domingo, 20 de fevereiro de 2011

O povo contra o retrocesso

Paralisada pelo berlusconismo,
a Itália precisa reagir à promiscuidade de valores
exalada por seu premiê, diz filósofo

Numa cena do memorável O Crocodilo, filme que o cineasta Nanni Moretti rodou para explicar (talvez mais para entender) como seu país permitiu o surgimento de um Silvio Berlusconi, um produtor estrangeiro diz ao colega italiano: "Vocês são um povo dividido entre o horror e o folclore. Estão acostumados com suas próprias nojeiras. Quando achamos que vocês, italianos, chegaram ao fundo do poço, vocês mostram que não. Continuam cavando... e afundam ainda mais". O Crocodilo é de 2006, e Berlusconi naquela época estava metido "só" em acusações de evasão de divisas, suborno de juízes e ligações com a máfia. Café pequeno perto do atual Rubygate, como ficou conhecida a fieira de escândalos sexuais envolvendo prostitutas menores de idade - a mais notória, uma marroquina de 17 anos alcunhada Ruby Rubacuori (Ruby Rouba-Corações) - que marca esse seu quarto mandato como chefe de governo. É o mandato bunga-bunga, se quisermos tomar emprestado o nome do jogo erótico da preferência do premiê, conforme relato das moças que o visitaram em suas mansões cafonas em Milão e na Sicília.
Nessa semana, Berlusconi foi formalmente acusado e será julgado em abril por prostituição de menores e abuso de poder. Terá três juízas pela frente. Não que alguma forra esteja a caminho, afinal os italianos do bem desejam que a Justiça seja cega inclusive para Berlusconi. Mas, simbolicamente, não deixa de alimentar esperanças numa punição das boas. O clima é de "não aguentamos mais tanta nojeira", e isso ficou claro nas manifestações de domingo, quando 1 milhão de italianos, liderados por mulheres e movimentos feministas, encheram 250 praças em todo o país para protestar contra o premiê. O grito de guerra oficial era "se não agora, quando?", mas também se faziam ouvir (e ler nas faixas) singelezas como "a Itália não é um bordel", "nós gostamos de sexo, não de bunga-bunga", "a dignidade da mulher é a dignidade da nação" ou, simplesmente, "velho porco!".
Apesar da determinação nas ruas, as massas não conseguiram responder à mais cruel das perguntas feitas por Moretti no Crocodilo: "Como é possível que alguém como Berlusconi tenha paralisado a Itália com seus problemas pessoais?" Para tentar entender o berlusconismo, o Aliás conversou com o filósofo italiano Paolo Flores d’Arcais. Um dos líderes do Maio de 68 em seu país, até o ano passado professor da Universidade de Roma La Sapienza e hoje diretor da revista MicroMega, antigo bastião dos intelectuais da esquerda italiana, agora independente, d’Arcais é um antiberlusconista de primeira hora. Ao lado de Moretti, em 2002 liderou um movimento que reunia milhares nas praças em prol da legalidade, da ética e obviamente contra Berlusconi. "Por culpa dele, a Itália perdeu relevância política e econômica. Hoje, somos apenas alvo do ridículo", diz d’Arcais na entrevista que se segue.

Qual o peso das manifestações de domingo na decisão de levar Berlusconi a julgamento?
Nenhuma. Os juízes decidiram seguindo a lei, sem se influenciar por motivos extrajudiciais. Tampouco há qualquer significado especial no fato de que ele será julgado por três juízas. Elas foram sorteadas por um sistema eletrônico e, tecnicamente, isso não muda nada. Simbolicamente, porém, lembra Nêmeses (a deusa da vingança).
Os apoiadores de Berlusconi tentam desqualificar os protestos dizendo que são ‘mais uma gritaria das feministas’ ou ‘coisa de um grupelho de senhoras radicais chiques’.
Berlusconi e seus mercenários midiáticos já tentaram insultar e minimizar a manifestação das mulheres. Mas são tentativas ridículas. Foi um protesto gigantesco: 250 praças de várias cidades, ao mesmo tempo, todas cheias. E com uma participação popular extraordinária de todas as idades, dos jovens aos muito velhos, e de todas as classes sociais. Uma verdadeira manifestação nacional. Ouso dizer, patriótica.

Berlusconi tem força suficiente para permanecer no cargo até o fim do julgamento?
Força parlamentar, sim. Em novembro ele estava em minoria na Câmara, mas literalmente comprou os deputados que faltavam. E continua comprando. Embora, é claro, que uma perfeita omertà (lei de silêncio da máfia) impeça neste momento que venham à tona as provas com valor legal desse verdadeiro mercado.

