Régis Debray*
"É preciso reencontrar
o sentimento do
"nós",
além do nosso
'eu aqui'.
A questão do político no que ela tem de mais essencial, a de viver junto, está no cerne dos trabalhos de Régis Debray desde seu livro mais destacado, Crítica da razão política (Gallimard, 1981). Sua reflexão sobre o político o conduziu a interessar-se bem de perto pelo fato religioso, já que sua tese central mostra que toda sociedade se fundamenta em torno de um princípio invisível que une os seus membros.
Seu último livro, O Momento fraternidade (Gallimard) é ao mesmo tempo uma notável síntese de seus trabalhos anteriores sobre a sacralidade do político e uma reflexão estimulante sobre os limites da “religião civil dos direitos do homem” e o conceito tão antigo e tão moderno de fraternidade. Pode ser que não se compartilhe de todas as teses do midiólogo ou ter uma visão mais otimista do que a dele, mas, quem se interessa pelo futuro de nossas sociedades lerá esta obra brilhante, por vezes perturbadora, sempre esclarecedora. Em exclusividade para Le Monde des Religions, uma explicação de texto e um debate com o autor.
A reportagem é de Frédéric Lenoir e Jennifer Schwarz, publicada no jornal Le Monde des Religions, 10-03-2009. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis a entrevista.
O senhor abre o seu livro com uma profunda reflexão sobre o sagrado. Por que, a seu ver, toda a sociedade necessita do sagrado?
Porque aquilo que nos une nos ultrapassa, para o melhor ou para o pior. O que pode transformar em um “nós” singular um enxame de “eu aqui”? Como fazer grupo e o que permite a uma pessoa moral não desaparecer com as pessoas físicas que dela fazem parte? Esta é a questão que me ponho há mais de trinta anos. A união não acontece por si, já que o homem, como se diz, é um lobo para o homem. E, no entanto, existem coletivos, nações, tribos, clubes, equipes, lojas, igrejas. O que é, então, que faz de um puzzle uma arquitetura duradoura? Parece-me que é uma transcendência, situada além do dado imediato. Para que haja a participação, é necessário um ponto de ausência, um lugar fundador, um vazio destacado que pode ser um antepassado, um texto, um mito, uma expectativa. Este ponto de fuga, que assegura ao mesmo tempo coesão e perenidade, é o que se chama o sagrado. Vejo nisso uma necessidade invariante, com formas de expressão bem variáveis, já que cada grupo humano produz suas sacralidades: não é a mesma coisa agrupar-se aos pés da estátua de Atena, de Jesus Cristo, de Lincoln ou de Lênin.
Isso implica que haverá sempre algo irracional na existência coletiva... Você desejaria que chegássemos a nos passar a este invisível que funda o sagrado?
Como piedoso materialista, eu esperei por muito tempo que se pudesse passar fazendo do homem o seu próprio pai, reduzindo toda comunidade de destino a uma leve auto-sugestão. Mas, tive que submeter-me ao fato que há sempre na semana um dia consagrado a algo diferente do ordinário dos trabalhos e dos dias. Não conhecendo nenhuma sociedade ou nação que não tenha em seu território um centro nevrálgico, cristalizando uma memória ou uma esperança, eu abordo o mistério pela observação do visível. Descrevendo o que há de comum a todos esses “lugares” emblemáticos, quer seja um monumento, um muro, um mausoléu, uma cripta. São ao mesmo tempo pontos de reunião e espaços circunscritos, à parte. O que nos permite viver em comum, sendo também o que nos põe à parte dos outros que não são da comunidade. É o duplo jogo do sagrado.
A mensagem bastante original de Jesus dizendo à Samaritana – “não é nem sobre esta montanha nem em Jerusalém que é preciso adorar Deus, mas em espírito e em verdade” (João, 4) – consistia precisamente em sair desta lógica de sacralidade que encerra num espaço, num território, uma comunidade. O erro do cristianismo não foi o de ter retornado a uma sacralidade que encerra...? Fora da Igreja, nenhuma salvação?
O que você apresenta como um erro e, portanto, um desvio, eu o vejo como uma necessidade. Lastimável, mas inelutável. A história prática da espiritualidade cristã é uma lição para várias coisas. O Messias deu a mais bela formulação desejável e a história da cristandade deu retorno dentro do possível. Da utopia teológica a uma antropologia antes vexatória em face da grande Promessa, Jesus viera dizer-nos que não se necessitava mais de templo para orar, Deus não estando em lugar nenhum e por toda parte no coração de cada um. Ora, o que se produz desde que ele morre? Os discípulos lhe deixam, se ouso dizer, o sagrado nas costas. O funcionamento real da comunidade desmentiu a mensagem individual que lhe dera nascimento. A eucaristia, sim, mas numa igreja, e celebrada por um homem à parte, um clérigo.
