sábado, 19 de fevereiro de 2011

Giannotti - Entrevista

DE VOLTA ÀS FONTES DO PENSAMENTO CRÍTICO
Giannotti: “É mais fácil haver um socialismo brasileiro
do que uma filosofia brasileira”

Decano do estudo e do ensino de filosofia no Brasil, o professor emérito da USP e pesquisador do Cebrap José Arthur Giannotti lança livro no qual esquadrinha a longa herança reflexiva dos gregos até Wittgenstein

Um dos mais importantes filósofos do país, José Arthur Giannotti incorpora, como poucos, a figura do intelectual público, ou seja, aquele que se apoia em seu conhecimento especializado para se posicionar sobre política, economia e outros assuntos relevantes na arena pública – imprensa, conferências e debates.
No dia 1º de março, quatro dias depois de Giannotti completar 81 anos, chegará às livrarias seu mais recente título, Lições de Filosofia Primeira (Companhia das Letras), introdução voltada para estudantes da área e, ao mesmo tempo, um convite a interessados e curiosos. É um percurso pela história da filosofia que começa com os gregos, dá um salto para Nietzsche (“o primeiro dos filósofos radicalmente anticristãos”, como escreve), no século 19, e chega a Heidegger e Wittgenstein, que influenciaram, cada um a seu modo, boa parte da filosofia desde o século 20.
Nascido em São Carlos (SP), professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), Giannotti foi um dos fundadores, em 1969, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), onde ainda atua. A instituição se tornou um dos enclaves de inteligência em um período particularmente duro da ditadura no país, abrigando pesquisadores de áreas como filosofia, sociologia, economia e história.
Nesta entrevista, concedida por telefone de São Paulo, Giannotti fala, com franqueza e sem meias palavras, sobre filosofia, universidade e política. Para ele, a figura do intelectual público está em declínio.
– Quem ocupa a cena pública são basicamente os palhaços – sentencia.

A seguir, uma síntese:

Zero Hora – Por que o senhor decidiu escrever neste momento este Lições de Filosofia Primeira? Foi sua intenção atingir um público diferente?
José Arthur Giannotti – Não. Eu me aposentei muito cedo, primeiro pelo AI-5 e depois em 1984, na medida em que precisei dirigir o Cebrap por 11 anos. Sempre dei pouca aula. Em uns 30 anos, dei aula por pouco mais da metade. Isso fez com que eu voltasse à faculdade sempre que possível para dar um curso de introdução à filosofia. Quando eu podia tratar de introdução à filosofia, eu sempre visava lógica e ontologia. O livro explicita e amplia o curso que eu já dei várias vezes.

"Fiz todo um esforço no
sentido de demonstrar que,
se o marxismo ou mesmo algumas teses
de Marx eram válidos,
era preciso desenvolver a lógica
que o próprio Marx não quis desenvolver.
E continuei cada vez mais
ligado à reflexão."
ZH – O senhor diria que o livro sintetiza sua trajetória como professor?
Giannotti – Sempre procurei entender um pouco lógica e ontologia. É bom não esquecer que meu primeiro livro era sobre Husserl (Edmund Husserl,1859 – 1938, um dos pais da fenomenologia), mas acabou se fixando em Stuart Mill (John Stuart Mill, 1806 – 1876, pensador liberal clássico). Era a questão do psicologismo, de como as leis lógicas funcionam. Depois eu pensava muito a questão do juízo reflexionante, isto é, do juízo cujas matrizes e parâmetros são constituídos pelo próprio processo de julgar. Essa foi, por dizer assim, a minha problemática, a questão da reflexão. Não é à toa que tenho um livro chamado Trabalho e Reflexão. Aí fiz todo um trabalho de diálogo com o marxismo. É um momento em que quero defender a ideia de que o trabalho é reflexionante, de que, portanto, ele tem uma gramática, uma certa legalidade, que não pode ser confundida simplesmente com uma legalidade empírica e sociológica. Fiz todo um esforço no sentido de demonstrar que, se o marxismo ou mesmo algumas teses de Marx eram válidos, era preciso desenvolver a lógica que o próprio Marx não quis desenvolver. E continuei cada vez mais ligado à reflexão. Numa longa conversa com Balthazar Barbosa Filho (professor de filosofia da UFRGS, 1942 – 2007), ele me disse que eu estava trabalhando na questão da reflexão de forma próxima à que aparece em Wittgenstein (Ludwig Wittgenstein, 1889 – 1951).
ZH – Há algum tempo, a expressão “filosofia americana” causava tanto estranhamento quanto “filosofia brasileira” hoje. Tendo em vista essa comparação, como o senhor avalia a situação do que se poderia chamar de filosofia brasileira?
Giannotti – Filosofia brasileira é basicamente a filosofia que se faz no Brasil. A tradição se faz mais pelos autores que a gente está acostumado a ler do que propriamente por uma temática especial do Brasil. Isso (a temática), a meu ver, não existe. A filosofia americana tem uma enorme ligação com a lógica formal, ela é basicamente uma filosofia analítica, e é diferente da filosofia que se pratica no continente europeu e no Brasil, embora a filosofia analítica e a filosofia continental, especialmente a fenomenologia, estejam cada vez mais próximas.

