quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Rudá Ricci - Entrevista

"O lulismo odeia a participação popular"

O cientista social Rudá Ricci analisa o modelo de
gestão implementado pelo ex-presidente Lula.

Por Tatiana Merlino



Os oito anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva foram marcados por um processo de conciliação de interesses, e não de enfrentamento, defende o cientista político mineiro Rudá Ricci, professor da PUC-MG. “E um governo de conciliação parece de esquerda num país tão conservador como o Brasil”, afirma, em entrevista, o autor de “Lulismo - da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira”.
Para Rudá, o lulismo é um “neogetulismo”, pois o primeiro recriou a mesma estrutura de poder do segundo, dando seguimento à modernização conservadora iniciada por Getúlio Vargas: “Uma modernização econômica sem mudar de maneira alguma a estrutura de poder”. Segundo o ex-militante petista, embora o lulismo tenha tirado 30 milhões de pessoas da pobreza, não gosta da participação popular. “É a visão sindicalista, de metalúrgico, que não gosta de participação, gosta de centralização, é muito pragmático”, sustenta. Para ele, o lulismo é muito claro, mas “as pessoas de esquerda não querem entender o que foi o lulismo”.
O cientista político também analisa o comportamento dos novos integrantes da nova classe C, que “são conservadores, tem medo de tudo, desconfiam de tudo que é público, não vêm muita utilidade na democracia”. Assim, acredita na possível emergência de um movimento de massa ultraconservador. “Há algumas movimentações nesse sentido”.
No entanto, o cientista político não vê apenas legados negativos do lulismo. Para ele, o grande mérito do governo Lula é que “ele fez o país se reencontrar consigo mesmo. O Brasil é uma potência, está cada vez mais evidente para todo mundo”, defende Rudá, que também elogia a política externa do ex-presidente: “A política entrou como centro da diplomacia brasileira para valer, e não como habilidade para fazer negócio. Pela primeira vez, a política não foi só para abrir mercado”.

Caros Amigos - O que é o lulismo e como ele se manifestou durante o governo Lula?
Rudá Ricci - O lulismo é um sistema de gerenciamento do Estado e de políticas públicas. Portanto, não é uma ideologia, não é um movimento. Ele moderniza economicamente, mas é conservador do ponto de vista político, o que a gente chama em ciência política de modernização conservadora. E ele se montou como nos EUA o fordismo se montou no século passado. Aliás, os dados de ascensão social no Brasil são muito parecidos com os dados da ascensão social dos E tados Unidos desse período. Eu acho que é um fordismo tupiniquim, com um Estado muito forte e centralizador. 65% do orçamento público está concentrado na execução da União. Os municípios brasileiros dependem, em sua maioria, de convênios estabelecidos com ministérios.
Ele usou como mecanismo de suporte social e desenvolvimento os recursos do BNDES, o PAC e as obras públicas e, com isso, conquistou o grande empresariado nacional. Todos os grandes conglomerados têm financiamento com o BNDES. E, na outra ponta, há, principalmente no aumento real do salário mínimo, a grande política de ascensão social no Brasil. Depois dela, vem o crédito consignado e, depois, o Bolsa-Família, que tirou da pobreza mas não gerou uma grande ascensão social, principalmente para os pobres se tornarem classe média, classe C. E aí vem a base do lulismo. E aí tem o suporte político. De um lado, a coalizão presidencialista, que é algo inédito no Brasil. O Getúlio Vargas até tentou montar algo, mas o Estado Novo acabou destruindo o que ele tentava forjar. Nós não tivemos na história republicana nenhuma situação parecida com a atual. O Brasil desmontou o sistema partidário, criou uma coalizão de tipo parlamentarista e jogou a política do Brasil entre governistas e não governistas, mas não é qualquer governismo, é lulista ou não lulista. E os partidos de oposição estão completamente em frangalhos, tanto PSTU quanto Psol de um lado, que não conseguem nem somar com todos os partidos de esquerda 1% da intenção de voto nacional, e de outro, à direita, o PSDB e o DEM; o primeiro num de seus momentos de maior tensão interna, a ponto de muitas lideranças falarem em refundação, e o segundo praticamente destruído com a saída do Gilberto Kassab. A última ponta é a do financiamento pelo Estado das organizações populares no país, principalmente as centrais sindicais.

