terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O desenvolvimento é mais embaixo

Antonio Delfim Netto*
Uma das funestas consequências da crise construída pelo sistema financeiro internacional, sob os olhos complacentes das autoridades monetárias, foi a desmoralização da economia de mercado como instrumento eficiente de um Estado indutor (constitucionalmente controlado) para criar as condições do desenvolvimento social e econômico num contexto compatível com a liberdade de iniciativa individual.
Todos sabemos que ela não foi inventada. É produto de um processo que começou há mais de 130 mil anos, quando os homens abandonaram a África para ocupar o mundo. Sendo um processo, foi encontrando mecanismos flexíveis para satisfazer os objetivos sempre mutáveis dos homens. Esses, lentamente, transcenderam às suas necessidades materiais.
É esse caminho da "humanização" do homem, a rigor explorado apenas nos últimos 300 anos, que permitiu sextuplicar a população mundial, que aumentou em mais de sete vezes a disponibilidade per capita de bens e serviços e aumentou (graças à ciência e à tecnologia) a expectativa de vida ao nascer de 35 para 70 anos.
É claro que tal organização está longe de ser plenamente satisfatória, mesmo porque, sendo um processo, a cada momento criam-se novas "necessidades": a civilização sempre exige mais civilização... Ela está longe de ser perfeita e terminada, mas todas as alternativas construídas por cérebros peregrinos, que imaginaram construir a "sociedade perfeita" habitada pelo "homem perfeito", fracassaram miseravelmente. O século XX é um cemitério dessas aventuras. O século XXI promete mais alguns cadáveres...
A urna corrige excesso do falso tecnicismo econômico
Os economistas estão sempre atentos a relações entre eventos e, quando as encontram, inventam histórias para "explicá-las". Uma história que tem sobrevivido desde Adam Smith (que "explica bem o caso da Holanda e da Inglaterra) é que aquela economia de "mercado" só aparece e se desenvolve quando a sociedade aceita e dá dignidade à atividade exercitada pelos que têm iniciativa, e os benefícios de suas "inovações" podem ser apropriados por eles. Isso, obviamente, exige um Estado indutor, com mãos leves e amigável com relação a eles.
Essa história talvez "explique" melhor do que as funções de produção o fenomenal desenvolvimento da China, a partir de 1978, e da Índia a partir de 1991. Os fatores de produção (terra, mão de obra e capital) e as funções de produção inventadas pelos economistas já estavam lá em estado latente há dezenas de anos, e a produtividade total dos fatores, medida estatisticamente, era muito próxima de zero. O que faltava era um Estado indutor que: 1) respeitasse e dignificasse a atividade do setor privado; 2) libertasse o "espírito animal" dos empresários para utilizar e dar maiores oportunidades de progresso à mão de obra; e 3) garantisse que cada um poderia apropriar-se dos benefícios de sua iniciativa.
O mesmo fenômeno talvez se repita na Rússia, onde o governo promete remover o "entulho" que sobrou depois da queda da URSS, quando a transferência da atividade estatal para o setor privado foi entregue aos feudos do velho Partido Comunista. Houve, até agora, simples transferência da ineficiência estatal para uma cleptocracia, que destruiu até os setores de ponta tecnológicos do país. Diante da necessidade imposta por uma nova eleição (em 2012), Vladimir Putin apela para uma reabilitação moral da atividade econômica privada.
A nova "meta" é dar dignidade ao lucro honestamente obtido e libertar o espírito empreendedor pela ampliação da competição; privatizar US$ 50 bilhões de ativos (inativos!), que estão nas mãos do Estado (vender hotéis e times de futebol!); cortar as asas dos oligopólios (que estão ainda nas mãos de velhos companheiros da KGB!); estimular a abertura de novos investimentos, diminuindo a burocracia; ampliar a venda de tecnologia nuclear; diminuir a dependência do setor energético com fontes alternativas; proteger com tarifas e estimular com subsídios os setores automotivo e aeroespacial, a agricultura e diversificar a exportação de petróleo. A China hoje importa ¾ do total.
Para quem ainda tem dúvida que o respeito à dignidade da atividade industrial de bens e serviços (que nada tem a ver com os predadores financeiros!) é fundamental, basta observar os últimos movimentos de Barack Obama. Ameaçado pelas urnas, tenta uma reaproximação com o setor real da economia americana.
Seu maior erro foi a pirueta inicial para agradar os democratas: salvar os desonestos que produziram a crise à custa de 17 milhões de desempregados (metade dos quais há mais de seis meses) que ganhavam a vida honestamente. Como agora também os EUA sabem, a urna corrige o excesso do falso tecnicismo econômico. Às vezes um pouco tarde...
Essas historietas têm muitas e proveitosas lições para o Brasil.
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*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento
Fonte: Valor online, 01/02/2011

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