domingo, 20 de fevereiro de 2011

''A literatura não é edificante''

MARIO VARGAS LLOSA*
O Nobel de 2010 discute a decisão do governo francês
de suspender as homenagens oficiais
 a Louis-Ferdinand Céline (foto da internet),
 que morreu há 50 anos, por conta de sua militância antissemita

O ministro da Cultura da França, Frédéric Mitterrand, comunicou que o governo francês resolveu tirar da lista das comemorações nacionais deste ano o escritor Louis-Ferdinand Céline, morto há 50 anos. Com isso, ele cede a um pedido da associação de filhos de deportados judeus e de várias organizações humanitárias que protestaram contra o projeto inicial de render homenagem oficial a Céline, tendo em conta seus violentos panfletos antissemitas e sua colaboração com os nazistas durante a ocupação hitleriana da França.
Politicamente falando, Céline foi, de fato, uma escória. Eu li nos anos 60 sua diatribe Bagatelles pour Un Massacre e senti náuseas ante esse vômito enlouquecido de ódio, injúrias e propósitos homicidas contra os judeus, um verdadeiro monumento ao preconceito, ao racismo, à crueldade e à estupidez. O doutor Auguste Destouches - Céline era um pseudônimo - não se contentou em despejar seu antissemitismo em panfletos virulentos. Parece provado que, durante os anos da ocupação alemã, ele denunciou à Gestapo famílias judias que estavam escondidas ou dissimuladas sob nomes falsos para que fossem deportadas. É seguro que se, por ocasião da libertação, ele houvesse sido capturado, teria sido condenado a muitos anos de prisão ou à morte e executado como Robert Brasillach. Salvou-o ter se refugiado na Holanda, onde passou alguns meses na prisão. A Holanda se negou a extraditá-lo alegando que, na França exaltada da liberação, era difícil que Céline recebesse um julgamento imparcial.
Dito isso, é preciso dizer também que Céline foi um extraordinário escritor, seguramente o mais importante romancista francês do século 20 depois de Proust, e que, com a exceção de Em Busca do Tempo Perdido e A Condição Humana de Malraux, não existe na narrativa moderna em língua francesa nada que se assemelhe em originalidade, força expressiva e riqueza criadora às obras-primas de Céline, Viagem ao Fim da Noite (1932) e Morte a Crédito (1936).
"O fato de que essas e outras eminências
fossem racistas não legitima o racismo,
em primeiro lugar, e
é antes uma prova contundente
de que o talento literário pode
coexistir com a cegueira,
a imbecilidade e
os extravios políticos, cívicos e morais,
como o afirmou, de maneira impecável,
Albert Camus."
Considerando que a genialidade artística não é um atenuante contra o racismo - eu a consideraria antes um agravante -, a meu juízo, a decisão do governo francês envia à opinião pública uma mensagem perigosamente equivocada sobre a literatura e cria um péssimo precedente. Sua decisão parece supor que, para ser reconhecido como um bom escritor, é preciso escrever também obras boas e, em última instância, ser um bom cidadão e uma boa pessoa. A verdade é que se o critério fosse esse, apenas um punhado de polígrafos se qualificaria.
Entre eles há alguns que correspondem a esse padrão benigno, mas a imensa maioria padece das mesmas misérias, taras e barbaridades que o comum dos seres humanos. Somente na rubrica do antissemitismo - o preconceito racial ou religioso contra os judeus - a lista é tão extensa que seria preciso excluir do reconhecimento público uma multidão de grandes poetas, dramaturgos e narradores, entre os quais figuram Shakespeare, Quevedo, Balzac, Pio Baroja, T.S. Eliot, Claudel, Ezra Pound, E.M. Cioran, e muitíssimos mais.
O fato de que essas e outras eminências fossem racistas não legitima o racismo, em primeiro lugar, e é antes uma prova contundente de que o talento literário pode coexistir com a cegueira, a imbecilidade e os extravios políticos, cívicos e morais, como o afirmou, de maneira impecável, Albert Camus. Como se explicaria de outro modo que um dos filósofos mais eminentes da era moderna, Heidegger, fosse nazista e nunca se arrependesse seriamente pois morreu com sua carteirinha de militante nacional-socialista em dia? Embora nem sempre seja fácil, é preciso aceitar que a água e o azeite são coisas distintas e podem conviver numa mesma pessoa. As mesmas paixões sombrias e destrutivas que animaram Céline desde a atroz experiências que foi para ele a 1.ª Guerra Mundial, lhe permitiam representar, em dois romances fora de série, o mundinho feroz da mediocridade, do ressentimento, da inveja, dos complexos, a sordidez de um vasto setor social que abarcava desde o lúmpen até as camadas mais degradadas em seus níveis de vida das classes médias de seu tempo.
