sexta-feira, 4 de março de 2011

Chaves do poder e da liberdade feminina

Eliana Cardoso


Ponto e Vírgula:
Virginia Woolf mostra a relação entre o dinheiro e a ficção.
Com o talento da romancista e o poder do humor,
discute o caráter feminino e
narrativas de homens e mulheres.
Entre a afegã coberta pela burca no mercado de Cabul e a brasileira exposta pelo fio dental na praia, existem bilhões de mulheres, cada uma delas fruto de diferentes tradições e lutas pessoais. O lugar do sexo frágil no Iraque contrasta com a posição da mulher nos países nórdicos. Fotos e relatos das condenações de adúlteras à morte por apedrejamento dão testemunho da sujeição da mulher ao poder dos homens em certas paragens. Por outro lado, as mulheres estão passando na frente dos homens nos Estados Unidos.
Segundo o censo americano, a mulher tem hoje uma renda maior do que a do marido entre 22% dos casais com mais de 30 anos. E as mulheres com menos de 30 anos ganham, em média, mais do que os homens da mesma idade, nas 150 maiores cidades dos EUA. Elas já são mais numerosas do que os homens entre os estudantes se graduando nas universidades americanas. E, dizem os demógrafos, a tendência deve acentuar-se.
Aposto que essa moda vai pegar no Brasil. Em alguns círculos da nossa sociedade, as mulheres já gozam das mesmas oportunidades e direitos que os homens, convivendo com eles em pé de igualdade. Para minha neta, as reivindicações da revolta feminista no mundo ocidental são história. Sim. História, mas história recente, ainda viva na memória da minha geração.
Meu pai cultivava amigos entre políticos eruditos, acadêmicos e outros sabichões. Aos domingos, eles se sentavam num canto da varanda, olhavam as montanhas e conversavam. Sobre política. A vida em outros países. A perspectiva econômica...
Minha mãe e tias sentavam-se no canto oposto e também conversavam. Queixavam-se das empregadas e cochichavam segredos que não eram para ouvidos infantis. Eu me movia entre os dois grupos e me dava conta das diferenças. Naquela época, a vida dos homens me pareceu melhor do que a das mulheres.
Alguns anos mais tarde, dois livros - "O Segundo Sexo", de Simone de Beauvoir, e "Um Teto Todo Seu", de Virginia Woolf - vieram confirmar minha suspeita de que, se as mulheres estudassem, poderiam conquistar a independência que até então tinha sido apanágio dos homens.
"O Segundo Sexo" só conheceu o sucesso depois de 1970, embora tivesse sido publicado em 1949. Para mostrar que a sujeição feminina não se deve à biologia, mas é um fenômeno cultural, o livro de Simone de Beauvoir adota uma perspectiva histórica e se apoia tanto em experiências vividas pela autora quanto no seu poder de reflexão e enorme erudição. Embora teórico na forma, o livro usa montanhas de exemplos concretos e oferece conclusões realistas. Pelo trabalho a mulher já atravessou boa parte da distância que a separava do homem, diz Simone de Beauvoir. E é o trabalho que tem o poder de lhe garantir a liberdade.
A ênfase de Beauvoir é sobre as ideias e ela parece dar pouca importância ao estilo. Talvez seja por isso que não me passa pela cabeça reler aquele tijolão cheio de sabedoria. Mas "Um Teto Todo Seu", publicado pela primeira vez em 1929, é muito mais do que um ícone da literatura feminista e por isso, na semana passada, o reli cheia de prazer.
Seria muito pouco dizer que Virginia Woolf explora o papel do dinheiro na produção de narrativas por mulheres. O longo ensaio combina o talento da romancista ao poder de seus argumentos e retórica na discussão do caráter feminino, da ficção produzida por mulheres e da ficção criada pelos homens sobre as mulheres.
Escrito na época em que a mulher da Inglaterra acabara de conquistar o direito ao voto e à propriedade, o livro traz a marca de seu tempo e coloca a ênfase no dinheiro (uma herança, por exemplo, da qual você possa dispor a seu bel-prazer), antes do que no trabalho, como o caminho para a liberdade. Entretanto, a ênfase na educação como chave da independência não poderia ser mais atual.
"Elas já são mais numerosas do
que os homens entre os estudantes
se graduando nas universidades americanas.
 E, dizem os demógrafos, a tendência
deve acentuar-se."
Como as mulheres no livro de Woolf, minha mãe teve seu acesso à universidade impedido. Meu avô acreditava que mulher não devia encher a cabeça de caraminholas, mas preparar-se para cuidar do marido e dos filhos. Mamãe, entretanto, foi uma autodidata que entendeu a importância da educação formal e se empenhou para que as cinco filhas se graduassem.
