Felicidade Demais, o volume mais recente da maior
contista viva da língua inglesa
Alice Munro é considerada a maior contista viva da língua inglesa. Em 2009, recebeu o Man Booker Prize, prêmio literário mais importante da comunidade britânica, pelo conjunto da obra. São 12 coletâneas de contos e um romance, volumes publicados desde 1968 – seu primeiro conto em revista saiu em 1950. O dado curioso para os anglófonos é que Alice, de 79 anos, é canadense. Isso significa que ela não pertence a nenhuma nobre linhagem da short story, como a americana (Scott Fitzgerald, Flannery O’Connor) e a inglesa (Somerset Maugham, Graham Greene).
»Leia trecho do conto 'Dimensões', de "Felicidade demais", de Alice Munro
Doree teve que pegar três ônibus — um para Kincardine, onde esperou o que ia para Londres, onde esperou um ônibus de linha que a levou ao local. Começara a viagem num domingo, às nove da manhã. Devido aos períodos de espera entre os ônibus, levou quase até as duas da tarde para percorrer aqueles pouco mais de cento e sessenta quilômetros. Todo aquele tempo sentada, tanto nos ônibus quanto nas estações, não era algo que a incomodasse. Sua jornada de trabalho não era nada sedentária.
Ela era camareira da pousada Blue Spruce. Limpava banheiros e fazia e desfazia camas e passava aspirador nos tapetes e pano nos espelhos. Gostava do trabalho, que em certa medida ocupa¬va seus pensamentos e a deixava exausta o bastante para que con¬seguisse dormir à noite. Quase nunca tinha de arrumar muita bagunça, apesar de algumas das mulheres com quem trabalhava contarem histórias de arrepiar os cabelos. Eram mulheres mais velhas do que ela, e todas achavam que ela devia dar um jeito de arrumar coisa melhor. Diziam que ela podia se preparar para um serviço de escritório enquanto era nova e tinha boa aparên¬
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cia. Mas ela estava satisfeita com o que fazia. Não queria ter que conversar com ninguém.
Nenhum de seus companheiros de trabalho sabia o que tinhaacontecido. Ou, se sabiam, não comentavam. A foto dela aparecera no jornal — usaram a foto que ele fizera dela e das três crianças, o bebê novo, Dimitri, em seus braços, e a Barbara Ann e o Sasha, um de cada lado, olhando para a câmera. Seu cabelo era comprido e ondulado e castanho na época, com cachos e cor naturais, como ele gostava, e seu rosto era tímido e suave — re-flexo menos de como ela era do que de como ele queria que ela fosse.
Desde então, cortara o cabelo curto, tingira e espetara, e perdera bastante peso. E passara a usar o segundo nome: Fleur. Além disso, o trabalho que arrumaram para ela era numa cidade que ficava a uma boa distância de onde costumava morar.
Esta era a terceira vez que ela fazia a viagem. Das duas pri¬meiras ele se recusara a vê-la. Se ele fizesse isso de novo, ela sim¬plesmente desistiria de tentar. Mesmo que ele a visse, ela podia não voltar mais por algum tempo. Ela não se afligiria. Na verdade, ela não sabia exatamente o que iria fazer.
No primeiro ônibus ela não estava tão confusa. Foi mais um passeio, vendo a paisagem. Ela crescera no litoral, onde havia o que chamavam de primavera, mas aqui o inverno pulava quase que diretamente para o verão. Um mês atrás estava nevando, e agora estava calor o bastante para sair em mangas de camisa. Manchas ofuscantes de água empoçavam os campos, e a luz do sol filtrava-se por entre os galhos nus.
No segundo ônibus ela começou a ficar tensa, e não podia evitar imaginar quem dentre as mulheres ao seu redor devia estar a caminho do mesmo lugar. Eram geralmente mulheres sozinhas, vestidas com certo esmero, talvez para parecer que estavam indo à igreja. As mais velhas pareciam pertencer a igrejas rígidas e
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antiquadas onde era preciso usar saia e meias e uma espécie de chapéu, enquanto as mais jovens bem que podiam fazer parte de uma alegre congregação que aceitava blazers e calças, lenços coloridos, brincos e penteados armados.
