Rubem Alves*
Pjotr Ilyich Tchaikovsky é um dos compositores que mais me comovem. Seu concerto para piano e orquestra e o concerto para violino e orquestra são peças de extraordinária força e beleza. As sinfonias nº5 e 6, por sua vez, são de uma tristeza pungente. Jovem, eu ouvia repetidamente a sexta sem me cansar. E também as peças para o balé, como a Suite Quebra Nozes e A Bela Adormecida.
Mas nunca vi referência a uma inovadora contribuição de Tchaikovsky para a composição da orquestra. Ninguém, jamais, havia se atrevido a fazer o que ele fez: pôs, ao lado dos violinos, flautas e trompas, como instrumentos musicais, armas de fogo. Mas não pensem que ele usou pistolas e fuzis. São armas fracas... Ele usou canhões! Abertura 1812, celebração da vitória da Rússia sobre o exército napoleônico. Melodias russas se misturam com a Marseillaise e, aos poucos, os temas russos triunfam sobre o hino francês. O final é uma orgia ensurdecedora de sinos e tiros de canhão.
Eu, que me irrito com pequenos ruídos, gosto do barulho dos tiros de canhão. Deve haver razão para isso. Talvez Freud explique. Um paciente que me revelasse um sonho em que houvesse canhões logo me sugeriria sentidos sexuais. O próprio formato de um tubo de canhão, apontando para cima num ângulo de 45 graus, já diz tudo. É um símbolo de potência, de virilidade! Não nega fogo.
Fiz amizade com os canhões quando era jovem e fazia serviço militar no CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva). Lembro-me de uma noite de acampamento. A gente brincava de guerra. A guerra, com todos os seus horrores, provoca emoções fortes e inofensivas, quando se sabe que é brincadeira. Até mesmo a morte é de mintirinha... As marchas militares nos obrigam a trocar os passos ao ritmo dos tambores, mesmo que a gente seja pacifista!
Nessa noirte chovia forte. Missão: cavar uma trincheira. No escuro. A água da chuva enchia a trincheira. E para dar realismo ao que acontecia, a ordem era - e no Exército, como se sabe, ordens são para serem cumpridas e não discutidas - dar um tiro de canhão de meia em meia hora. Só pólvora, só barulho - mas a emoção era de verdade. Com uma vantagem: não havia medo.
Havíamos sido advertidos que, ao dar o tiro, era preciso manter a boca aberta, porque havia o perigo de que a vibração do ar, no momento do tiro, pudesse trincar algum dente. Foi assim que um tiro de canhão tirou uma lasca do meu dente que, posteirormente foi consertado por um dentista. Foi meu único ferimento em combate pelo que não recebi nenhuma condecoração...
Mas o que desejo é contar-lhes da quase ternura que sinto pelos canhões. Ainda hoje sei cantar o Hino da Artilharia, do princípio ao fim... "Se é mister, num esforço derradeiro, em fazer de seu corpo uma trincheira, abraçado ao canhão morre o artilheiro, em defesa da pátria e da bandeira..."
Tudo foi uma imensa brincadeira... Os canhões, afinal de contas, têm uma dignidade estética, instrumental, musical, que Tchaikovsky imortalizou na abertura 1812...
Mas nunca tive uma arma. Só uma espada no meu escritório, como lembrança. Canhões são mais seguros que revólveres. Ninguém se suícida usando um canhão.
Depois eu conto sobre a espada...
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Acaba de sair um livro meu, Variações sobre o Prazer: (Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette). Sou suspeito para elogiar meu livro. Mas a capar é linda...
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* Escritor. Teólogo e educador.
Fonte: Correio Popular online, 06/02/2011
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