ZH – O quanto o senhor vê de novidade nas correntes filosóficas mais recentes, da segunda metade do século 20?
Giannotti – Vejo com enorme atenção. Minha tese, que inclusive está no livro, é de que você chega ao limite do desenvolvimento da filosofia moderna com Heidegger e Wittgenstein. São dois autores que contestam o estatuto do discurso filosófico. Pelo que percebo, depois deles, com exceção de Merleau-Ponty (Maurice Merleau-Ponty, 1908-1961) e outros, o resto é um retorno justamente à ideia de reflexão sem levar em conta o enorme salto que esses dois filósofos deram no sentido da reconstrução da lógica e da ontologia.

ZH – A filosofia analítica, o chamado pensamento francês da segunda metade do século 20 e a filosofia continental mais recente não lhe interessam particularmente?
Giannotti – Não. Me interesso muito por Paris, mas pouquíssimo pelos filósofos parisienses.

ZH – E por que motivo?
Giannotti – Porque eles são ou pós-heideggerianos, ou pós-pós-heideggerianos, voltando a uma visão positivista francesa que, a meu ver, hoje tem pouco interesse.

ZH – Defensores da psicanálise lamentam que a clínica freudiana está perdendo espaço nessa era de soluções mais rápidas, como comprimidos e medicamentos. A seu ver, a filosofia também pode perder espaço?
Giannotti – Não. (Com ironia.) Eu ainda nunca soube de um comprimido de ontologia. O que nós temos é um enorme esforço de ler livros muito maçantes. E maçudos.

ZH – As novas gerações continuam tendo a mesma disposição para estudar filosofia?
Giannotti – Há um problema muito sério, que é uma enorme massificação do ensino universitário. Com a massificação, vem a dispersão e a desqualificação. No Brasil, em particular, a universidade foi massificada mas não houve programa de formação de quadros universitários. Não se falava a palavra horrorosa, que não se pode falar, ou seja, a formação de elites. E o resultado é que temos uma quantidade enorme de jovens filósofos, mas não vemos mais do que movimentos de moda.
"A filosofia americana tem
uma enorme ligação
com a lógica formal,
ela é basicamente uma filosofia analítica,
 e é diferente da filosofia que
se pratica no continente europeu e no Brasil,
embora a filosofia analítica
e a filosofia continental,
especialmente a fenomenologia,
estejam cada vez mais próximas."
ZH – E por que não há um movimento mais consistente?
Giannotti – Grande parte de meus colegas está interessada em fundar escolas, isto é, fundar grupinhos que lhes permitam circular pelo mundo, do que em se afundar no poço e beber as águas mais puras do pensamento.

ZH – Quando ocorreu essa guinada?
Giannotti – Foi um processo de decadência ligeira a partir dos anos 1960. Mas não significa que não existam excelentes jovens pesquisadores no Brasil. O que digo é que falta integração da filosofia. Espero que esse meu livro, que é uma espécie de resumo da minha produção, possa juntar gente.

ZH – Para que público o senhor escreveu esse livro?
Giannotti – Basicamente, para o jovem filósofo que entra na faculdade, para o aspirante a filósofo e para os curiosos que querem saber como ainda existem malucos na Terra que ainda se dedicam a essas questões. (Risos.)