Não existe uma tensão em todas as civilizações entre a religião institucional, que necessita delimitar o sagrado, e as correntes místicas que tendem a universalizar?
Esta tensão parece, com efeito, insuperável. O espiritual quer ir mar a fora, o religioso conduz ao porto. Os místicos abrem brechas, seus discípulos levantam muros, um recinto doutrinal, regulamentar e geográfico. É este o jogo que se encontra no judaísmo, no cristianismo e no islã. Há o sufi e há o imã. Há o abade Pierre e há o cardeal. O difícil é pensar os dois ao mesmo tempo.
A sacralidade moderna, a religião ocidental, diz o senhor, se encarna nos direitos do homem. Uma religião civil com a qual o senhor se mostra bastante crítico. O ideal dos direitos do homem não é, no entanto, necessário para construir um mundo viável e pacífico?
Encontra-se na nova religião civil, na religião dos descrentes, a mesma oposição íntima que se encontrava no cristianismo entre a inspiração e a instituição de chegada. Entre o discurso das Bem-aventuranças, se você prefere, e as cruzadas exterminadoras. Como não se podem projetar sobre o cristianismo os crimes da cristandade, nem os do comunismo sobre a filosofia das Luzes, seria injusto imputar aos direitos do homem os crimes do Ocidente ou de quem os comete. Ninguém pode negar que há na aquisição histórica dos direitos da pessoa um formidável desaferrolhamento. O que pode exasperar é ver uma aspiração sem limites legitimar e servir um sistema de poder e de dominação bem aferrolhado, feito de cinismo, de iniqüidade e de opiniões preconcebidas. Eu reclamo, como bom laico, uma clara separação entre o espiritual e o temporal, entre o ideal regulador e o aparelho de Estado. Senão, o humanitarismo gera um novo clericalismo. Há tal complexo de superioridade entre os ocidentais, tal arrogância que os direitos do homem se tornaram um sistema de fechamento, de não-reconhecimento do outro, um verdadeiro obstáculo à descentralização. A auto-suficiência moral resseca nosso campo de consciência. Isso já não é mais narcisismo civilizacional, isso é autismo. A negação da fraternidade. Eis o que é perturbador: a profunda indiferença do ocidental médio ao outro enquanto outro.
O que devia ser um pensamento que inclui se tornou, a seu ver, um pensamento da exclusão...
O problema é que esta não é pensada como tal. Nossos particularismos se arvoram em universalismo. Isso é clássico, me direis vós. “Tu não matarás”, “tu não cobiçarás a mulher de teu próximo”, “tu respeitarás o outro”. Sim, na cabeça! Mas, quem é este outro que os direitos do homem, ao modo da Bíblia, nos ordenam respeitar? Não é o homem do outro lado da montanha. É o correligionário, o mano ou o primo. É absolutamente preciso recordar-se dos direitos imprescritíveis da pessoa, sem jamais esquecer que não se conduz um coletivo como uma pessoa. E que o indivíduo, em suas matérias, jamais tem a última palavra. Virá um dia, dentro de um século ou dois, em que nós nos espantaremos com nossa “antropolatria”, em que veremos em nossa fé, um tanto etiquetada, o estigma de um tempo de ilusão, em que o indivíduo ainda estimava estar no centro do mundo, desafiado, cortado da natureza e dos viventes. Este desligamento fará sorrir ligeiramente, quando se falará dos direitos do vivente e dos deveres do homem para com o mundo.
O conceito de fraternidade está no cerne de sua última obra. Em que ele vos parece particularmente pertinente hoje em dia?
Porque ele é dramaticamente esquecido, desde que a economia toma a vanguarda e que o dinheiro não tem mais mestre. Esclareçamos que é menos, a meu ver, um conceito do que um trabalho, um exercício, uma ginástica. Eu falo, seguramente, das fraternidades coletivas. O que também me intrigou é o porquê desse recalque, o porquê desse desligamento atual. A fraternidade, impensável na Antiguidade, numa sociedade não igualitária, se torna possível com o monoteísmo e pensável com o cristianismo, que a pôs em prática nas fraternidades monásticas. A Revolução francesa projetou este dado espiritual no universo político. Eu não creio que haja muitas culturas que tenham visado uma fraternidade fora dos laços de sangue, da etnia ou da religião. Em nosso meio ela está ligada à idéia de nação, isto é, a uma comunidade de iguais diante da lei, qualquer que seja a origem étnica. A pátria, ao mesmo tempo maternal e viril. E quando se considera o ocorrido na história francesa quanto a esse princípio, percebe-se que ele está ligado à re-ascensão do romantismo cristão em meados do século dezenove, em 1848 exatamente, quando Jesus era [visto como] o proletário de Nazaré, contra o papa e os privilegiados. Mas, a primeira aparição política da fraternidade cristã ou franco-maçônica remete a esta mãe da qual todos nós somos os filhos e que nós devemos proteger, a pátria em perigo, em Valmy, em 1792. Há como uma dupla natureza da fraternidade, ao mesmo tempo religiosa e guerreira, o Exército e a Igreja. Em todo o caso, ela jamais é benigna. De onde decorre seu recalque atual no Ocidente, e mais particularmente na Europa, que não quer mais ouvir falar nem de guerra, nem de comunhão.