Doree não se encaixava em nenhuma das duas categorias. Durante um ano e meio de trabalho ela não comprara uma úni¬ca peça de roupa para si mesma. Usava seu uniforme no serviço e jeans nas demais ocasiões. Ela acabara não usando nunca ma¬quiagem porque antes ele não deixava, e agora, embora pudesse, não usava. Seus cabelos espetados tingidos de cor de milho não combinavam com seu rosto ossudo e vazio, mas não tinha im¬portância.
No terceiro ônibus conseguiu um assento de janela e ten¬tou se manter calma lendo as placas — tanto as de propaganda quanto as de trânsito. Inventara um truque para manter a cabeça ocupada. Pegava as letras de qualquer palavra em que batesse os olhos e tentava ver quantas novas palavras conseguia formar com elas. “Café”, por exemplo, daria “fé”, “eca” e “face”, e “merca¬do” daria “mar”, “credo”, “doce”, “arco” e — veja só — “crema-do”. As palavras eram mais do que suficientes na saída da cidade, conforme iam passando por painéis, megastores, estacionamen¬tos, e até balões presos em telhados anunciando liquidações.
Doree não havia contado à senhora Sands sobre suas duas últimas tentativas, e provavelmente também não contaria sobre esta de agora. A senhora Sands, que ela visitava nas manhãs de segunda-feira, falava em mudanças, embora ela sempre dissesse que isso levaria algum tempo, que as coisas não podiam ser feitas assim às pressas. Dissera a Doree que ela estava indo bem, que ia aos poucos descobrindo sua própria força.
“Eu sei que essas palavras já estão mortas de tão gastas”, ela disse. “Mas continuam verdadeiras.”
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Ela ficou envergonhada com o que se ouviu dizer — “mor¬tas” — mas não piorou as coisas com um pedido de desculpas.
Quando Doree tinha dezesseis anos — isto fora sete anos atrás — ia visitar a mãe no hospital todos os dias depois da esco¬la. A mãe se recuperava de uma cirurgia na coluna, que diziam ser séria mas não perigosa. Lloyd era auxiliar de enfermagem. Ele e a mãe de Doree tinham em comum o fato de serem ambos hippies velhos — embora Lloyd fosse na verdade alguns anos mais jovem — e sempre que tinha tempo ele entrava e conver¬sava com ela sobre shows e manifestações de protesto de que os dois tinham participado, pessoas bizarras que os dois haviam conhecido, viagens com drogas que os deixaram chapados, esse tipo de coisa.
Lloyd era popular com os pacientes por causa de suas piadas e seu toque decidido e firme. Era atarracado e espadaúdo e auto¬ritário o bastante para ser às vezes confundido com um médico. (Não que ele ficasse contente com isso, pois era da opinião de que boa parte da medicina era um embuste e diversos médicos eram babacas.) Tinha uma pele sensível e avermelhada e cabe¬los claros e olhos corajosos.
Ele beijou Doree no elevador e disse que ela era uma flor no deserto. Então riu de si mesmo e falou: “Mas que comentário original, hein?”.
“Você é um poeta e não sabe”, ela disse, para ser simpática.