ZH – O Cebrap foi fundado um ano depois do AI-5 e teve um papel fundamental para manter pesquisadores em atividade no país. Qual é o legado do Cebrap?
Giannotti – O Cebrap foi uma instituição muito importante nos anos 1970 e 1980, quando manteve uma centelha de luz contra a ditadura brasileira. Foi quando apareceram as primeiras análises do que significava o movimento militar. Depois, teve uma presença muito importante no processo de transição, quando membros do Cebrap passaram a participar da política em defesa de posições democráticas. Agora, o Cebrap é um instituto competente como os outros, mas não tem mais nenhuma peculiaridade. Isso é bom, na medida em que o país se tornou mais igual.

ZH – O que levou o Cebrap a cumprir um papel pioneiro na época de sua fundação?
Giannotti – A repressão foi forte no Brasil. Nós tínhamos em São Paulo uma tradição de trabalho em comum. Houve o famoso seminário de Marx, que virou uma legenda. Tratávamos de estudar conjuntamente. Isso permitiu que o Cebrap fosse fundado. Houve tentativas de fundar outras instituições do mesmo estilo em Porto Alegre e Belo Horizonte, mas não deram certo.

ZH – Nos anos 1980, o senhor travou uma polêmica com alguns de seus colegas sobre os efeitos do que chamou de “assembleísmo universitário” e previu que isso provocaria um declínio da excelência. Como vê a situação da universidade brasileira hoje?
Giannotti – Vejo uma universidade que caminhou bastante. Mas vou justamente reiterar o que disse. Ela caminhou bem, se espraiou, mas não tem um programa forte de formação de elites. Tanto que faltam hoje médicos, engenheiros e técnicos de alta qualidade.

ZH – Em que sentido o senhor usa o termo “elites”?
Giannotti – No sentido de que a universidade possa fornecer mão de obra qualificada para o desenvolvimento capitalista. Mas isso é possível fazer. Tanto assim que, a partir do projeto Genoma, formamos uma rede de biólogos qualificados que não existia no Brasil. Isso não está sendo feito na física, na engenharia e assim por diante. Temos muito bons resultados, embora localizados, em matemática.
"Eu sou velhinho, rapaz,
não estou mais interessado em fazer
política universitária.
Estou interessado em escrever
meus últimos livrinhos
e descansar em paz."
ZH – Como se pode sanar esses problemas?
Giannotti – Em primeiro lugar, uma reforma universitária que dê maior autonomia à universidade. Em segundo, que haja um processo de avaliação dos professores e dos alunos que seja cada vez mais eficaz. Veja o resultado dos exames da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No ano passado, mais de 50% dos que prestaram esse exame foram reprovados. Mais da metade dos que receberam canudo de advogado não têm condições de exercer sua profissão. Portanto, foram enganados. Existe no sistema universitário um enorme faz de conta. Enganação. Você está falando muito na universidade. Eu sou velhinho, rapaz, não estou mais interessado em fazer política universitária. Estou interessado em escrever meus últimos livrinhos e descansar em paz.

ZH – Como o senhor vê a relação entre a academia e os intelectuais públicos?
Giannotti – A figura do pensador público está cada vez mais restrita. Você não tem mais os maîtres à penser, mesmo na França. Quais são os grandes mestres do pensamento francês hoje? O último caso que tivemos foi na Alemanha, com Jürgen Habermas, e depois que a Europa entrou em crise o pensamento de Habermas se afundou. Você não tem mais grandes mestres do pensamento. Temos uma situação de medianidade.

ZH – Na sua opinião, esse tipo de intelectual está em declínio?
Giannotti – Eu acho. Hoje, meu caro, quem ocupa a cena pública são basicamente os palhaços. Não é à toa que nós temos Berlusconi.

ZH – Que outros exemplos o senhor daria?
Giannotti – Temos o Berlusconi (Silvio Berlusconi, primeiro-ministro da Itália) o palhaço escrachado, temos o palhaço refinado, que é o Sarkozy (Nicolas Sarkozy, primeiro-ministro da França), ou temos o palhaço maravilhoso, o Macunaíma, que tem a capacidade de levantar todo o país, mas na hora de tomar grandes decisões as deixa para o sucessor. É o Lula.

ZH – Qual é a possibilidade de surgirem novas gerações de estudiosos de filosofia?
Giannotti – Meu interesse é dizer o seguinte: a leitura dos clássicos é séria. Em segundo lugar, não se case com um filósofo. O jogo das filosofias importa mais do que a pregação de uma delas.

