evocam James Joyce, na forma como trata livremente a narrativa, e Virginia Woolf, no que diz respeito à maneira de enfocar a riqueza interior feminina.
Em sua sofisticada aula de escritura, a autora cria a saga de um personagem que, se, por um lado, alerta para o drama social da migração, acima de tudo, constrói um exercício do próprio ato de escrever e dos limites entre criador (Clarice), narrador (Rodrigo) e personagem (Macabéa), um triângulo marcado pelo constante questionamento existencial.
A estrela do símbolo da Mercedes funciona de maneira metafórica, pois causa a morte da protagonista. Por outro lado, é apenas com a sua morte que Macabéa consegue dar destaque a sua vida, com seu corpo desfalecido no meio da rua. Morta, torna-se estrela por um dia. A sua hora de aparecer chegou, melancólica, como toda a sua existência.

*Oscar D'Ambrosio, jornalista, mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é crítico de arte e integra a Associação Internacional de Críticos de Artes (Aica - Seção Brasil).
http://educacao.uol.com.br/literatura/hora-da-estrela.jhtm - Acesso 25/07/2009

sexta-feira, 24 de julho de 2009

À Igreja de Honduras e ao Cardeal Oscar Andrés Rodríguez

Adolfo Pérez Esquivel *

O golpe de Estado em Honduras, desatado pela ditadura militar e seus cúmplices, trouxe morte, centenas de detidos, jornalistas perseguidos e presos, tendo seus equipamentos confiscados e seus direitos humanos violados.
Essa situação leva a perguntar ao Cardeal Rodríguez, ao ditador Micheletti e seus sequazes: Isso é o que esperavam? Assassinar pessoas indefesas, suspender as garantias constitucionais do povo, prender e reprimir aos que reclamam seus direitos e a restituição do presidente Zelaya em suas funções?
Cardeal Oscar Andrés Rodríguez, o caminho que elegeste de ser cúmplice da ditadura militar não é o caminho do Evangelho. Não podes estar contra teu povo e permitir a violência e a repressão que, em nome da suposta segurança e do direito, comete graves violações, precisamente, aos direitos humanos.
O pastor que abandona suas ovelhas e permite as atrocidades e apóia a ditadura para defender seus interesses econômicos e políticos, não é digno de ser reconhecido como Pastor de Cristo e de seu povo.
Na América Latina temos uma larga e dolorosa história de ditaduras militares e cumplicidades de hierarquias eclesiásticas que estiveram ao serviço da opressão e foram cúmplices da morte e do desaparecimento de pessoas, de torturas, para impor o terrorismo de Estado.
Lamentavelmente, essa atitude continua em vários países, como na Bolívia, com o comportamento do Cardeal Terrazas, que se aliou e apoiou aos golpistas para tentar derrocar o presidente Evo Morales. Na Venezuela, a hierarquia eclesiástica apoiou o golpe militar contra o presidente Hugo Chávez.
Escutei tuas declarações contra o presidente venezuelano. Tens o direito de dissentir; porém, não o de difamar. Nunca escutei tuas declarações para condenar a intervenção dos Estados Unidos em teu país e no continente, ou sobre as atrocidades cometidas na Colômbia e sobre a incursão armada contra o povo irmão do Equador.
Graças a Deus, existem signos de esperança e horizontes de vida e dignidade de irmãos e irmãs que, fieis ao Evangelho e a seu povo, se comprometem e lutam por um mundo mais justo e humano e muitos deles deram sua vida para dar Vida; são os mártires da Igreja que nos ensinam a seguir o caminho de Cristo. Recordas a nosso irmão Dom Romero, em El Salvador?
Sabes que Honduras é um país com uma larga história de intervenções dos EUA, apoiados por grupos econômicos, políticos e eclesiásticos. Hoje, esses mesmos grupos de poder, com a cumplicidade do embaixador dos EUA em Honduras, quem confessa que esteve reunido com os golpistas, se opõem às reformas propostas pelo presidente Zelaya e decidem dar o golpe de Estado para negar a Consulta Popular.
Que temes, irmão Rodríguez? Temes teus próprios medos? Temes a Consulta Popular através da qual o povo pode decidir o caminho a seguir? Tens medo dos pobres, de que eles participem e queiram aderir à Aliança Bolivariana dos povos das Américas (ALBA) e não se submeter ao TLC, que significa mais dependência dos EUA, e que essa decisão afete os interesses econômicos daqueles que sempre oprimiram o povo hondurenho?
Recorda que Honduras tem 70% da população na pobreza e 58% abaixo do nível de pobreza; situação provocada pela injustiça social e estrutural. Ao recorrer à violência contra o povo para sustentar a situação de injustiça estrutural e social, a situação tornou-se incontrolável. Estão como o "aprendiz de feiticeiro", já não sabem como pará-la.
A comunidade internacional reclama o imediato regresso do presidente Zelaya. A OEA, a ONU, setores sociais, políticos e religiosos, como os Bispos do Brasil, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Demétrio Valentini, reclamam a volta à legalidade e o respeito à vontade do povo.
Escuta a voz do Bispo de Copán, de tua terra; escuta as milhares de vozes de todo o continente e do mundo, que rechaçam a ditadura.
Se o presidente Zelaya cometeu um delito, ou qualquer falta, o país tem a Constituição Nacional e as leis vigentes para determinar sua responsabilidade. Porém, vocês impedem a aplicação da lei e recorrem ao golpe de Estado. E pretendem disfarçar seus crimes com palavras vazias de conteúdo. Falam do Direito e da Constituição, da dignidade humana e os violam e contaminam, e respondem reprimindo o povo, provocando mortes e feridos.
Por que tantas contradições e falta de valores? O que têm a ver essas atrocidades com a mensagem de Cristo? Espero que em tuas orações Deus te guie e ilumine, porque estás perdido no emaranhado da incerteza. Até quando pensas continuar fazendo o papel de inquisidor, apoiando aos verdugos que implantaram o terror e assumiram o poder em tua terra?
Tens consciência de que o golpe de Estado em Honduras é um perigo para a democracia no continente? O povo tem direito à resistência frente às injustiças, a não cooperar com os opressores, a desconhecer os que usurparam o poder. E os governos e povos latinoamericanos têm a responsabilidade de desconhecer a um governo legítimo e repressor.
Muitos anos de luta e sofrimento implantado pelas ditaduras em todo o continente nos ensinaram na dor que é preferível morrer como homens e mulheres livres do que viver como escravos. Porque a esperança sempre nos mostra um novo amanhecer para a vida e para a dignidade de nossos povos.
Temos que resistir na esperança, irmão Rodríguez, e essa esperança está caminhando junto aos povos e nunca no caminho dos opressores. Tens que optar, como homem e como pastor: servir a Deus e a teu povo ou servir aos opressores e poderes de turno. São muitas as perguntas. Tu tens a resposta.
"Só a Verdade nos fará livres". Que o Deus da Vida te guie e ilumine e em sua Paz e Bem.
* Escritor - Prêmio Nobel da Paz
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=40017 - 23/07/2009