Literatura:
No centenário de Elizabeth Bishop,
poeta que fez de sua obra uma vitória sobre o sofrimento,
as celebrações ultrapassam fronteiras.
A poesia não morre jamais
Tremendamente insegura na juventude, e de uma exigência implacável consigo mesma até o fim, a poeta americana Elizabeth Bishop ficaria espantada se soubesse que seria olhada com tanta admiração no ano de seu centenário.
Era uma escritora reconhecida quando morreu, em 1978, vítima de um aneurisma. Recebera prêmios importantes, como o Pulitzer, o National Book Award, o National Book Critics Circle Award e o Prêmio Internacional Neustadt de Literatura, que até 1976 jamais fora conferido a uma mulher, nem tampouco a um americano. Ainda assim, era considerada uma poeta de poetas e conhecida apenas no mundinho sofisticado dos cursos de literatura e de leitores da "New Yorker". No Brasil, onde viveu durante quase 17 anos, de 1951 a 1967, depois de se apaixonar pela paisagista carioca Lota de Macedo Soares, era cultuada entre amigos e por um pequeno círculo literário.
Da década de 1990 para cá, entretanto, seu nome começou ecoar entre leitores comuns, frequentadores de livrarias, teatros e cinemas, até que, em 2005, seu poema mais conhecido, "Uma Arte", foi parar em Hollywood, lido por Cameron Diaz no filme "Em Seu Lugar".
O centenário, provavelmente, dará mais impulso a essa visibilidade lentamente adquirida. Uma programação animada, que começou na quinta-feira com uma palestra em Worcester, Massachusetts, a cidade natal da poeta, e inclui um almoço numa churrascaria brasileira em Halifax, na Nova Escócia, Canadá, neste domingo, vai se estender por todo o ano, com simpósios, leituras, lançamentos de livros, programas de rádio e de televisão, exposições e concertos.
Desta vez a anfitriã não é apenas Vassar, a tradicional faculdade em Poughkeepsie (NY), onde Elizabeth estudou, que abriga a mais importante coleção de documentos da escritora - embora Vassar, "noblesse oblige", tenha programado uma exposição de seus tesouros e um seminário, em agosto.
Elizabeth: a poetisa americana,
que viveu no Brasil entre 1951 e 1967,
ganha cada vez mais aficionados nos dois hemisférios
A parte mais substancial da programação é iniciativa da Sociedade Elizabeth Bishop de Nova Escócia, Canadá - a terra de sua família materna, os Bulmer -, e da Sociedade de Poesia de Worcester, Massachusetts - onde viviam os Bishop. O Festival do Centenário planejado pelos canadenses terá, entre outras atrações, um concerto da Sinfônica de Nova Escócia, com música especialmente composta para a ocasião e participação da soprano Silvie Leblanc. No mesmo dia, em Worcester, realiza-se um debate intitulado Bishop in Brazil, em torno do romance "The More I Owe You", de Michael Sledge, sobre a história de amor entre a poeta e Lota.
O título do livro é uma citação do verso de Camões usado por Elizabeth em sua dedicatória de "Questions of Travel" ("A Lota de Macedo Soares: O dar-vos quanto tenho e quanto posso, que quanto mais vos pago, mais vos devo"). Também a editora Farrar, Straus & Giroux, que publicou toda a obra da poeta, a Sociedade de Poesia da América e a Universidade de Boston vão celebrar o centenário. Promovem um grande evento na quinta-feira, em Boston: 20 poetas contemporâneos vão ler poemas de Elizabeth, e 20 atores lerão trechos de sua correspondência com a revista "The New Yorker", recém-lançada.
No Brasil, a peça "Um Porto para Elizabeth Bishop", que escrevi para a atriz Regina Braga, e estreou em 2001 no Festival de Teatro de Curitiba, sob a direção de José Possi Neto, reestreia em maio, no teatro da Livraria Cultura, em São Paulo, depois de dez anos de sucessivas temporadas. E está em produção um filme do diretor Bruno Barreto sobre o romance de Elizabeth e a paisagista carioca Lota de Macedo Soares, que será interpretada por Glória Pires.