ZH – O senhor acredita que possam surgir estudiosos inovadores, que expandam as reflexões já feitas, ou estamos fadados a assistir à reprodução de epígonos?
Giannotti – A filosofia sempre repete a mesma questão. Ela é grande quando consegue repetir de modo diferente. Se você pegar seja O Ser e o Tempo (de Heidegger), seja Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, estão ligados à problemática aristotélica, retomam grandes problemas do aristotelismo. Não existe um progresso glorioso da filosofia. A filosofia é um voltar-se para trás, um voltar às raízes, e é nisso que ela se encontra hoje.

ZH – O senhor é a favor da política de cotas nas universidades?
Giannotti – Sim. Não é possível deixar toda essa massa da população fora do ensino universitário, porque será prejudicada em sua formação. Só que tem um problema: eu prefiro que essas cotas não sejam raciais. Hoje, mais da metade da população brasileira é negra. Os negros são, basicamente, as classes pobres do país. Se houver cotas para pobres, tenho um processo de integração da população negra sem que meu filho precise, na escola, se declarar branco ou negro. Ainda quero conciliar o programa de cotas com a preservação do espaço público onde as pessoas não tenham que declarar suas raças, suas origens, sua sexualidade, sua religião e assim por diante.

ZH – Qual é o futuro do socialismo?
Giannotti – “Socialismo” é a palavra mais ambígua possível. Define-se o que é socialismo em uma determinada situação. No final do século 19, Oscar Wilde (escritor britânico) se dizia socialista. Não sei por que tenho dizer que Bakunin (anarquista russo) era socialista, e Oscar Wilde, não. O que é socialismo, você sabe? Socialismo é uma palavra vazia. O que nós temos são políticas de justiça social. Isso é o que vamos tentar construir. É mais fácil haver um socialismo brasileiro do que uma filosofia brasileira. Ninguém sabe o que é socialismo hoje! Sabemos o que é socialdemocracia. Isso sabemos. E sabemos que todo socialista é favorável à economia de mercado. (Risos.)

ZH – Recentemente, um comentarista escreveu que os intelectuais falharam ao não fazer um balanço sistemático dos anos Lula.
Giannotti – (Interrompendo.) Mas não se fez uma boa análise nem do governo Fernando Henrique Cardoso!

ZH – Como o senhor vê essa ausência de balanço?
Giannotti – Não se fez um balanço crítico nem do governo Fernando Henrique nem do governo Lula. Mas o governo Lula está acabando agora. O que está se escrevendo sobre o governo Lula, todo mundo sabe, é extremamente seminal.

ZH – Por que não se fez essa análise?
Giannotti – Porque os intelectuais estão fechados neles mesmos.

ZH – Há um componente ideológico nisso?
Giannotti – Não creio que haja um componente ideológico. O que existe é uma cegueira em relação à importância desses dois governos. Vamos dizer francamente: esses dois governos mudaram as perspectivas do país, com suas diferenças e suas proximidades. Fazer uma boa análise desses dois governos significa desenhar um projeto para o Brasil. E isso ninguém está fazendo.

ZH – O senhor tem se desinteressado da função de intelectual público?
Giannotti – Não, pelo contrário. Acompanho os acontecimentos políticos com o maior entusiasmo. Não desgrudei da TV enquanto a situação no Egito não se configurava.

ZH – O senhor arriscaria dizer o que se pode esperar do governo Dilma Rousseff?
Giannotti – Por enquanto, ela está se saindo bem no papel.

ZH – O Brasil pode ocupar um papel de protagonista no cenário mundial?
Giannotti – Não sei. Está diferente. Temos uma política que está mais ou menos correta, mas se fizermos cagada, vamos para o brejo. A inflação está rondando os nossos bolsos. Vamos ver como Dilma conseguirá segurar essa inflação. E o fenômeno não é apenas brasileiro. Já há linhas mundiais inflacionárias.

ZEROHORA.COM
> o repórter Fábio Prikladnicki conversa com Luiz Antônio Araujo sobre a entrevista de José Arthur Giannotti (abaixo) e seu novo livro, “Lições de Filosofia Primeira”
http://mediacenter.clicrbs.com.br/zerohora-player/49/player/167324/falando-de-filosofia/1/index.htm
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Reportagem POR FÁBIO PRIKLADNICKI
Fonte: ZH CULTURA online, 19/02/2011

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