Em "Um Teto Todo Seu" (que minha mãe adorava), Woolf inventa para si um caráter ficcional e uma universidade imaginária. A personagem - expulsa do gramado, atormentada pela incongruência entre o que vê e o que sente e cheia de perguntas - retrata a pessoa cuja aparente falta de "savoir-faire" apenas esconde qualidades excepcionais. Ao seguir os passos de Lamb (o ensaísta inglês), ela se vê barrada na entrada da biblioteca e se torna a representante de todas as mulheres barradas da educação até recentemente. E, a partir da comparação criativa entre duas refeições, Woolf constrói o argumento de que o dinheiro e a ficção estão relacionados.
Com ironia e humor descreve sua visita ao Museu Britânico, onde examina a "História da Inglaterra" de George Trevelyan. Move-se em seguida para sua casa. Essa constante mudança de ambientes - da beirada do rio onde a heroína se encontra no começo do texto à universidade, à biblioteca e à própria casa - dá ao ensaio uma estrutura ficcional.
A análise também se move da discussão divertida da "História da Inglaterra" para uma resenha das romancistas inglesas do século XIX e a comparação das representações ficcionais das grandes figuras femininas na tragédia grega e em Shakespeare com as mulheres que apanham dos maridos na vida real.
Um dos pontos altos do ensaio é a especulação do que teria sido a vida da irmã de Shakespeare, se ela tivesse existido e nascido com o mesmo talento do irmão. "Qualquer mulher nascida com um grande talento no século XVI teria certamente enlouquecido, se matado com um tiro, ou terminado seus dias em algum chalé isolado, fora da cidade, meio bruxa, meio feiticeira, temida e ridicularizada. Pois não é preciso muito conhecimento de psicologia para se ter certeza de que uma jovem altamente dotada que tentasse usar sua veia poética teria sido tão contrariada e impedida pelas outras pessoas, tão torturada e dilacerada pelos próprios instintos conflitantes, que teria decerto perdido a saúde física e mental." E daí Virginia Woolf expande as dificuldades enfrentadas pelas mulheres ao lembrar Aphra Behn - prolífica dramaturga inglesa do século XVII, considerada imoral ao assumir profissionalmente o trabalho de escritora.
Virginia Woolf coloca de lado as verdades universais (como quimeras irrelevantes). Ironiza o ponto de vista tradicional e machista. Invoca opiniões. Mistura escritores (como Jane Austen, George Eliot e Charlotte Brontë) com personagens inventadas (como Mary Beton, Mary Seton, a irmã de Shakespeare, o Professor Von X e Mary Carmichael). E convence o leitor de forma magistral.
"Um Teto Todo Seu" sugere que a igualdade dos sexos em áreas ocupacionais, por exemplo, não pode mudar a percepção das diferenças entre os sexos. Dinheiro é fundamental, mas igualmente importante é uma mudança de atitude: "É impensado condená-las ou rir delas quando buscam fazer mais ou aprender mais do que os costumes declararam ser necessário para seu sexo".
E continua em outro trecho: "A maior das liberdades é a liberdade de pensar. A melhor maneira é observar o mundo em torno de nós.[...] Aquele prédio, por exemplo, gosto dele ou não? E aquele quadro, é belo ou não? Será esse, em minha opinião, um bom ou um mau livro?"
O último capítulo reforça o argumento. Aqui, a autora defende a mentalidade andrógina - como a de Shakespeare, Keats e Sterne e Cowper e Lamb e Coleridge - para homens e mulheres: "É fatal, para quem quer que escreva, pensar em seu sexo. É fatal ser um homem ou uma mulher, pura e simplesmente; é preciso ser masculinamente feminina ou femininamente masculino".
O tom de conversa do ensaio é central na entrega da mensagem. Sua forma é tão importante quanto seu conteúdo: o texto, ele mesmo - com seu humor, ironia, brincadeiras e o poder de suas metáforas -, constitui a prova de que a mulher com dinheiro e acesso à educação (como teve Virginia Woolf) pode produzir narrativa da melhor qualidade. Se você ainda não leu "A Room of One's Own", está na hora. Mesmo que acredite que papo feminista é coisa do passado.
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*Eliana Cardoso, economista, escreve semanalmente no Valor Econômico, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio).
www.elianacardoso.com
Imagem por Pepe Casals
Fonte: Valor Econômico online, 04/03/2011

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