Se a obra tão celebrada é a mesma que esteve ao alcance de seus contemporâneos, o que teria feito o público prestar mais atenção a ela hoje? Ou o que teria adiado para depois de sua morte o pleno reconhecimento?
Uma das maiores autoridades em Elizabeth Bishop, o poeta, professor e crítico musical Lloyd Schwartz, que ganhou o Pulitzer de crítica em 1994, tem reflexões interessantes sobre isso. "No momento, estou mergulhado no assunto até a raiz dos cabelos", escreve Schwartz num e-mail, de sua casa em Boston. Ele acaba de fazer para a Farrar, Straus & Giroux, para o centenário, uma nova edição da prosa de Elizabeth Bishop e há dois anos cuidou da edição da coletânea de sua poesia, prosa e cartas para a coleção "Biblioteca Americana". Além disso, é um dos participantes da grande leitura de quinta-feira, em Boston.
"Ela ficaria muito surpresa de ver seu poema 'Uma Arte' num filme de Hollywood", comenta Schwartz. Eles foram muito próximos na década de 1970, quando preparava uma tese sobre sua poesia e escreveu um magnífico perfil dela na "New Yorker". Para ele, a razão crucial da crescente admiração é a qualidade do trabalho e, sobretudo, sua produção dos últimos anos de vida. "Há em poemas como 'Uma Arte', 'Cadela Rosada', 'O Alce' e 'Na Sala de Espera' uma nova clareza emocional, um ingrediente autobiográfico que não apenas os torna mais acessíveis como serve de chave para compreensão de outros mais antigos, mais 'difíceis'", aponta Schwartz.
Além disso, ele acredita, havia nos anos 1990, nos Estados Unidos, a demanda de uma referência feminina para as mulheres e, sobretudo, as poetas, e Elizabeth atendia magnificamente a essa necessidade. Em parte pela poesia mais autobiográfica do fim, em parte por sua história, divulgada pela publicação de suas cartas, em 1994 ("One Art", Farrar, Straus & Giroux), e de muitas biografias. "Hoje o público sabe muito mais sobre ela do que quando ela era viva e zelava por sua privacidade de diversas maneiras, uma das quais foi viver no Brasil durante tanto tempo."
A história pessoal de Elizabeth tem o poder de atiçar a curiosidade sobre ela. Órfã de pai aos 8 meses, ela viu a mãe pela última vez aos 5 anos, quando, após sucessivas internações, ela foi internada num sanatório para doentes mentais. Nunca se recobrou da perda do marido. Os primeiros anos de orfandade foram suavizados pelo carinho da família materna, com quem passou a viver em Great Village, uma vila na Nova Escócia. Suas recordações dessa época são temas de belos capítulos de sua prosa, os contos "Ratinha do Campo" e "In the Village". Mas os avós paternos, de uma próspera família de Massachusetts, reivindicaram sua guarda: achavam aquele mundo demasiado modesto para a educação da neta.
A partida foi tão traumática que ela irrompeu em eczemas e ataques de asma. Foi viver com uma tia e, depois, numa sucessão de colégios internos, até chegar à faculdade, Vassar, para estudar letras. Asma, períodos de depressão e alcoolismo a flagelaram por toda a vida. Ser homossexual no mundo de moral rígida de sua juventude e a personalidade extremamente reservada não facilitaram em nada sua existência. Os anos que passou no Brasil foram um doce hiato nessa batalha. Sua obra é uma vitória sobre o sofrimento.
O meio acadêmico, que, afinal, foi o primeiro a descobrir a poesia de Elizabeth Bishop, contribuiu para a visibilidade de que ela desfruta hoje. A biblioteca de Vassar comprou seu arquivo e todos os papéis, fotografias, cartas e originais que encontrou e continua a colecionar documentos. "É o principal repositório de seu espólio", diz Barbara Page, ex-diretora desse acervo e uma das mais reputadas especialistas em Elizabeth Bishop, dedicada agora a escrever, com Carmen Oliveira, um livro e um site sobre a poeta no Brasil.
O interesse por sua obra espalhou-se por universidades e escolas, ressalta Lloyd Schwartz: "Os professores de literatura e de escrita criativa dos Estados Unidos descobriram que seus poemas eram maravilhosos para ensinar poesia", conta. "Perceberam que os estudantes os recebiam bem e que eles possuíam as qualidades que eles apreciavam e queriam que os alunos adquirissem", continua. "As qualidades eram as mesmas que Bishop admirava na poesia: exatidão, espontaneidade e mistério."
A primeira tradução de seus poemas para o português, "Poemas/Elizabeth Bishop", de Horácio Costa, lançada em 1990, pela Companhia das Letras, passou quase despercebida. Em 1993, uma professora da Universidade Federal do Paraná, Regina Przybycien, defendeu a primeira de muitas teses brasileiras sobre a poeta - a magnífica "Feijão Preto e Diamantes: o Brasil na Obra de Elizabeth Bishop".
Sua visibilidade para além do círculo de iniciados despontou em 1995, com a publicação, pela Companhia das Letras, de "Uma Arte", a correspondência acrescida de cartas referentes ao Brasil não incluídas na edição americana. Junto com sua acidentada vida pessoal, as cartas iluminaram o país efervescente dos anos 1950 e 1960, ao descrevê-lo de um ponto de vista singular. Misturava o olhar da elite brasileira e dos bastidores do poder, que Lota de Macedo Soares, ligada a Carlos Lacerda, lhe trazia, e o estranhamento da condição de estrangeira e, sobretudo, de poeta.
Com a publicação de sua prosa - "Esforços do Afeto" -, também pela Companhia das Letras, em 1996, chegou ao leitor brasileiro mais um capítulo do cardápio bishopiano. No mesmo ano, a editora Rocco lançou "Flores Raras e Banalíssimas", de Carmen Oliveira, sobre a relação amorosa de Lota e Elizabeth. O romance, baseado em minuciosa pesquisa, introduziu uma delicada nota emocional à informação disponível. Mas o melhor da poesia só chegou aqui em 1999, com o lançamento de "Poemas do Brasil" pela Companhia das Letras. Reunia a produção dos anos que ela viveu no país e obras posteriores impregnadas pela memória daqui. A tradução admirável de Paulo Henriques Britto, e seu belo perfil crítico e biográfico da autora revelaram a essência de sua poesia ao leitor brasileiro.
Aqui, a admiração pela escritora é alimentada também por um delicioso repertório cultivado por seus amigos e, vez por outra, destilado em crônicas, artigos de jornal e prefácios. Affonso Romano de Sant'Anna contou algumas dessas histórias no livro "A Sedução da Palavra" (Editora Letra Viva, esgotado) e em colunas de jornal. Entre elas, o caso das abotoaduras de ouro e rubi que Elizabeth mandou fazer em Minas para a poeta Marianne Moore, sua grande amiga, que lhe pedira, vagamente, que trouxesse do Brasil "alguma coisa vermelha".
Humberto Werneck relatou muitos outros em seu prefácio para "Um Porto para Elizabeth Bishop" (o texto da peça publicado pela Editora Terceiro Nome). Uma delas fala do método que ela desenvolveu para ensinar inglês a uma jovem empregada: "Escrevia nas coisas os nomes que as designavam - 'window', 'table', 'chair'... A cozinha da Casa Mariana [como chamou sua casa em Ouro Preto] era inteirinha escrita em inglês".
Os principais depositários dessa deliciosa mitologia são os irmãos Linda e José Alberto Nemer, uma economista e um artista plástico de uma tradicional família de Ouro Preto. Foi lá, nos anos 1960, depois da morte de Lota, quando Elizabeth viveu grandes temporadas na cidade, que eles a conheceram. Conviveram, divertiram-se com ela e, sobretudo, cuidaram da amiga quando ela precisou de carinho e, algumas vezes, de internação.
Nemer é o personagem do episódio relatado por Robert Giroux, em seu prefácio para "Uma Arte". Ao chegar à casa da poeta, surpreendeu-a chorando, numa conversa com o poeta James Merril, que a visitava. Ao flagrar a inquietação do recém-chegado, ela o tranquilizou: "Não se preocupe, José Alberto, só estou chorando em inglês".
Elizabeth Bishop ia gostar de saber: no ano de seu centenário, não apenas sua poesia, mas também a pessoa que ela foi continua a encantar seus amigos nos dois hemisférios do planeta.
---------------------------- Reportagem Por Marta Góes Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 04/02/2011
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