Caros Amigos - Qual é a relação entre a emergência do lulismo e a institucionalização dos movimentos sociais surgidos na década de 1980, tratados no seu livro?
Os movimentos dos anos 1980 se basearam numa concepção anti-institucional, ou seja, nós acreditávamos, e isso vem do combate à ditadura, que todas as organizações públicas e autoridades eram ilegítimas. Acreditávamos que qualquer tipo de chamamento das autoridades para a participação das organizações populares na questão significaria cooptação. A legitimação das lideranças sociais nesse período se dava pela capacidade de mobilização, por isso que os líderes sociais dos anos 1980 eram carismáticos, tinham capacidade de retórica muito desenvolvida, falavam com emoção. A partir do final dos anos 1980 em diante, a esquerda começou a assumir gestões municipais, algumas estaduais e aí houve uma participação direta de muitos desses líderes. E aí nós temos a primeira ruptura desse anti-institucionalismo. Isso se dá no final dos anos 1980 até 1994, e, depois disso, temos uma partidarização muito grande de todos os movimentos sociais no Brasil, e das organizações populares. E a terceira questão, que não é impacto, e s m causa, é que começa enfim o financiamento externo às pastorais sociais, a muitas ONGs, e começa a longa jornada que estamos vivendo até hoje no Brasil. Essas ONGs, ao prestarem serviço, começam a criar estrutura de gestão controversa, e hoje o gerente de projetos tem mais poder do que o diretor, às vezes.

Caros Amigos - O senhor afirma que o Lula finalizou a modernização conservadora iniciada pelo Getúlio Vargas. Como isso aconteceu?
O conceito de modernização conservadora é da sociologia e foi elaborado por um autor chamado Barrington Moore. Atualizando isso para o caso brasileiro, significa que se faz uma modernização econômica sem mudar de maneira alguma a estrutura de poder, ela é conservadora nesse sentido do poder. O Lula articulou todas as lideranças clientelistas do Brasil, assim como Getúlio fez isso. A impressão que se dava do Getúlio era que ele estava atacando toda a base clientelista, dos coronéis, mas muitos deles foram recriados através do getulismo. O lula recriou a mesma estrutura de poder. A marca do getulismo e do lulismo é a conciliação de interesses e não o enfrentamento. Um exemplo é que se tem o Ministério da Agricultura de um lado, tem o do Desenvolvimento Agrário do outro. Isso não é por acaso. Se o Getúlio criou a base da industrialização do país com um Estado organizado a partir de uma estratégia desenvolvimentista e gerou a urbanização acelerada do país, o Lula deu o passo final, que é a emergência de um merca o consumidor de massa, da organização do investimento dos empresários através do PAC.

Caros Amigos - O lulismo é um neogetulismo?
É um neogetulismo sem o autoritarismo do Getúlio. É uma espécie de síntese didática. O lulismo completa o getulismo. Por isso que o Lula é o líder da classe C. Ele é a expressão do sucesso dos pobres. E ele soube usar isso.

Caros Amigos - Com essa nova classe média consumista, quais podem ser as consequências desse consumo exagerado e dessa liberação de crédito?
São várias, e o primeiro mais evidente é a possível bolha de consumo, porque no final da gestão Lula era evidente isso. Segundo o Ipea, 37,8% das famílias que tem dívidas disse que não sabiam como pagá-las. Em relação ao crédito, a classe C emergente que comprava em 40 e 60 parcelas continuava comprando mesmo endividada. Isso ocorria, porque havia a expectativa de aumento real do salário mínimo no ano seguinte. Como tinha mesmo esse aumento e como as parcelas eram todas diluídas, fazia crediário em dima de crediário. A implosão, para todos os analistas, estaria mais ou menos projetada para 2014, 2015. A segunda bomba relógio, e essa não foi desarmada, é o financiamento das políticas de transferência de renda, seno o Bolsa-Família o principal. Estudo de Beatriz David, pesquisadora da UERJ, revela que o segmento que mais vem perdendo poder aquisitivo é a classe B. Não há uma política do lulismo para fazer uma recuperação da renda do segmento médio, e aí que está a oposição. A segunda questão é que estamos no limite desse sistema de transferência de renda via conciliação de interesses. Estou dizendo que a transferência de renda e ascensão socil é insustentável dessa maneira.