Do ponto de vista institucional, o que é melhor para a Itália: que ele saia já ou fique até o fim do julgamento?
Se a presidente de vocês, em viagem oficial a Paris, recebesse em seu celular privado um telefonema de um garoto de programa italiano, isso seria suficiente para ela renunciar? Continuo nas hipóteses, e por isso me desculpo, porque obviamente falo de algo impensável: mas e se a presidente de vocês tivesse telefonado ao chefe da polícia do Rio para libertar outro garoto de programa, menor de idade e acusado de furto, argumentando que ele é sobrinho do ex-presidente egípcio Hosni Mubarak? Bastaria para fazê-la renunciar? E se depois se descobrisse que ela organizava orgias com dezenas de garotos de programa e, por causa dessas orgias, faltasse a importantes compromissos oficiais, incluindo o funeral de um militar morto no exterior? Ponha nessa mesma situação Obama, Merkel, Sarkozy, qualquer chefe de uma democracia ocidental. Qualquer um deles deveria ter renunciado imediatamente.

E por que com Berlusconi é diferente?
Ele despreza o sistema democrático ocidental. Seus modelos são Putin e Kadafi e, por isso, tentará destruir a Constituição antes de deixar o poder. Tentará fazer sua própria ditadura.Até Alessandra Mussolini (deputada do grupo de Berlusconi) declarou: "A diferença entre Berlusconi e meu avô é que meu avô nunca nomeou Claretta Petacci (amante de Mussolini) ministra".

O que a Itália tem feito para enfrentar a prostituição, o tráfico de mulheres e a exploração sexual de menores, além de fechar as portas para os imigrantes de países pobres?
O governo de Berlusconi não fez absolutamente nada para combater a exploração, em condições de quase escravidão, de tantas mulheres jovens que são trazidas de outros países sob a miragem de um trabalho e acabam obrigadas a se prostituir. Nenhuma luta de verdade contra esse escravismo aconteceu por parte do governo. Em vez disso, elaboraram-se projetos para aumentar as penas contra as prostitutas, que são as vítimas, ou contra seus clientes. Projetos que agora, depois do caso Ruby, o governo de Berlusconi prontamente engavetou.

Pesquisas mostram Berlusconi com 30% de aprovação. Quem são esses 30%?
Os mafiosos, os corruptos, os sonegadores de impostos, os racistas, os amigos dos mafiosos, os amigos dos corruptos e os amigos dos sonegadores de impostos. E ainda muitos outros que se condicionam pelo controle quase totalitário que Berlusconi exerce na TV. Noventa por cento dos italianos não leem jornal. Portanto, nem sequer sabem das coisas que estamos discutindo aqui. Sabem apenas que "Berlusconi é perseguido porque gosta de mulheres". É essa Itália que elegeu Berlusconi mais de uma vez. E com ajuda de uma centro-esquerda que tem os dirigentes mais estúpidos que já vimos: culturalmente submissos, politicamente tímidos e até corruptos, embora em proporção infinitamente menor do que os políticos berlusconianos.

Esses dirigentes são produto do berlusconismo? O que houve com a esquerda italiana?
O último grande dirigente da esquerda foi Enrico Berlinguer, morto em 1984. Mas já com ele se iniciou uma seleção dos grupos de dirigentes baseada no princípio do "sim, senhor". Os partidos de esquerda são das máquinas burocráticas. Seus interesses estão longe dos trabalhadores e dos cidadãos que deveriam representar. E também não constituem uma alternativa válida ao poder populista de Berlusconi. Sem uma nova força política que nasça da luta da sociedade civil é difícil imaginar a derrota do premiê.

Frágil desde a saída do premiê Romano Prodi, em 2008, a esquerda pode usar os escândalos de Berlusconi como tonificante?
Não. Infelizmente temos uma falsa oposição, incapaz inclusive de usar esses escândalos em benefício próprio. A única oposição existente hoje na Itália é a representada pelos movimentos de massa organizados autonomamente pelos cidadãos, como o protesto das mulheres no domingo.

Que assuntos importantes não estão sendo discutidos enquanto os italianos pararam para falar do bunga-bunga?
Todos: a crise econômica, os desembarques dos clandestinos tunisianos na costa, o gigantesco desemprego dos jovens, o aumento da desigualdade, o colapso da escola pública e da pesquisa científica, a força crescente da máfia, a ruína do patrimônio artístico e ambiental. Nosso setor industrial mostra sinais graves de crise. Aquela que há um século é a mais importante empresa italiana, a Fiat, está se tornando filial da Chrysler. Por causa disso muitas fábricas podem ser fechadas e transferidas para países onde os trabalhadores não têm direitos. Isso provocará a perda de dezenas de milhares de empregos, não só na Fiat, mas em todo o círculo industrial que gravita em torno dela. Sob o "reinado" de Berlusconi perdemos tudo, porque com ele a Itália perde um bem insubstituível: a dignidade. Por culpa de Berlusconi e de sua panelinha de malfeitores, a Itália, como se diz no jargão aeronáutico, mergulha em parafuso no subdesenvolvimento. Perdemos a relevância política e econômica na Europa. Hoje, somos apenas alvo do ridículo.