Uma noite sua mãe morreu de repente, de embolia. A mãe de Doree tinha muitas amigas que teriam acolhido Doree — e ela ficou com uma delas por algum tempo —, mas seu novo ami¬go, Lloyd, era o preferido de Doree. Em seu aniversário seguinte ela já estava grávida, e em seguida, casada. Lloyd nunca tinha se casado antes, embora tivesse pelo menos dois filhos dos quais não sabia o paradeiro. Deviam ser adultos àquela altura, de todo modo. Sua filosofia de vida mudara conforme foi ficando mais
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velho — ele agora acreditava no casamento e na constância, mas não em controle de natalidade. E foi ele que achou que a pe¬nínsula Sechelt, onde ele e Doree viviam, estava muito cheia de gente naquela época — velhos amigos, velhos modos de vida, velhas amantes. Logo, ele e Doree se mudaram para o outro lado do país, para uma cidade que escolheram pelo nome no mapa: Mildmay. Não foram morar na cidade; alugaram um lugar no campo. Lloyd arranjou um emprego numa fábrica de sorvetes. Plantaram um jardim. Lloyd sabia muito de jardinagem, assim como de carpintaria doméstica, de como operar um fogão a le¬nha e sobre como manter um carro velho em funcionamento.
Sasha nasceu.
“Perfeitamente natural”, disse a senhora Sands.
Doree disse: “É mesmo?”.
Doree sempre se sentava numa cadeira reta diante de uma escrivaninha, não no sofá, que tinha um padrão floral e almofa¬das. A senhora Sands aproximou sua cadeira da lateral da escri¬vaninha, para que pudessem conversar sem nenhuma barreira entre elas.
“De certa forma eu esperava que você fosse”, ela disse. “Acho que é o que eu teria feito em seu lugar.”
A senhora Sands não teria dito isso no começo. Um ano atrás, até teria sido mais cautelosa, sabendo como Doree ficaria revol¬tada, então, diante da ideia de que alguém, alguma alma pudesse se colocar em seu lugar. Agora sabia que Doree entenderia aqui¬lo como um modo, até mesmo humilde, de tentar entender.
A senhora Sands não era como o resto. Ela não era ríspida, nem magra, nem bonita. E nem tampouco velha demais. Tinha quase a mesma idade que a mãe de Doree teria, embora não aparentasse ter sido hippie algum dia. Mantinha o cabelo grisa¬
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lho curto e tinha uma verruga em uma bochecha. Usava sapato baixo e calças largas e blusas floridas. Mesmo quando eram cor de framboesa ou turquesa aquelas blusas não davam a impressão que ela realmente ligasse para o que estava vestindo — era mais como se alguém tivesse dito a ela que precisava caprichar e ela houvesse obedecido e ido comprar alguma coisa que servisse para a oca¬sião. Sua imensa e generosa sobriedade impessoal tirava daquelas roupas toda alegria invasiva, toda ofensa.
“Bem, nas primeiras duas vezes eu não o encontrei”, disse Doree. “Ele não quis sair.”
“Mas dessa vez ele veio? Ele saiu?”
“Veio, sim. Mas por pouco eu não o reconheci.”
“Ele envelheceu?”
“Acho que sim. Acho que emagreceu um pouco. E aquelas roupas. Uniforme. Nunca vi ele usando uma coisa daquela.”
“Ele lhe pareceu uma outra pessoa?”
“Não.” Doree mordeu o lábio, tentando atinar qual seria a diferença. Ele estava tão parado. Ela nunca tinha visto ele tão parado. Parecia nem saber que era para sentar diante dela. A primeira coisa que ela disse foi: “Você não vai sentar?”. E ele dissera: “Posso?”.
“Ele me pareceu meio ausente”, ela disse. “Fiquei pensan¬do se não estariam dando drogas para ele...”
“Talvez alguma coisa para ele se estabilizar. Vai saber, eu não sei. Vocês conversaram?”
Doree pensou se se poderia chamar assim. Ela fez algumas perguntas idiotas, comuns. Como ele estava se sentindo? (Legal.) Se ele estava conseguindo comer o suficiente. (Ele achava que sim.) Se havia algum lugar onde ele pudesse caminhar se quisesse. (Com supervisor, sim. Ele achava que era algo que se podia chamar de um lugar. Ele achava que se podia dizer que eram caminhadas.)
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Reportagem por: Luís Antônio Giron
Fonte: Folha on line, 03/09/2011
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