Rubem Alves*
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ADEMAR FERREIRA DOS SANTOS
Quem visse pela primeira vez julgaria tratar-se de um profeta: a longa barba branca desgrenhada, os pequenos olhos mansos e penetrantes, uma calvície que se anunciava pela testa, cabelos longos e lisos que escorriam até o ombro e uma gargalhada de cristal.
Era o ano de 2000. Começaram a chegar-me e-mails de Portugal. Eram-me enviados por um educador que eu não conhecia. Uma amiga brasileira que vivia em Portugal lhe havia dado um despretensioso livrinho de 108 páginas. Tratava-se de uma coletânea de pequenas estórias sobre a escola e a educação. Ele leu, gostou, e descobriu que sem nos conhecermos, já nos entendíamos. Convidou-me a visitar Portugal.
Aceitei. E lá estava ele no aeroporto, aquele rosto que descrevi. Colocou-me numa pousada numa encosta de montanha de onde eu podia ver a cidade de Braga que se espalhava na planície.
A desculpa para a minha presença lá era fazer uma série de palestras em universidades e escolas. Pelo menos era isso que ele me tinha dito.
Feitas as minhas palestras, numa manhã, sem aviso prévio, na porta da pousada, ele me disse: "Hoje vais conhecer uma escola diferente..." Achei estranho porque ele, durante os meses que havíamos trocado e-mails e em todos os dias em que estivemos juntos em Portugal, ele jamais mencionara essa "escola diferente." Tive a impressão de que essa "escola diferente" era um segredo que ele guardava. Ele sabia que a tal escola não podia ser explicada em palavras ou dita em teoria. Teria que ser vista.
"Como é essa 'escola diferente', perguntei. Ele sorriu, não me respondeu e me disse: "O Rubem Alves verá..."
"O Ademar era assim.
Acho que se ele fosse reescrever
o primeiro versículo do evangelho de João,
ele escreveria:
"No Princípio era a beleza..."
Descemos a encosta e ele me levou a uma pequena cidade chamada Vila das Aves. Lá estava a Escola da Ponte que me espantou e que eu nunca teria imaginado. Fiquei amigo de alunos e professores. Vi a escola acontecendo, como coisa viva. Minha imaginação explodiu. E dessa explosão surgiu o livro A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. Acho que essa foi a maior contribuição que eu fiz aos educadores: dizer que uma escola como aquela era possível e existia. O crédito pela revolução nos meus pensamentos sobre escolas deve ser dado a ele.
Viajamos muito, visitando escolas. Conversávamos. Ouvíamos música. Falávamos sobre literatura. Foi o Ademar que me apresentou à Sophia de Mello Breyner Andressen, de poemas cristalinos e contos fantásticos. Seu conto A Viagem é assombroso. Mexe mais com minhas vísceras que A terceira margem do reio, de Guimarães Rosa e O afogado mais lindo do mundo, de Gabriel García Marquez.
***
O tempo passou. Um ano depois. O salão estava cheio. Era o lançamento do meu livro Por uma educação romântica - Brevíssimos exercícios de imortalidade. Fora publicado para distribuição gratuita, por patrocínio da Câmara Municipal da Vila Nova de Famalicão, iniciativa do Ademar... Foi ele também que escreveu o texto introdutório ao livro, em que ele me apresentou ao público português. Não sei como ele o conseguiu: colocou-me vivo dentro das suas palavras. Quem lê o seu texto está me devorando... (Essa introdução se encontra na edição brasileira de Por uma educação romântica, ed. Papirus)
O Ademar se levantou. Fez um gesto sem palavras pedindo silêncio. Feito o silêncio, ouviu-se uma das músicas mais belas e dilacerantes que eu jamais tinha ouvido. Era o 2º Movimento do Concerto em sol, de Ravel, para piano e orquestra.
O Ademar era assim. Acho que se ele fosse reescrever o primeiro versículo do evangelho de João, ele escreveria: "No Princípio era a beleza..."
Imprevisível. Não se sabia direito o que ele iria fazer a seguir. Não se sabia o que ele tinha guardado na sua cabeça inquieta. Não sei quantos CDs das obras de Vivaldi ele me deu. E foi numa de nossas viagens que ele me fez ouvir pela primeira vez o maravilhoso Réquiem de Fauré.
Mas ele ficou encantado. Mora um pouco na minha casa, no livro de poemas de Bocage, nos inúmeros livros de poesia da Sophia de Mello Breyner Andressen, nos CDs de Vivaldi e Fauré, no concerto de Ravel, nos seus escritos... São sacramentos, sinais visíveis de uma amizade invisível.
Me lembro dele e ouço uma de suas gargalhadas...
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* Teólogo. Escritor. Educador.
Fonte: Correio Popular online, 26/02.2011
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