Delfim Netto*
Vivendo na sociedade moderna, cada indivíduo tem a percepção de que participa de dois universos separados: o político e o econômico, dos quais ele é interseção. O universo político é o do governo democrático, que implica:
1. Eleições honestas e periódicas, com sufrágio universal e partidos competitivos.
2. A existência de uma oposição bem definida.
3. A proteção dos direitos das minorias.
4. A liberdade de associação e expressão.
Nesse universo se realiza a justiça na política, que é expressa na Constituição. Nesta, os homens depositam os valores que definem como desejam viver na sociedade: liberdade individual, relativa igualdade, atendimento das necessidades básicas de todos e suprimento de certos bens públicos (o próprio mercado e a estabilidade monetária) que permitem a convivência civilizada. É no universo da política que se produz o Estado e a Constituição que o regula para proteger o cidadão e definir a base institucional sobre a qual ele construirá o seu universo econômico.
O universo econômico, por outro lado, se organiza, perigosamente, em torno de um só poder: o mercado. Séculos de observação mostraram que a interação de um número muito grande de agentes, cada um procurando seus próprios interesses, produz, misteriosa e espontaneamente, uma certa autocoordenação a que chamamos de mercado. O que os economistas observaram, ao longo do tempo, é que esse comportamento organizado que parece emergir da desordem (o mercado), depende de condições especiais:
1. De uma definição precisa do direito de propriedade, que permita ao indivíduo a apropriação dos benefícios dos seus esforços.
2. Da liberdade de iniciativa.
3. Da existência de instituições políticas que, além da estabilidade monetária, garantam o estrito controle das práticas de poder monopolístico, que permanentemenente seduzem os agentes econômicos. É óbvio que essas condições só podem ser estabelecidas no universo da política, o que mostra o universo econômico (o mercado) inserido dentro dele.
Talvez o exemplo mais claro disso sejam as intituições criadas (em 1951) pela chamada Economia Social de Mercado, que foram a base da reconstrução e da prosperidade da Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial até praticamente 1970. Após a reunificação (1990), a Alemanha sofreu uma recessão com alguma inflação, mas manteve suas velhas instituições trabalhistas, que sempre se negaram a aceitar que o trabalho e o conhecimento são uma mercadoria qualquer: um insumo igual à energia ou ao capital. Quem olhar de perto a organização do trabalho e sua codeterminação no processo industrial na Alemanha, vai enxergar um processo democrático e participativo insuspeitado. Ao contrário de todas as previsões terroristas de esclerose do seu mercado de trabalho, pequenas adaptações reduziram o desemprego e permitiram à Alemanha expandir-se dentro das condições do Tratado de Maastricht e das complicações da reunificação.
Para encontrar funcionalidade, uma sociedade tem de procurar, pragmaticamente, o ponto áureo, que equilibra os valores dos dois universos. Esta parece ser a construção constitucional de um Estado forte o bastante para garantir os direitos individuais, que respeite o trabalho como a atividade na-tural do homem, que proteja a propriedade privada e a competição e seja capaz de construir uma rede de segurança que atenda às necessidades básicas dos cidadãos menos afortunados.
Mas há um problema. O mercado, quando bem regulado, pode levar à eficiência produtiva e respeitar a liberdade, mas está longe de produzir a relativa igualdade. Ora, gostemos ou não, uma relativa igualdade (no sentido mais geral) é uma das aspirações fundamentais da justiça política nas sociedades democráticas, como observou Alexis de Tocqueville. A ideia de igualdade é o poderoso demônio que atormenta o homem cada vez que ele tem tempo para o pensamento crítico. Ela é permanente na História: em Aristóteles, 300 anos a.C., já encontramos uma discussão sobre o tema.
É precisamente a igualdade o valor que mais tem sofrido com o funcionamento desabrido dos mercados, que se realizou sob os auspícios das políticas sugeridas pelos organismos supranacionais, como o FMI, o Bird e a OMC, apoiados numa suposta ciência econômica. Mais dia, menos dia, para o bem ou para o mal, o processo democrático (isto é, as urnas!) vai corrigir esse fundamentalismo mercadista que esqueceu os ensinamentos da História.
*Delfim Netto , economista e escreve na Carta Capital.
Sextante
http://www.cartacapital.com.br/app/coluna.jsp?a=2&a2=5&i=4635
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