Caros Amigos - Em relação à questão da ascensão social, existem muitos especialistas que criticam, questionam essa ascensão pela renda. Essas pessoas continuam pobres de direitos?
Mais ou menos. Esse é o terceiro ítem que eu ia levantar. Tem saída? Tem. Uma política de esquerda teria que tributar os mais ricos, adotar a tributação progressiva. Mas no modelo do Lula isso não funciona, porque não é um governo de esquerda, é um governo de conciliação. E um governo de conciliação parece de esquerda num país tão conservador como o Brasil. A classe média tradicional do Brasil, classe B, é muito conservadora, mas essa classe C também é, mas de outra natureza: desconfia de tudo que é público, não vê muita utilidade na democracia, esse debate de regime não é algo que lhes interesse. Isso porque são de famílias cujos pais, avós, eram pobres, então, por que teriam que acreditar em governo, partido ou sindicato? Por isso, eles são muito pragmáticos, é diferente da classe B. Não lhes importa se há corrupção ou não. Se o político garantir que eles vão continuar tendo esse salário mínimo ou aumentar a ascensão, votam nele. Isso não é clientelismo, é algo mais sofisticado. Se no dia seguinte ele errar, nunca mais votam nele. É um eleitorado que se aproxima da teoria liberal, da política como mercado. Eles agem desse jeito, e de novo o Lula é muito esperto. Quando no início da gestão ele voltava a falar, "eu não sou socialista, eu sou torneiro mecânico", ele sabia o que estava falando, ele estava falando para esse pessoal. Dados sobre os hábitos dessa população revelam que eles não acreditam em nenhuma organização comunitária ou social, o segmento social que eles maia valorizam é a família e depois citam os amigos, e mais nada. Eles sabem que não são classe A, querem ser e temem cair, por isso não estão seguros. Por causa disso, formam uma espécie de rádio peão entre famílias conhecidas para saber onde tem liquidação para ir em massa. É uma estratégia de sobrevivência do pobre com consumo de classe média.

Caros Amigos - Mas em relação aos direitos?
Eles estão pouco se lixando para os direitos. O discurso da cidadania e do meio ambiente não interessa esse pessoal. São pobres de direitos ainda. São pessoas que têm TV de plasma, mas não tem saneamento básico. Eles têm cinco celulares, duas televisões, essa é a média da classe C, vão ao cinema, mas têm um dormitório ainda insalubre. É um consumismo top de linha, eles consomem TV de plasma, dividem em 60 parcelas. Compram  um carro do ano - o mercado no final do ano explodiu - , vão de avião para o Nordeste, mas não têm segurança de pagar todas as parcelas que vêm acumulando. Esse tipo de insegurança, de desconfiança de tudo que é público e de tentativa de sucesso pela família dá todos os contornos de uma ideologia muito conservadora.

Caros Amigos - O senhor fala na possível emergência de um movimento de massa ultraconservador. Já estamos vendo isso ou pode acontecer?
Há algumas movimentações nesse sentido. O Tea Party nos Estados Unidos não é um movimento monolítico como se vende aqui no país, são 600 articulações no país, que não conformam uma unidade. Eles são muito moralistas, não têm exatamente um programa. Eu acho que o final do primeiro turno no Brasil deu um susto no país inteiro. Mexeu nesses temas todos da moral, mexeu  com a âmago da maioria das pessoas da classe C, que são ultraconservadoras. E representam 52% da população. Há alguns analistas que falam que eles são cínicos politicamente. É verdade. "Eu voto, mas pouco me interessa em quem  eu estou votando". Isso porque o objeto central deles é a família. Mas tem também um cinismo que é desse moralismo. A grande maioria da classe C, quando perguntada, fala que é contra o aborto, mas a média é de três casos de aborto na família, então se diz que eles são cínicos. Eu não acho que isso seja exatamente cinismo, é um discursso, uma intenção dessa classe C sair de situação de pobreza. O conservadorismo é um desejo de não parecer mais pessoas pobres, ralé. Isso cala muito fundo nessas pessoas, e o Lula sabia muito disso quando ele falava "eu sou contra o aborto, mas não posso negar como governante estadista que é um problema de saúde pública".
(...)

Caros Amigos -  Na sua perspectiva, o governo Dilma será mais conservador que o Lula?
Na política, sim, não sei na economia. Até agora a Dilma está sendo a expressão da história dela, uma pessoa que veio da POLOP, que era, nos anos de chumbo, talvez a organização mais intelectualizada. Depois, ela vai para organizações de luta armada que tinham alta centralização e disciplina política, e depois ela foi para o PDT. Ela junta essas coisas. A Dilma não é uma pessoa da rua, ela é muito técnica, não tem a história e do discurso do PT. Isso está muito evidente, ela tem objetivos, é muito centralizador, adora mecanismos de gestão que vem do alto empresariado brasileiro, e isso é uma ruptura com o lulismo. E eu não acho que o Lula está achando isso ruim, pois ele volta com tudo depois.

(...)

Caros Amigos - O retrocesso do lulismo é político?
Exatamente. É onde estava querendo chegar. O nosso problema não é econômico, social, é político. Retrocedemos demais no campo político. E tudo isso que aconteceu, de uma maneira, tinha raiz nos anos 1980.
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Para ler a entrevista completa e outras matérias confira edição de fevereiro da revista Caros Amigos, já nas bancas.

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