ALAN PAULS*
Como todo mundo, Jorge Luis Borges (1899-1986) teve um pai e uma mãe. Dos dois, entretanto, apenas um -a mãe- ocupa um lugar na mitologia borgeana. Descendente de espanhóis e militares, Leonor Acevedo de Borges foi uma mãe de tomar em armas, afiada e despótica. Vigiou a carreira literária de seu filho com rigor higienista, um pouco como os pais dos precoces prodígios dos esportes ou da televisão hoje moldam as trajetórias de seus rebentos. Proibiu Borges de ler "Martín Fierro" ("um livro que só é apropriado para sem-vergonhas"), promoveu a carreira dele "silenciosa e eficientemente", afugentou namoradas ameaçadoras, foi sua secretária, sua leitora em voz alta (quando Borges ficou cego), sua companheira de viagem. E, basicamente, foi longeva. Viveu quase cem anos, o que a permitiu chegar do escuro século 19, no qual nasceu, até meados dos anos 70 do século 20, a aurora de uma civilização midiática que contribuiu para celebrizá-la. O apagado Jorge Guillermo Borges não teve a mesma sorte. Morreu em 1938, quando seu filho nem sequer intuía a fama que o aguardava. Advogado, anarquista com veleidades de filósofo e professor de psicologia, Borges, pai, fez por seu filho muito mais do que a posteridade sensacionalista se dispõe a reconhecer, ela que, no fundo, o reduziu a uma anedota lasciva: a prostituta que ele contratou em Genebra para que seu filho, então no final da adolescência, se iniciasse nos ardores do sexo.
Legado
O mais importante que Borges, pai, deu a seu filho, deu já morto, sob a forma pudorosa mas influente do legado. Legou a seu filho sua biblioteca ("o feito capital de minha vida"), a amizade magistral de Macedônio Fernández, dois males inexoráveis (a timidez e a cegueira) e um mandato difícil de resistir: o de escrever. Isso porque, além de plagiar William James nas aulas de psicologia que dava na Escola Normal de Línguas Vivas, Jorge Guillermo Borges era escritor, e do tipo mais perigoso: um escritor fracassado. Tinha escrito poemas, textos, exercícios de prosa que mantinha em segredo, a meio caminho entre o hobby e o fetichismo, e que só se atreveu a mostrar a seu filho quando ganharam forma em um gênero dotado de autoridade: um romance. Borges, pai, publicou "El Caudillo" em 1921, quando seu filho tinha pouco mais de 20 anos, era vanguardista e só tinha dado a conhecer um punhado de versos de incendiado espírito bolchevique. O romance -"interceptado" por algumas metáforas audazes que Borges, filho, conseguiu incorporar a ele- passou despercebido, mas funcionou como elo crucial na cadeia de transmissão entre pai e filho. Até o final de sua vida, o autor de "Ficções" confessava que um de seus projetos mais caros, que nunca realizou, era "revisar e talvez reescrever o romance de meu pai, "El Caudillo", como ele me pediu há anos". Talvez nessa reescritura se encontrasse a única possibilidade de assistir a um milagre que a obra de Borges sempre nos negou: o milagre de um Borges romancista. Uma visão enganosa desse milagre é a que as livrarias de Buenos Aires vêm oferecendo desde alguns meses: a reedição, a cargo de uma pequena editora de vanguarda da cidade, do romance de Borges, pai, até agora impossível de ser encontrado.
Exercício narrativo
"El Caudillo" é um exercício narrativo moldado pelo século 19: um livro de ambiente rural, entorpecido por meses de sesta e tédio e açoitado repentinamente, em uma única noite fatídica, por um temporal que se abate sobre o campo argentino e centrifuga tudo: vacas, pontes, política, paixões amorosas. No coração do romance há um amor não correspondido, equivocado e culpado, de um francês sensível, Dubois, e uma moça que é o cúmulo do recato, Marisabel, filha de Andrés Tavares, o cacique territorial que dá título ao livro, domina todo o cenário político que lhe serve de pano de fundo e, com sua onipotência e brutalidade, feminiza todos os homens que o rodeiam. É um romance instável, descompensado, que se deixa seduzir por lânguidos impulsos descritivos e então, como se despertasse de um sonho, volta a si, amarra dois ou três fios que estavam pendurados soltos e mergulha de cabeça num labirinto de peripécias. É também nessas desproporções internas que se encontra sua beleza estranha e escura, a perturbada contracapa da poética de nitidez e controle que Borges, filho, sempre defendeu. É difícil imaginar o que teria feito o autor de "O Aleph" se tivesse se decidido a corrigir o romance de seu pai. É mais fácil ler os rastros que o delatam. Este, por exemplo: "Se os elementos que formam o mundo são os mesmos e são contados, o acaso, o Deus ou os deuses que os manipulam teriam, no longo prazo, que combiná-los da mesma maneira". Importa pouco saber de qual dos dois é essa apologia da repetição. Muito mais interessante, singular e comovente é detectar em um livro antigo e esquecido os rastros que um pai e um filho deixaram ao cruzar-se não na vida, onde pouco os uniu, mas na literatura, à qual ambos deveram tudo.
*ALAN PAULS , 50, é escritor argentino, autor de "O Passado", entre outros. Tradução de CLARA ALLAIN
Artigo escrito especialmente para a Folha, o autor argentino ALAN PAULS conta como é o romance do pouco conhecido JORGE GUILHERME BORGES, pai de um dos mais importantes nomes da literatura, reeditado agora em Buenos Aires.
Folha de São Paulo-Ilustrada, 11/06/2009
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