terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

“A memória é uma arma humana”

Esther Grossi*
Esta afirmação da nossa presidente Dilma Rousseff, na cerimônia do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, em Porto Alegre, neste ano de 2011, dia 28 de janeiro, tem tudo a ver com a frase célebre de Sara Pain – “nós somos as nossas recordações”; ou, em sua língua materna – “nosotros somos nuestros recuerdos”. Como seres de cultura e não de natureza, não estamos predeterminados por instintos. Constituímo-nos como pessoas a partir de nossas experiências entre pessoas, das quais construímos nosso acervo de recordações. E somos responsáveis pelo que fazemos com nossas recordações, pois elas são armas. E uma arma pode servir tanto para nos defender como também pode servir para matar a nós e/ou a outros.
É que, em verdade, nós não somos todo o conjunto de nossas recordações, porque ele é riquíssimo. Nós somos aquelas lembranças que pinçamos dentre todas, por serem as mais significativas. Porém, o que dá significado às nossas recordações é a dupla “prazer e dor”. Toda recordação está associada a algum afeto, isto é, a algo que nos afetou. Guardamos na nossa memória episódios de nossa vida que nos afetaram mais que outros, que nos fizeram muito felizes ou muito infelizes. E elas passam a nos orientar de acordo com nossa bússola, a qual está sempre voltada para o polo encantado do prazer. Temos como vocação tentar ser felizes.
A partir de nossas recordações, que encerram ideias sobre o que pode ou não nos dar prazer, é que decidimos nosso rumo. Amamos o que nos parece que pode nos causar prazer e odiamos o que pensamos que pode nos causar dor. Mas aqui ocorre um fenômeno curioso – quando sofremos muito, se não tivermos ocasião de compreender minimamente o que aconteceu, facilmente nos enganamos sobre a causa do sofrimento. E a arma que vem desta recordação terá uma mira equivocada. Ela acaba sendo perigosa para nós mesmos e também para outros que pensamos ter parte na responsabilidade por nosso sofrimento.
"A partir de nossas recordações,
que encerram ideias sobre o que pode
ou não nos dar prazer,
é que decidimos nosso rumo."
Por isso, o editorial de Zero Hora, dois dias depois do pronunciamento da presidente, adverte adequadamente: “A memória somente será uma arma de paz se for municiada pela verdade”. Por sugestão de Walter Kohan, acrescentamos que seja municiada por verdades que expandam a vida, que nos tragam alegria, que ampliem a justiça e não por aquelas carregadas de preconceitos, de ressentimentos ou de culpas, ou de medos.
Reconstituir a verdade sobre o que nos faz sofrer e que foi mal caracterizada não é tarefa fácil. Requer a coragem de trazer à tona o sofrimento que foi recalcado para que, junto com ele, se refaça a ideia que a ele ficou associada indevidamente.
Por isso, nada melhor do que, na hora de um sofrimento, por doloroso que seja, sempre que possível, criar-se condições para que se o analise. E análise implica pôr palavras a respeito do que aconteceu. Pôr palavras significa dialogar com alguém. Sem interlocutor, a análise não faz sentido. E mais, é preciso uma interlocução que nos desperte energias para tarefa tão necessária, mas tão difícil.
O bom será se pudermos, como a Dora do filme Central do Brasil, chegar ao ponto de poder escrever – “tenho saudade de tudo”. Na interlocução extraordinária com Josué, ela descobriu que seu pai bêbado podia ter qualidades, como as descobriu no pai, também bêbado, de Josué.
Que multipliquemos a interlocução entre nós, aprendendo a ajudar-nos a só associar algumas boas verdades às nossas recordações.
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*Educadora
Fonte: ZH online, 01/02/2011

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