Provas técnicas de uma
"revolução cultural"
para anular a hierarquia
entre professores e alunos.
Uma provocação que atravessa os
muros das universidades,
envolve os lugares da produção e
tira de cena a paixão pela desigualdade
que domina a vida nas
sociedades contemporâneas.
Páginas que merecem ser lidas mais vezes para se compreender o porte da "revolução cultural" proposta por
porque supera os limites dentro do quais o seu autor queria constrangê-la.*
No livro "O mestre ignorante" (Editora Autêntica, 2002), o filósofo francês aponta o dedo contra a "paixão pela desigualdade" que domina a cena política nos países capitalistas, oferecendo ao mesmo tempo uma mudança radical de roteiro, em que os papéis da divisão social do trabalho são simplesmente anulados.
A cena da qual Rancière parte é uma sala escolar, onde a figura do professor perde a aura do depositário do saber e – o que é mais importante – do poder único de indicar o caminho para acessá-lo. Um mestre que se considera único possuidor do conhecimento ajuda a perpetuar a "paixão da desigualdade" e a dividir a sociedade em sábios e ignorantes, em meritórios e "inúteis". E, visto que no capitalismo a unidade de medida da inteligência é dada pela posição ocupada na hierarquia social, o ensino é parte integrante da divisão da sociedade em classes.
Uma tese em que são fortes os ecos da crítica à escola de classes de 1968, mas Rancière parte habilmente de uma experiência amadurecida nos anos da derrota da Revolução Francesa e da restauração para estender o fio condutor da igualdade que une a tomada da Bastilha, o nascimento, o eclipse político do movimento operário e as teorias radicais do início do milênio.
A tríade liberdade, igualdade e fraternidade que servem de moldura para as discussões nos clubes republicanos e na assembléia nacional francesa, nas sedes operárias ou nas barricadas do quarteirão Latino sempre tiveram como fundo o acesso ao conhecimento, porque é por meio da cultura que os homens e as mulheres podem transformar os ideais republicanos ou de igualdade em normas que regulam o processo de transformação da sociedade.
De Paris a Louvain
É esse primado do ensino na formação de uma subjetividade política assinalado por Rancière que fornece ao pensamento crítico elementos importantes na crítica contemporânea ao "progressismo" de quem quer educar o povo para a liberdade e para o pensamento conservador, que considera a desigualdade como um fator congênito à natureza humana. Mas também porque o texto do filósofo francês fornece instrumentos sofisticados para a crítica da produção capitalista do saber e do conhecimento.
Nessa realidade em que a universidade funciona segundo uma lógica capitalista, a partilha do saber e o cancelamento da distância entre professores e alunos devem ser consideradas certamente como variações sobre o tema da crítica à mercantilização da cultura, mas também como o terreno da crítica à produção de mercadorias justamente pela centralidade do saber na sociedade do capital.
Um protagonista indiscutível do livro é Joseph Jacotot, republicano que foi obrigado pela restauração ao exílio nos Países Baixos, onde chegará a ser cátedra na Universidade de Louvain. Não sabia a língua e teve que aprendê-la rapidamente. Para fazer isso, leu um livro em francês que tinha uma tradução na língua do país hóspede ao lado e tentou aplicar com os estudantes o método usado por ele mesmo. É o primeiro passo para focar a figura do "mestre ignorante", que aceita o desafio de subverter a hierarquia tradicional entre o sábio e o ignorante.
O mestre, para Jacotot, é, além disso, aquele que abole a distância entre aprender e compreender. Mas nesse cancelamento da distância, é preciso agir às apalpadelas, "observando, recordando, repetindo, fazendo e verificando e refletindo" sobre o que, até agora, foi feito. Um método que o republicano derrotado mas não resignado chama de "método do acaso", em que não há a necessidade de nenhum mestre, só uma forte vontade e convicção da igualdade de todos os homens e mulheres.
O bom professor é, portanto, aquele ou aquela que tem como objetivo não tanto transmitir aos alunos aquilo que estes ignoram, mas fornecer a chave de acesso à sua emancipação, obrigando-os a usar a sua inteligência, que é igual em todos os humanos, mesmo que desigual nas suas manifestações.
O bom mestre é quem interroga e verifica com atenção a manifestação da inteligência, porque é preciso inverter o lema cartesiano "penso, logo existo" para "eu sou homem e por isso existo". Todos, assim, são capazes de pensar. O acesso ao saber e ao conhecimento é um ato de emancipação, não porque há uma figura institucional que a legitima, porque expressa uma vontade de tomar a palavra para afirmar a própria liberdade e a própria singularidade dada pela "desigualdade nas manifestações" da inteligência, igual em todos os homens e mulheres.
Pedagogia da libertação
O texto de Jacques Rancière foi escrito na segunda metade dos anos 80, isto é, no azimute da contrarrevolução neoliberal. Por isso, está marcado pela necessidade política de fazer frente à derrota dos movimentos sociais radicais e de inovar o pensamento crítico.
A escolha de propor uma espécie de "pedagogia da libertação" é, assim, a passagem obrigatória para colocar as bases de uma crítica radical renovada da já existente. O mestre ignorante tem, porém, um objetivo duplo, porque 1968 não colocou sob acusação as hierarquias de classe do capitalismo, nem a pretensão do movimento operário de educar para a igualdade.
O mérito do livro não está só nessa "revelação" da comum "paixão da desigualdade" que congrega "progressistas" e "conservadores", mas sim em fornecer indicações preciosas sobre como afirmar a "igualdade das inteligências" em um capitalismo que fez do saber a matéria-prima da produção.
O "método do acaso", justamente por ser parte do pressuposto de que todos podem pensar, é assim uma arma política para denunciar o uso capitalista do conhecimento e para romper o encanto que regula a vida nos atuais laboratórios da produção.
Rancière defende que, se todos podem pensar e aprender, todos podem também organizar a produção sem a figura "parasitária" do empresário. Ao mesmo tempo, na fábrica do saber, a autoformação não é só exercício de liberdade, mas também afirmação de um processo de partilha do saber. De fato, é realista afirmar que todas as experiências que menosprezam as tradições hierárquicas, estimulando a cooperação social, apresentam politicamente a crítica da "paixão da desigualdade" e, ao mesmo tempo, a possibilidade de um modo diferente de organizar a produção da riqueza.
Em testemunho disso, são citadas a produção "open source" ou livre do software, mas também a livre circulação da ciência, mas só se a autoformação e a auto-organização não são relegadas a um pretexto para se eximir da "fadiga" do aprendizado e a experimentações de relações sociais baseadas na "igualdade das inteligências".
O roteiro e o cenário propostos por Rancière devem incluir, assim, além das salas universitárias, todos os lugares onde há produção de mercadorias. Só assim o mestre ignorante e o seu "método do acaso" mantêm a sua força política, para deixar para trás a dissimulação da ação política que o republicano Joseph Jacotot havia construído em torno à sua experiência de leitor de francês em Louvain.
*A reportagem é de Benedetto Vecchi, publicada no jornal Il Manifesto, 21-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Reproduzida por IHU/Unisinos, 31-07-2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário