Juremir Machado da Silva
Escrevi sobre indiozinhos pedindo esmolas nas ruas de Porto Alegre.
Recebi uns oito comentários. Nada mais.
Grande indiferença.
Escrevi sobre cachorros. Minha caixa está entulhada de elogios, reclamações, críticas, insultos e apoios.
Eu me interesso pelos paradoxos sociais. Nem sempre faço julgamentos.
Mas gosto de dialogar com contradições.
Inclusive com as minhas.
As sociedades avançam e recuam ao mesmo tempo.
Estamos mais responsáveis em relação a certos animais, o que é bom, e menos responsáveis em relação a certos problemas sociais, o que é mau, como se o amor por certos animais crescesse de modo inversamente proporcional ao interesse pelos problemas humanos.
Certos animais, como os cachorros, podem ser tratados como crianças, enquanto certas crianças são tratadas como vira-latas. Denunciamos os maus tratos aos animais, o que é ótimo, e deslizamos para o super bom tratamento de alguns bichos, o que suscita interrogações.
Protegemos certos animais e comemos outros.
Peguemos situações extremas e extremamente corriqueiras: a mesma pessoa que denuncia o vizinho por ter abandonado um cachorro, o que é lamentável, o faz enquanto saboreia uma cordeirinho mamão ou um terneiro com batatas, o que é um costume socialmente aceito.
Mas já não por todos.
Quem tem a superioridade moral nesse caso?
Quem abandona o cachorro? Claro que não.
Quem come terneirinho com batatas jogando pedacinhos para seu cachorrinho calçando sapatinhos bordados?
O mundo é cheio de contradições.
Admiro os veganos. Conhecimento de wikipédia: “Para o vegano, animais não existem para os humanos, assim como o negro não existe para o branco nem a mulher para o homem. Cada animal é dono de sua própria vida, tendo assim o direito de não ser tratado como propriedade (enfeite, entretenimento, comida, cobaia, mercadoria, etc). Dessa forma veganos propõem uma analogia entre especismo, racismo, sexismo e outras formas de preconceito e discriminação”.
Os veganos querem abolir o cativeiro dos animais.
Não os comem.
Nem os carregam em carrinhos de criança.
Não os querem como propriedade.
Onde vai parar, do ponto de vista de um vegano, a superioridade moral de quem tem seu cachorrinho de estimação? Ou seja, em cativeiro (propriedade), ainda que dourado? As coisas são sempre mais complicadas.
Se eu não adorasse picanha e não fosse um homem banal, tentaria ser vegano. Há lógica e coerência aí. E ética.
Uma coerência quase ingênua, utópica, de quem sonha eliminar a contradição do mundo dos homens.
Fico estarrecido quando alguém me chama de radical por causa da minha posição em relação ao trato de certos seres humanos com seus cachorros.
"Que um cachorro tenha hora marcada
numa estética enquanto milhões de pessoas
esperam nas filas do SUS,
soa como uma bofetada na face de muita gente,
ainda que os donos dos cachorros
não sejam os
responsáveis por isso."
Estou criticando o radicalismo.
É intelectualmente pobre, simplório, patético, alguém dizer que não gosto de cachorros por criticar o que me parece um excesso, a antropomorfização dos animais.
Tenho um amigo que diz volta e meia: quanto mais reacionário, mais cachorreiro.
Quanto mais anti-humanista, mais cachorreiro.
Não acredito que seja uma lei.
Conheço cachorreiros não reacionários.
E reacionários não cachorreiros.
Mas quando alguém marca hora no salão de cachorros para fazer as unhas e os pelos do seu animalzinho, aproveitando para bater um papo com amigos em que se fala mal das cotas para negros, do bolsa-família, das ajudas sociais e reclama-se a diminuição ao mais baixo possível da idade penal para colocar por 30 anos crianças na cadeia, dizendo que não são gente, isso soa como um choque, uma porrada na cara.
Ou como mais um paradoxo.
Que um cachorro tenha hora marcada numa estética enquanto milhões de pessoas esperam nas filas do SUS, soa como uma bofetada na face de muita gente, ainda que os donos dos cachorros não sejam os responsáveis por isso.
Concordo com o leitor que me diz ser mais grave a situação e que devo considerar toda forma de consumismo fútil, inclusive as que eu pratico, como algo chocante e inaceitável. É verdade. O consumismo é a nossa chaga.
Quando alguém me diz que os cachorros são elos com o divino ou seres mais racionais que os homens, só posso sorrir com bonomia, compreender e ir em frente.
Quando alguém me diz que o universo pet gera empregos e aquece a economia, eu só posso sorrir de novo diante desse pragmatismo que não perde tempo pensando em princípios.
Quando alguém me diz que o cachorro pode ser a única alegria e companhia de uma pessoa, eu louvo e aplaudo.
Mas me pergunto: que mundo é este em que uma pessoa só tem como alegria e companhia uma cachorro?
Que mundo é este em que os velhos são, cada vez mais, postos em asilos (clínicas geriátricas) enquanto os cachorros ganham quarto e tratamento privilegiado em casa?
Será o resultado de um mundo de desagregação da família ampla, de enfraquecimentos dos laços sociais, de isolamento, de solidão, de ceticismo, de egoísmo, de desresponsabilização com o complexo e de atomização?
Quando alguém me diz que só um cachorro dá amor incondicional, eu respondo: o belo do amor humano é quando ele impõe condições. O resto é submissão.
Por que protegemos alguns animais e não outros?
Fatos sociais. Realidades de uma cultura.
Que me critiquem por defender a humanidade, é algo que, mais uma vez, me faz sorrir com bonomia.
Que digam que estou promovendo o abandono de animais ou legitimando maus tratos, é algo que só me faz pensar uma coisa: quem diz isso, não me leu. Ou tem sérios problemas de interpretação de textos. Ou uma mente maniqueísta.
Quando me dizem que devo tratar meus medos e traumas, poderia ser deslegante e responder: vá tratar suas carências.
Mas não o faço, pois os medos, traumas e carências são sempre legítimos e incontestáveis.
Quando me dizem que sou ignorante, penso na "douta ignorância" que ilumina e convido cada um a pensar na sua.
Até Socrátes se achava ignorante.
Já lati demais.
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*Filósofo. Prof. Universitário.juremir@correiodopovo.com.br Enviar Letra
Postado no Correio do Povo online, 09/02/2011
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