Rosane Pavam
Ele achava que ser amado era uma injustiça. O primeiro romance a ler inteiro foi Huckleberry Finn, de Mark Twain. Preferia os contos e considerava amorfos os romances, mesmo o amado Dom Quixote. Mal falava italiano, mas leu e releu Ariosto. Era exímio nadador e detestava os poetas revolucionários ultraístas, mesmo tendo sido um. Pensava na batalha de Waterloo como uma vitória. Aos 6 anos, anotou que seu escrito era “demasiado melodramático”. Jovem, procurou a infelicidade e, maduro, cansou-se de tigres, espelhos e labirintos. Seu pai escreveu livros e destruiu aquele em que o personagem se mostrava desiludido com o filho. Tudo o que ditou Jorge Luis Borges sobre sua vida ao jornalista americano Norman Thomas di Giovanni, descrito nas linhas acima, retorna depois de nove anos ao País em Ensaio Autobiográfico (1899-1970), com nova tradução de Maria Carolina de Araujo e Jorge Schwartz, pela Companhia das Letras. O escrito de 75 páginas ganhou grande reputação com os anos, embora Borges não a tivesse desejado. Ele temia que os leitores migrassem de suas ficções em favor de um escrito de circunstância, como esta biografia encomendada.
Ensaio integrava um plano para introduzir o autor no gosto do leitor americano. Não fora feito de um só fôlego. Nascera de uma edição de textos próprios e entrevistas concedidas pelo escritor à imprensa. Mas, quando a revista New Yorker publicou-o pela primeira vez, em setembro de 1970, o sucesso foi monumental. Ensaio Autobiográfico passou, então, a introduzir a edição americana de The Aleph and Other Stories e ganhou o status de incontestável. A partir daquele momento, para fazer qualquer menção ao escritor, seria imprescindível consultar o texto antes.
Contudo, quão confiável poderia ser o relato biográfico de um autor que propositalmente, em sua literatura, embaralhou ficção e história? “Em Borges, é como se tudo estivesse desgarrado de todo contexto histórico, para existir em absoluta autonomia com relação à realidade, sempre avessa, na sua opinião, a toda espécie de transcrição artística”, escreve o crítico Davi Arrigucci Jr. E o Ensaio está lá para que o próprio Borges estabeleça um marco para este procedimento de “fraude”. Borges não se via como um autor, já que não acreditava na possibilidade de que algo novo surgisse em literatura. Era um “tradutor” de um pensamento antigo.
O conto A Aproximação a Almotásim, escrito em 1935, inaugurou a ideia literária de atuar entre a falsificação e o pseudoensaio, conta Borges na autobiografia. Neste conto, ele simula fazer a resenha de um livro publicado em Bombaim três anos antes. Para sua segunda falsa edição, Borges atribuiu-lhe um editor real e um prólogo de uma escritora igualmente “verdadeira”. Autor e livro foram inventados. Borges elaborou o enredo e detalhou os capítulos tomando elementos do escritor Rudyard Kipling. “Aqueles que leram A Aproximação a Almotásim o levaram a sério, e um de meus amigos chegou a encomendar um exemplar em Londres”, ele conta neste Ensaio no qual a escrita caminha discreta, demolidora, ora emocionante, ora divertida. “Talvez eu tenha sido injusto com esse conto. Parece-me agora que ele prefigura e até estabelece o modelo dos contos que de algum modo me esperavam e sobre os quais se assentaria minha fama como narrador.”
Por escrever como quem refaz o mundo, por usar a linguagem clara em favor do mistério, o que o escritor diz terá causado, em alguns leitores, o impacto de uma doutrina religiosa. Os escritos de Borges, à moda dos quadros renascentistas, embutiria um código a ser decifrado, uma conduta a ser seguida pelos iniciados.
O que Borges ensinaria secretamente nos livros, na visão desses leitores? Ele teria dado a pista para a invenção de coisas como a nanotecnologia, explica a professora de Teoria Literária e Literatura Comparada Eneida Maria da Silva, autora de O Século de Borges, reeditado depois de dez anos. “Essa corrente diz que Borges foi um precursor na área científica ao abraçar a ideia de que todos os livros caberiam em um, como no conto A Biblioteca de Babel”, ela diz.
Borges também teria ensinado secretamente que o futuro do conhecimento repousaria na virtualidade. Ao construir o pastiche de textos da biblioteca mundial, ele ressaltaria o caráter artificial da construção artística. Em sua literatura, os acontecimentos são ilusórios – portanto, virtuais. Finalmente, como um Francis Fukuyama de vanguarda, Borges teria colocado um ponto final na história, ele que tantas vezes a falsificara.
Leitores e críticos que pensam assim seriam interessados ou fundamentalistas? “Não sei, mas não gosto de ver o Borges nisso”, diz Eneida Maria da Silva. “Embora Sigmund Freud dissesse que a literatura estava à frente da ciência, todos os acontecimentos, históricos ou literários, devem ser considerados em seu tempo. Não se sabe qual deles é mais importante.”
Eneida estuda os contextos culturais em que obras como as de Borges, Pedro Nava ou Guimarães Rosa são construídas. Ela saca de metodologia borgeana ao analisar as conexões do autor com seu tempo. É difícil, por essa razão, explicar exatamente o que Eneida faz. A professora chama seu procedimento de “crítica biográfica”.
Ela ergue pontes de contato entre escritores no tempo. Cria, para eles, associações metafóricas ou, como diz, encontros imaginários. “E Borges se presta a isso”, ela crê. “Ninguém jamais chegou a um ponto verdadeiro de sua vida. Tento desconstruir a pretensa autenticidade do relato pessoal”, diz. Ela narra, por exemplo, o encontro do ficcionista brasileiro Autran Dourado com Borges em 1970, durante a entrega do Prêmio Interamericano de Literatura Matarazzo Sobrinho, em São Paulo. O avô de Autran, Ângelo Dourado, lutou na Revolução Federalista de 1893 ao lado de Gomercindo Saraiva, irmão do caudilho uruguaio Aparício. Borges conhecia Aparicio, mas achava que Autran falava de outro personagem, já que o Aparicio de Borges era Saravia, não Saraiva, como se diz em português. Para Eneida, essa confusão de grafia provaria a distância entre as duas línguas no mesmo hemisfério. E evocaria outro encontro, que Borges teve com a literatura brasileira, ao ouvir em um navio, em 1914, a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias.
À véspera da comemoração dos 110 anos do nascimento de Borges, em 24 de agosto próximo, mais livros querem virar o argentino do avesso. Nem todas as publicações são criativas como a da pesquisadora Eneida, que vê um “verbete Borges inscrito na suposta Enciclopédia Literária Global”. Ao circular infindavelmente, ela diz, esse verbete transformaria Borges em “alucinação coletiva” e eliminaria sua autoria.
Felizmente, para o leitor comum e desinteressado, há o Borges que caminhou pelas calçadas de Buenos Aires e, vendo os anos passarem, declarou em um verso: “O tempo está vivendo-me”. O Olhar de Borges – Uma Biografia Sentimental, de Solange Fernández Ordóñez, arregaça as mangas para entendê-lo a partir da aproximação familiar que teve com ele. O livro, lançado na Argentina no ano passado, chega ao Brasil em primeira edição pela mesma Autêntica.
A pesquisadora é filha de Carlos Fernández Ordóñez, advogado a quem Borges legou seus cadernos de rascunhos. Nesses volumes, o escritor anotou ideias, transcreveu textos que lhe interessaram, preparou as aulas que daria e construiu as memórias para suas conferências, ministradas desde o fim dos anos 1920 até a perda total da visão, nos anos 1950.
Três meses após a morte de Borges, em 1986, morreu Ordóñez, e sua filha Solange, desde então, compartilha os cadernos com outros herdeiros. Não pode reproduzir seu conteúdo, embora tenha permissão para detalhar procedimentos adotados pelo autor em sua escrita. Borges, diz ela, reelaborava os escritos inúmeras vezes.
E como se trata de uma biografia sentimental, o que faz Solange Ordóñez em O Olhar de Borges é revelar as impressões que lhe causavam o escritor desde a infância. Um herói do argentino era Macedonio Fernández. O amigo falava melhor do que escrevia. E dizia que resolveria o enigma do universo se um dia se estendesse no campo. Mas de nada serviria a descoberta, porque ele não seria capaz de transmiti-la. Para Solange, Borges agia de forma parecida com a de Macedonio nas reuni-ões de família. O humor era enorme.
Em um almoço, Borges disse ter perguntado a um professor de filosofia acerca do temporal e ele lhe respondeu que nos últimos anos se havia avançado muitíssimo na solução do problema do tempo. Borges riu ao ponderar que, se a consulta tivesse sido sobre o problema do espaço, o professor diria que se havia avançado muito nas últimas quadras. Borges gostava de outra anedota. Um homem na rua lhe perguntou: “Você é Jorge Luis Borges?”, ao que ele respondeu: “Não tenho muita certeza”.
Bem-humorado era também o amigo Adolfo Bioy Casares, que Borges dizia ser seu “verdadeiro e secreto mestre”. Juntos, eles criaram o escritor-personagem Bustos Domecq, cujos textos Arrigucci revisa para lançamento próximo. “Durante anos, a dupla identidade de Bustos Domecq não foi revelada. Quando por fim se soube, as pessoas pensaram que, como Bustos era uma brincadeira, não se podia levar muito a sério o que ele escrevia”, diz Borges no Ensaio Autobiográfico.
Embora Borges aponte no “anarquista filosófico” Guillermo, seu pai, um formador intelectual, a mãe, Leonor Acevedo, declarou a Solange Ordóñez, em longa entrevista, que “os filhos são mais da mãe que do pai”. Há apontamentos seus ao lado daqueles do filho nos cadernos de rascunhos. Em uma página, Borges escreve que o avô, quando menino, ao procurar pêssegos, deparou “com as cabeças dos decapitados”. A mãe o corrige: “Com o sangue que corria por entre as barbas dos mortos”.
http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=10&i=4583
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