''Que outros se jactem das
páginas que escreveram.
A mim me orgulham
as que tenho lido''
Jorge Luis Borges, escritor
O economista Eduardo Giannetti, que escreveu um livro só de citações, dá uma entrevista em que citações substituem as perguntas. E também o título
Dizer que o economista Eduardo Giannetti escreveu um novo livro é força de expressão. Seu O Livro das Citações se compõe apenas disto: citações. O prefácio é um conjunto de citações. O posfácio também. E os capítulos do livro, que agrupam os trechos por temas, não trazem nenhuma abertura, ou reflexão, que tente dar liga ao todo. Estão lá apenas as citações. Citações colecionadas diligentemente ao longo de 30 anos desde que o autor, ainda na graduação, decidiu anotar em cadernos todos os trechos que lhe causavam forte impressão, com o intuito de melhor absorver o conteúdo das matérias da faculdade. Inspirada em O Livro das Citações, BRAVO! resolveu elaborar uma entrevista sem perguntas só citações.
BRAVO!: "Toda gente vive apressada, e sai-se no momento em que devia se chegar", Marcel Proust, escritor. "Toda forma de pressa, mesmo que voltada para o bem, trai alguma desordem mental", E. M. Cioran, filósofo.
Eduardo Giannetti: O tema do tempo é recorrente. O curioso é ver autores do século 19 já com preocupações muito próximas das que nós temos hoje. Enquanto fazia o livro, às vezes me perguntava: se isso aqui fosse escrito hoje, numa revista ou num jornal, sem o autor e sem a data, pareceria que estava falando diretamente de nós. Na questão do tempo, vivemos um paradoxo. Criamos toda uma tecnologia em nome da economia de tempo. A gente viaja de jato, tem forno de microondas, tem equipamentos de comunicação instantâneos, carros velozes, tudo! E, no entanto, quanto mais nós economizamos tempo, mas ele parece nos faltar.
"No que consiste o conhecimento? Quando você sabe alguma coisa, reconhecer que sabe; e, quando você não sabe alguma coisa, reconhecer que não sabe", Confúcio, filósofo. "Na verdade só sabemos quão pouco sabemos com o saber cresce a dúvida", Goethe, escritor. "Nós somente possuímos convicções sob a condição de nada termos estudado plenamente", E. M. Cioran.
Eduardo Giannetti - Um dos objetivos do livro é justamente fazer esse diálogo de citações e isso deu muito trabalho. Rejeitei o critério cronológico, que tivesse uma pretensão de sistematicidade que transformaria o livro num daqueles dicionários de citação no modelo da Universidade de Oxford. Ao rejeitar esse critério, surgiu a questão: qual é a seqüência em que essas citações devem ser ordenadas? O meu ideal era que cada citação dialogasse com a anterior e a posterior. Que o encadeamento fosse totalmente coerente, que a liga fosse bem resolvida. Um encadeamento estruturado em que uma citação dialoga com a que precede e com a que a sucede, de maneira contínua, sem cortes abruptos. Em alguns capítulos, acho que cheguei perto. Em outros, quando releio, eu falo: "Não. Aqui há um buraco". Talvez esteja faltando alguma citação que eu desconheço e que me permitiria fazer a transição suave.
"Aquele que ama é um ser mais divino do que o amado, pois está possuído por um deus. (...) Concluo, portanto, que Eros é o mais antigo, o mais honorável e o mais capaz entre os deuses de propiciar a virtude e a felicidade dos homens, seja durante a vida, seja após a morte", Platão, filósofo. "No amor basta uma noite para fazer de um homem um deus", Propércio, poeta. "Quando não se ousa amar sem reservas é que o amor já está muito doente", Goethe. "O amor é o desejo de alcançar a amizade de uma pessoa que nos atrai pela beleza", Cícero, filósofo e político.
Eduardo Giannetti - Aí temos mais do que um diálogo de citações. O que aparece é a noção da idéia replicante. São idéias muito poderosas que vão adquirindo, ao longo das gerações, novas configurações e novas formulações. A citação de Cícero é maravilhosa, não? É o tipo de passagem que, quando você lê, se pergunta: "Como é que eu não escrevi isso?".
"Dizem que no Brasil as pessoas só morrem de velhice; o que se atribui à pureza e à calma do ar que respiram, e que, a meu ver, provém antes da serenidade e da tranqüilidade de suas almas isentas de paixões, de desgostos, de preocupações que excitam e contrariam", Montaigne, escritor.
Eduardo Giannetti - O Montaigne está usando o Brasil para se contrapor ao Shakespeare - que, em A Tempestade, criou uma figura nada serena do homem tropical, que é o Caliban. Que é puro sexo, drogas e rock'n'roll. Caliban é um pacote de vícios condenáveis pela moral puritana. Eu acho incrível o Próspero ter ficado furioso com ele. Próspero pegou um índio caribenho e o colocou numa gruta junto com a sua filha virgem, adolescente. E depois ficou furioso com ele quando ele tentou fazer amor com ela. Eu me pergunto o que seria mais monstruoso: ele tentar ou não tentar?
"O modo de produção capitalista pressupõe o domínio do homem sobre a natureza. Uma natureza excessivamente pródiga 'mantém o homem preso a ela como uma criança sustentada por andadeiras'", Karl Marx, economista e filósofo. "A pátria do capital não é o clima tropical com sua vegetação exuberante, mas a zona temperada", Karl Marx.
Eduardo Giannetti - É a idéia recorrente de que a natureza mantém o homem tropical infantilizado. É uma natureza tão exuberante, e tão avassaladora, que quem mora nela se sente pequeno como uma criança. Por isso, não surge aqui o capitalismo. O capitalismo surge num clima temperado. Agora, na mesma linha, para o Marx não ficar mal na foto, seria legal citar o Noel Rosa, o único compositor popular que entra no livro.
"A minha terra dá banana e aipim, meu trabalho é achar quem descasque por mim", Noel Rosa, músico.
Eduardo Giannetti - O Marx, claro, não sabia nada sobre os trópicos. Ele tinha uma certa desconsideração pelo conhecimento direto. Escreveu volumes e volumes sobre o mundo da fábrica, até bons, com muita informação relevante, mas não tinha a humildade que um Adam Smith tinha, por exemplo. Quando quis falar sobre uma fábrica de alfinetes, Smith foi conhecer uma. Marx, não. Ele era contra o empirismo clássico. Esses alemães olham para os empíricos como se fossem rústicos. Gente estranha que vai visitar fábricas, visitar tribos, essas coisas.
"Tenho visto óperas na Inglaterra e na Itália; são os mesmos enredos com os mesmos atores: mas a mesma música produz efeitos tão díspares nos habitantes dessas duas nações que parece inconcebível uma delas tão calma, a outra tão entusiástica", Montesquieu, filósofo. "Os franceses freqüentemente falam todos ao mesmo tempo quando estão juntos. Suas conversações são ruidosas. Em meio a um grupo de ingleses, ao contrário, pelo silêncio que reina, seria possível dizer que temem se distrair uns com os outros. Os franceses, pelo barulho que fazem, não se entendem; os ingleses não dizem uma palavra: o que dá praticamente no mesmo", Nicolas Trublet, abade.
Eduardo Giannetti - Só para completar a sua coleção com mais uma que eu acho memorável, do Adam Smith, sobre ingleses e italianos: "Um italiano revela mais emoção ao receber uma multa de 20 libras do que um inglês ao ser condenado à pena de morte". O tema da identidade nacional era muito mais presente nos séculos 18 e 19 do que atualmente. Em grande medida, talvez por influência do marxismo, que suprimiu a legitimidade de uma consideração mais atenta às diferenças de culturas nacionais. No século 20, a questão do caráter nacional virou meio tabu. Uma vez eu tive a temeridade de perguntar para o Roberto DaMatta se o trabalho dele, no fundo, não estava resgatando essa idéia de caráter nacional. Ele ficou furioso! Ele acha isso uma coisa antiga, detestável, comprometida, embora trabalhe sistematicamente com o assunto. Há que se reconhecer que esse campo se presta muito a divagações impressionistas; não é à toa que se tornou um assunto tão delicado e tão escorregadio."
No despontar da juventude eu havia deploravelmente faltado. Rezava a Deus pela castidade e dizia: 'Dai-me a castidade e a continência, mas não já'. Pois temia que Deus atendesse prontamente às minhas preces, e cedo demais me curasse da enfermidade da lascívia, a que desejava satisfazer, não suprimir", Santo Agostinho, filósofo.
Eduardo Giannetti - Esta frase tem muito a ver com meu livro O Valor do Amanhã. Quando você escreve um livro, lê muito sobre um assunto, reúne muito material. E, na verdade, o que acaba sendo usado é uma proporção muito pequena do trabalho de pesquisa que você fez. Então, às vezes, eu realmente ficava me lamentando por não ter conseguido incorporar mais do que eu tinha pesquisado no trabalho final que acabou sendo publicado. O Livro das Citações me deu a chance de usar e organizar muito material de Auto-Engano, de Felicidade, de O Valor do Amanhã. O outro lado dessa moeda é que eu espero que este livro seja também o fim de uma etapa na minha atividade autoral. Eu não pretendo mais citar daqui pra frente. Você teria uma citação para encerrar a conversa?
"Que outros se jactem das páginas que escrevemos. A mim, me orgulham as que tenho lido" - Jorge Luis Borges, escritor.
Reportagem de João Gabriel de Lima - Revista BRAVO 08/2008- Acesso 31/07/2009
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