sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O amor além de Freud

Paulo Ghiraldelli Jr*
“O que é que ele viu nela? Meu Deus, a mulher não é bonita, não é simpática e ainda por cima falta-lhe inteligência até mesmo onde qualquer outra mulher a tem!”. Não raro escutamos frases assim e, ao ponderarmos bem do que se trata, acabamos concordando com a sua verdade. Não conseguimos saber o que fez um homem bonito, simpático e inteligente amarrar-se no traste descrito pela frase. Então, recorremos ao consolo do ditado popular, como um subterfúgio da razão: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”.
O senso comum pode ficar com o ditado popular, mas a filosofia pede mais que isso.
Stendhal foi um daqueles que considerou o amor entre casais como inexoravelmente articulado à ilusão. Quem ama avalia o amado de um modo especial, conferindo-lhe atributos que, enfim, ele não possui de modo algum ou, ao menos, se não fosse o amor, a valoração não apareceria. Quem ama, ama os defeitos e, enfim, não tarda em fazê-los desaparecer ou até mesmo em transformá-los em qualidade. O amante vira do avesso os vícios da amada, enxergando-os como virtudes. Freud tentou explicar todo e qualquer amor por essa via.
Freud caracterizou o amor como o resultado de processos de sublimação. Na origem, a libido – a energia do desejo pelo prazer – se satisfaz diretamente com aquilo que é a alimentação da mãe e o aconchego do seio e similares. Depois, esses desejos passam a ser satisfeitos de modo mais sofisticado, e então criamos nossos objetos de investimento libidinal em produtos e atividades da cultura. O amor erótico nada é que uma especificidade desse investimento, mas em uma determinada pessoa. Então, ele implica num processo de valorização. Damos valor a esse objeto que escolhemos para a satisfação. E esse valor, como é conferido por nós, pelos amantes, é arbitrário e, então, ilusório. Que se fique atento: quando se ama se ama aquilo que pouco é o que parece.
Essa visão de Stendhal e de Freud está em acordo com a perspectiva metafísica tradicional que, segundo Nietzsche, já faz parte do nosso senso comum – uma espécie de platonismo popular. Em termos bem gerais e, enfim, como ela se mostra no vocabulário do senso comum, trata-se da idéia de que o que está à vista não é o real, pois o real se esconde e só deve aparecer após algum tipo de trabalho “crítico”. Essa concepção é posta em questão pelo filósofo Irving Singer, um veterano das investigações sobre filosofia do amor.
Irving diz que o amor e a valoração são interconectados. Ele afirma que há dois processos de valoração: appraisal e bestowal. Freud teria vinculado o amor apenas ao primeiro, esquecendo-se do segundo, que realmente seria a chave para completar o quadro de entendimento do amor.
"Caso você ame,
não se preocupe com gerar filhos,
o próprio amor já gerou os filhos
 à medida que gera um novo
valor no mundo.
Sua arte como criador já se fez."
Appraisal é, segundo Singer, “a habilidade para descobrir valor em si mesmo e outra pessoas”. Bestowal é um modo de criar valor, não o mesmo tipo de valor como em appraisal, mas um novo tipo de valor. Bestowal é uma criação de valor por meio da relação estabelecida. (1) Eis appraisal: podemos avaliar outra pessoa como excelente e tirar proveito de nossa relação com ela por tudo que ela tem a oferecer. Isso existe no amor, mas, enfim, em muitas outras relações. Posso avaliar e valorar meu sócio em negócios. Mas, quanto ao amor, há algo mais, há bestowal, ou seja, há a emergência de valores novos que são frutos da própria relação. Appraisal continua a existir sempre. Mas a relação de amor transcende isso porque ela permite que apareça o valor dela mesma, quase que desconsiderando o que se pode ganhar ou perder com o valor dado por appraisal. A própria relação de amor é a criação nova.
Freud, na conta de Singer, explica o amor – corretamente, diga-se de passagem – como uma distorção de appraisal, uma superestimação do amado a partir de interesses individuais egoístas. O amor, assim, é a ilusão de appraisal. Freud não pecaria por isso, e sim por ficar só nisso.
Singer não diz, mas eu posso talvez dizer que bestowal está em consonância com o que o filósofo americano Robert Nozick diz do amor, que ele cria algo para além do eu e do tu, ele cria um “nós”. O nós não é apenas lingüístico, mas tem presença ontológica garantida. O nós consubstancia a presença de um novo valor no mundo, que é a própria relação de amor como algo inédito que se estabelece no cotidiano. Isso renova completamente cada um dos participantes do nós, e os faz valorar tudo de maneira nova. Pode-se confundir isso com appraisal, mas, com um pouco de discernimento, vê-se que se trata de algo diferente, algo que foi gerado a dois e, então, posto em cada um. Em forma de casal, cada um pensa diferente do que pensava quando se colocava aparte do nós ou apenas como uma das partes do nós. \o casal faz projeções. Dá origem a valores que não tem sentido dizer que foram descobertos, pois foram claramente inventados na relação.
Amar não é somente idealizar o amado, como Freud diz. Amar é criar novo mundo, ou ao menos é em parte isso, como Singer delineia. Caso você ame, não se preocupe com gerar filhos, o próprio amor já gerou os filhos à medida que gera um novo valor no mundo. Sua arte como criador já se fez.
(1). Singer, I. Philosophy of Love. Cambridge/Massachussets: The Mit Press. 2009, p. 52.
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Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte:http://ghiraldelli.pro.br/2011/02/18/alem-de-freud/

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