Nessas farsas grandiosas, a vulgaridade e os exageros rabelaisianos se alternam com um humor corrosivo, um deslumbrante fogo de artifício linguístico e uma surpreendente tristeza.
O mundo de Céline é feito de pobreza, fracasso, desilusão, mentiras, traições, baixezas, mas também de disparate, extravagância, aventura, rebeldia, insolência e todo ele difunde uma avassaladora humanidade.
Ainda que o leitor esteja absolutamente convencido de que a vida não é só isso - é o meu caso - os romances de Céline são tão prodigiosamente concebidos que é impossível, lendo-os, não admitir que a vida também seja isso. O grande mérito desse escritor maldito foi ter conseguido demonstrar que o mundo em que vivemos também é essa porcaria e que era possível converter o horror sórdido em beleza literária.
A literatura não é edificante, ela não mostra a vida como ela deveria ser. Ela antes, mais amiúde, ilumina em suas expressões mais audaciosas, com suas imagens, fantasias e símbolos, aspectos que, por uma questão de tato, bom, gosto, higiene moral ou saúde histórica, tratamos de escamotear da vida que levamos. Uma importante filiação de escritores dedicou sua tarefa criativa a desenterrar esses demônios, a defrontar-nos com eles, e a nos fazer descobrir que eles se parecem conosco. (O marquês de Sade foi um desses terríveis desenterradores).
É preciso celebrar os romances de Céline como o que eles são: grandes criações que enriqueceram a literatura de nosso tempo e, muito especialmente, a língua francesa, dando legitimidade estética a uma fala popular, saborosa, vulgar, pirotécnica, que estava totalmente ausente da cidadania literária. E, claro, como escreveu Bernard-Henri Lévy, aproveitar a ocasião do meio século da morte desse escritor "para começar a entender a obscura e monstruosa relação que pôde existir... entre o gênio e a infâmia".
Ao mesmo tempo que folheava na imprensa o ocorrido na França com o cinquentenário de Céline, li em El País (Madri, 23 de janeiro de 2011) um artigo de Borja Hermoso intitulado La Reabilitación de Roman Polanski. Com efeito, o grande cineasta polonês-francês é, agora, uma espécie de herói da liberdade, depois que uma espetacular campanha midiática, na qual grandes artistas, atores, escritores e diretores, advogaram por ele, conseguiu que a justiça suíça se negasse a extraditá-lo para os Estados Unidos. Isso foi celebrado como uma vitória contra a terrível injustiça da qual, pelo visto, ele havia sido vítima por parte dos juízes americanos, que se empenhavam em julgá-lo por esta bagatela: ter atraído com enganos, em Hollywood, para uma casa vazia, uma garota de treze anos à qual primeiro drogou e depois sodomizou. Pobre cineasta! Em que pese seu enorme talento, os abusivos tribunais americanos queriam castigá-lo por essa travessura. Ele, porém, fugiu para Paris. Menos mal que um país como a França, onde se respeitam a cultura e o talento, ofereceu-lhe exílio e proteção, e lhe permitiu continuar produzindo as excelentes obras cinematográficas que hoje ganham prêmios por toda parte. Confesso que essa história me causa as mesmas náuseas que senti quando mergulhei, há meio século, nas páginas putrefactas de Bagatelles pour Un Massacre.
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* Jorge Mario Vargas Llosa (Arequipa, 28 de março de 1936) é um escritor, jornalista, ensaista e político peruano, laureado com o Nobel de Literatura de 2010. Colunista do Estadão.
TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK
© Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas reservados a Ediciones El País, SL, 2010/ © Mario Vargas Llosa, 2011
Fonte: Estadão online, 19/02/2011
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