Este conceito não parece tão recalcado... Nicolas Sarkozy e Ségolène Royal, para citar somente estes, recentemente, num meeting, realçaram por diversas vezes a fraternidade...
O chefe do Estado? Você me espanta muito. Ele fala dos direitos do homem. A fraternidade não faz parte da cultura anglo-saxônica. E Ségolène Royal sentiu bem a aspiração latente, mas temo que ela ainda não tenha mensurado o que há de mais áspero e de mais exigente nas fraternidades efetivas. O contrário do diz-que-diz-que.
De outra parte, a solidariedade não seria a tradução mais contemporânea da fraternidade?
Sem dúvida alguma. A solidariedade é uma fraternidade depurada de suas conotações evangélicas, de sua dimensão messiânica, plebéia e combativa. É uma fraternidade aburguesada, burocrática, emasculada, mas funcional. A III República pôde, assim, fazer passar na lei o que se sonhava em 1848. Tanto melhor. Mas, retornemos à fonte viva, despertemo-la. Eu não exijo um estado oficial, mas momentos vividos de fraternidade, ou antes, um estado social que possibilite esses momentos. Atingiu-se tal ponto de insolência no exibicionismo, na competição, na atomização, no cada um por si, que todos nós temos necessidade de respirar. De reencontrar o sentimento do “nós”, além do “eu aqui”. É uma questão de sobrevivência, não somente espiritual, mas física.
Lendo-vos, esta fraternidade não se poderia viver de outra forma do que nos limites do sagrado, ou seja, sob a forma de fraternidades localizadas, justapostas. Somos, no entanto, numerosos os que aspiramos mais profundamente por uma fraternidade humana mais universal. A ecologia, por exemplo, não constitui, aos vossos olhos, uma “nova religião civil” que, face à ameaça da destruição do planeta, estaria em condições de impelir os homens para o que Edgar Morin chama, em sua obra Terra-Pátria (Seuil, 1996), “uma tomada de consciência da comunidade sobre o destino terrestre”?
A meu ver, não há fraternidade sem o reconhecimento de uma filiação voluntária e cultural. É a arte de se inventar uma família que não deve nada à genealogia. A idéia de Terra-Pátria é infinitamente sedutora. Mas, me parece que lhe falta finitude para se tornar operacional, desculpe o paradoxo. A solidariedade ecológica é perfeitamente racional. Somos todos vulneráveis, expostos às catástrofes e responsáveis pelo futuro. Mas, uma comunidade de vulnerabilidades pode tornar-se uma comunidade de afeição? Os riscos ecológicos que são demasiado reais, podem gerar uma história de amor? Talvez a categoria mais alta, na espécie humana, esteja em condições de construí-la, mas ela ainda não impedirá, durante muito tempo, os massacres ao rés do chão. Sem uma história comum, que é uma palavra lendária, não há fervor comunitário, nem transcendência sensível, compartilhada. Eu não vejo o que a terra nos pode contar, nem em que língua. Ela fala aos geofísicos e aos químicos, mas o homem da rua precisa de poetas. De fato, tenho dificuldade de conectar a terra natal com um pequeno “t” e a terra com um “t” maiúsculo, o planeta e a pátria. A genealogia e a mitologia. Será que a terra pode se tornar mítica? Pode ela encantar-me? Murmurar-me ao ouvido? Pode-se voltar a ser xamã? Só se destrói o que se substitui. Se quiserdes acabar com os hinos nacionais, ou com as estrofes da Internacional, inventai um hino mundial que se possa aprender de cor. Ireis escrevê-lo em inglês ou em chinês? Ninguém compreende o esperanto. Como vedes, meu mal é não ser utopista, continuando alérgico aos conservadores. Revolução e realidade não são antinômicas. Precisamente a história das revoluções me ensinou que não vem ao caso e não ocupa lugar o que o homem não pode transferir de lugar. Jesus era um maravilhoso utopista, mas cem anos depois dele, os cristãos já tinham necessidade de suas pequenas relíquias e de um lugar de encontro. É assim o saber antecipado É quando você esquece a necessidade da sacralidade que ela vos alcança por trás e vos sufoca sem frases. Encaremos as coisas face a face e a gente se sairá um pouco melhor.
Postado no IHU/Unisinos, 15/07/2009
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