Que país a Itália será num pós-Berlusconi?
A que será, só Nostradamus poderia dizer. A que precisa ser é clara: livre não só de Berlusconi, mas do berlusconismo. Uma Itália que descubra o sentido do Estado e do bem comum, onde os cidadãos internalizem como valor o respeito ao princípio de que a lei é igual para todos, na qual prevaleça o mérito, e não o nepotismo nem as relações privilegiadas com o protetor político e a Igreja, e no qual os meios de comunicação sejam plurais e imparciais. No fundo basta algo simples, e talvez utópico: fazer valer a Constituição italiana, nascida da resistência antifascista. Com a Operação Mãos Limpas, em 1992, começamos a caminhar verdadeiramente nessa direção.

Mas aí veio Berlusconi... Surpreende que ele, agora formalmente acusado, continue repetindo frases como ‘eu sou um homem separado e livre para fazer o que quero na minha casa’?
Ele é livre para fazer o que quiser na casa dele. Mas a delegacia onde estava detida a prostituta Ruby não é a casa dele. É um lugar público, no qual os cidadãos devem respeitar a lei. Nem em casa se pode pagar uma prostituta menor de idade - e essa lei foi um desejo do próprio Berlusconi! -, do mesmo jeito que não se pode assassinar o próprio cônjuge.
"A Igreja tem pouco peso para
os italianos hoje.
Nem os católicos praticantes
seguem os ditames do papa,
nem na política nem na moral sexual.
Mas a Igreja tem um enorme
poder no establishment político, financeiro,
cultural, econômico, escolar e, por sua vez,
 ajuda a parte mais atrasada
desse establishment."

Ele aprofundou o machismo italiano?
Entre todos os danos causados pelo berlusconismo, a igualdade entre homens e mulheres foi a que mais piorou. Quando, ao tratar do desemprego feminino, o chefe do governo aconselha que as mulheres "encontrem um marido rico", não está tendo uma tirada espirituosa - só os imbecis ririam de algo assim. Ele está expressando uma concepção pré-moderna do papel da mulher. E que fique claro: mesmo antes de Berlusconi nunca houve uma efetiva igualdade entre homens e mulheres na Itália As mulheres continuam a receber, para o mesmo posto, salário inferior ao dos homens. No mundo financeiro e no industrial há raríssimas mulheres em cargo de chefia. Um dos poucos setores onde existe igualdade é na magistratura. Mas o fato é que com Berlusconi houve um grande retrocesso nessa questão - retrocesso material e moral.

Faria bem à Itália eleger uma mulher para o cargo de primeira-ministra?
Depende: a filha de Berlusconi, Marina, que muitos gostariam de ter como herdeira política dele, é uma mulher... Tê-la como premiê seria um desastre. Ou melhor: a continuação do desastre. O problema é achar um candidato capaz de unir a oposição, não importa se homem ou mulher. O importante é afastar a ameaça que Berlusconi representa para a liberdade na Itália.

Qual o peso do catolicismo na vida dos italianos? Os ventos conservadores que ajudaram a eleger Berlusconi eram ecos vindos do Vaticano de Bento XVI?
A Igreja tem pouco peso para os italianos hoje. Nem os católicos praticantes seguem os ditames do papa, nem na política nem na moral sexual. Mas a Igreja tem um enorme poder no establishment político, financeiro, cultural, econômico, escolar e, por sua vez, ajuda a parte mais atrasada desse establishment. O papa fez alusões genéricas e quase imperceptíveis em relação a Berlusconi. Não o criticou. A Igreja continua a apoiá-lo, porque em troca obtém as leis que lhe vêm a calhar. Afinal, de cada 1.000 que os italianos pagam em impostos, 8 vão para as religiões - na prática, quase tudo para a Igreja. Bispos nomeiam os professores de religião nas escolas públicas. Mesmo as atividades econômicas indiretamente ligadas à Igreja gozam de grandes isenções fiscais, grande parte do sistema hospitalar é controlada pelo poder clerical, também fortíssimo no sistema bancário.

Nos Estados Unidos, a cultura do politicamente correto cortou boa parte da popularidade de Bill Clinton no caso Monica Lewinsky. Falta correção política na Itália?
Não tem nada a ver com correção política. Eu acho que na vida privada um político pode fazer o que quiser. Mas a privacidade tem um limite, e quem o estabelece é o próprio político. Se ele busca consenso com as manifestações clericais, como o Family Day, depois não venha dizer que ter uma amante é uma questão privada. Se ele faz campanha contra a prostituição, depois não venha dizer que pagar prostitutas é questão privada. E principalmente: para Berlusconi não se trata de correção política, mas de infrações penais reais.

Como a Itália de Michelangelo, Da Vinci, Caravaggio, Fellini, Visconti, Pucci, Armani Dolce & Gabbana olha para a Itália do mau gosto das mansões de Berlusconi?
Por favor, não misture Michelangelo com Dolce & Gabbana! Deixemos essas comparações absurdas para gente como Berlusconi, que odeia a cultura.
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Reportagem por CHRISTIAN CARVALHO CRUZ
Fonte: Estadão online, 19/02/2011

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