Moacyr Scliar*
"Num passado ainda recente,
a velha fórmula do antiamericanismo
ainda era útil,
mas a eleição de Obama
mudou essa postura”
O escritor uruguaio Mario Benedetti, recentemente falecido, era, junto com Eduardo Galeano, Juan Gelmán e outros, um expoente da literatura engajada na América Latina. Em seus mais de 80 livros a questão social era tema prioritário, como o era em sua vida: Benedetti era um ativo militante de esquerda. Foi um dos fundadores do Movimento 26 de Março, que integrou a coalizão conhecida como Frente Ampla. Colaborou em vários jornais, a começar pelo lendário Marcha, no qual permaneceu por quase 30 anos. Com o golpe de 1973, renunciou a seu cargo na universidade e exilou-se, primeiro em Buenos Aires, depois no Peru — onde foi preso e deportado —, depois em Cuba, depois na Espanha... O clássico périplo de muitos intelectuais latino-americanos, e que, no caso de Benedetti, durou 10 anos, ao longo dos quais esteve separado de sua família. Mas até o fim o escritor manteve seus ideais, sua confiança no processo de transformação social, posição que resumiu numa frase: “O destino do escritor latino-americano está ligado ao do seu povo”. Uma opinião que ele partilhou com muitos intelectuais.
De uma forma ou de outra, o engajamento esteve presente na obra de muitos grandes escritores, mas um marco neste sentido é o famoso J’accuse (1898), em que o escritor francês Émile Zola denunciava a arbitrariedade antissemita no caso Dreyfus. A palavra intelectual nasceu aí, e teria uma longa trajetória: a partir de então, esperava-se que escritores tomassem posição diante de questões políticas e sociais. E de fato muitos escritores celebrizaram-se nesse sentido, a começar por Jean-Paul Sartre. Em O que é literatura?, Sartre defende a ideia de que o escritor tem obrigação de dar sua contribuição para o processo de mudança social. E foi o que ele próprio fez, participando, junto com Simone de Beauvoir, de muitos movimentos políticos (e, a propósito, fazendo da recusa do Nobel de literatura uma forma de protesto). Na América Latina, não foram poucos os escritores que seguiram este caminho: Julio Cortázar na Argentina, Pablo Neruda no Chile, Cesar Vallejo no Peru, Jorge Amado no Brasil.
O engajamento não cessou de crescer na primeira metade do século 20. Os ideais de esquerda tinham triunfado com a revolução russa de 1917 e, por outro lado, o nazismo mostrava o quanto a direita pode ser abominável e criminosa. Aos poucos essa polaridade foi ficando menos clara, mais confusa, com a revelação dos crimes do stalinismo e com a defesa do regime democrático feita pelo Ocidente. É verdade que a luta anticolonialista, sobretudo na África, proporcionou uma causa, para escritores como Agostinho Neto e Luandino Vieira. Com o tempo, ficou cada vez mais difícil dizer o que é esquerda, e sobretudo definir as bandeiras de luta da esquerda. Num passado ainda recente, a velha fórmula do antiamericanismo ainda era útil; mas a eleição de Obama mudou essa postura e, pior, hoje ser antiamericano significa muitas vezes ter como aliados terroristas, fanáticos religiosos e populistas sedentos de poder.
Nesse sentido, vale a pena lembrar a declaração de José Saramago na entrevista coletiva que deu ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade Federal de Minas Gerais. Perguntado sobre o engajamento do escritor, Saramago respondeu: “Essa é uma questão que cansa um pouco... O que significa uma literatura engajada? Uma literatura a serviço de uma determinada ideologia? Se é assim, sou contra. Se é uma literatura na qual a ideologia do autor não está ausente, sou a favor. Todos temos ideias, opiniões, sentimentos, aspirações, ilusões, enganos. Tudo isso compõe a vida humana... Não faço da literatura um panfleto. Ser engajado não significa sair à rua com uma bandeira ou manifesto, mas ter uma presença na vida, na sociedade”.
*Moacyr Scliar, escritor gaúcho, colunista de jornais, escreve quinzenalmente no Correio Braziliense, 14/07/2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário