sábado, 11 de julho de 2009

Nossas cidades

JAIME PINSKY*
Placas imensas escondendo belas fachadas, reformas efetuadas sem nenhum planejamento, avanço descontrolado das fachadas sobre as calçadas, cada vez mais estreitas, guaritas nos bairros residenciais, camelôs nas regiões movimentadas, carência de faixas de pedestres, trânsito indisciplinado, ruas atravancadas, ausência de padrão mínimo de construção, matagais e lixo em terrenos baldios, destruição do patrimônio histórico, de reservas florestais, invasão de mananciais, este é o retrato de nossas cidades.
Nossas cidades não têm caráter. À exceção de algumas planejadas, como Brasília, e outras providencialmente esquecidas durante décadas, como Tiradentes, elas são um ajuntamento desorganizado de gente. Mesmo lugares turísticos como Parati e Ouro Preto se transformaram em grandes favelões envolvendo a área histórica.
Estudos sobre os problemas urbanos são muitos, os diagnósticos estão feitos. Pesquisadores como Ângelo Serpa, Ana Fani Carlos e Eduardo Yazigi, entre muitos outros, têm produzido trabalhos em que mostram que as ruas e os chamados espaços públicos deixaram de sê-lo. Ruas foram entregues aos automóveis, praças a desocupados. Em uma blitz realizada na central Praça da Sé, em São Paulo, mais de 100 pessoas foram presas, numa demonstração de que o medo do paulistano em caminhar em lugares públicos é justificado. Em bairros residenciais de classe média alta, as ruas são ocupadas por guardas e vigilantes particulares, nunca por moradores, que só entram e saem de carro de suas residências. Numa recente reunião de condomínio, vários moradores do prédio em que moro confessaram não conhecer a sala de estar do pavimento térreo, porque nunca haviam entrado a pé no edifício...
As cidades — não só as metrópoles, ou as grandes cidades, mas até as médias e muitas das pequenas — não são pensadas para moradores, mas para motoristas. A ausência de qualidade dos transportes coletivos é conhecida. O metrô de São Paulo, por exemplo, citado com frequência como modelar, anda superlotado e seus carros, na sua esmagadora maioria, não possuem ar-condicionado, fazendo com que as pessoas cheguem ao seu destino suadas e exauridas. A maior parte dos ônibus urbanos, além de não serem refrigerados, trafegam apinhados, têm suspensão de caminhão, degraus elevados que causam constrangimento a senhoras e idosos e, por incrível que pareça num país que se orgulha tanto de sua indústria automobilística, nem sequer são dotados de câmbio automático, o que evitaria tantos solavancos.
O motorista de ônibus, mesmo vindo de um extrato social mais humilde, rapidamente incorpora a ideologia dos condutores de veículos, segundo a qual o pedestre é um fracassado que tem mais é que sofrer. Já se disse muitas vezes que o respeito às faixas é condição necessária, embora não suficiente, para uma nação entrar no rol dos civilizados. Pelo visto ainda estamos longe disso na maioria das cidades brasileiras (Brasília é uma agradável exceção, nesse aspecto). De resto, parece que alguém instaurou verdadeira caça ao pedestre. Como provável único motorista paulistano a respeitar a faixa, sou buzinado pelos que vêm atrás e agradecido pelos passantes, como se eles devessem agradecer por ocupar um espaço que lhes pertence. Estamos no reino do veículo individual motorizado, pedestres, ciclistas e outros “minoritários”, que se danem.
Mudanças de conduta são obtidas por meio de prevenção, educação e repressão. Mas, antes de tudo, por vontade política. Num país em que é comum e se acha normal a prestação de favores pessoais com dinheiro público, é evidente que o interesse da maior parte da população é irrelevante. Não é por outro motivo que temos bancos de Primeiro Mundo (aliás, ainda mais lucrativo do que os deles), universidades de classe média e transportes coletivos de países atrasados. As ruas deixarem de ser espaços públicos é interessantes aos governantes, que até cogitam transferir para sambódromos e outros locais confinados às poucas manifestações coletivas que ainda ocorrem nas metrópoles brasileiras. De resto, para isso é que existem os shoppings, que, em nossas cidades, são logo categorizados por classe social e têm sua frequência selecionada como se fossem clubes ingleses ou locais de culto americanos. Tudo muito coerente com nosso projeto de nação. O verdadeiro, não o alegado.
*Jaime Pinsky, historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto.
Correio Braziliense, 11 de julho de 2009

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