“A contradição está em falta”,
Crítico literário e teórico político norte-americano, Fredric Jameson inaugura nesta segunda-feira a edição 2011 do Fronteiras do Pensamento. Tradicionalmente receoso ao dar entrevistas, o autor de obras como A Cultura do Dinheiro e A Virada Cultural aceitou conversar com Maria Elisa Cevasco, que é doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela USP e especialista em sua obra. Confira o bate-papo a seguir e saiba mais sobre o Fronteiras acessando http://www.fronteirasdopensamento.com.br/ .
Pergunta – Para encontrar a linha central de sua obra, teríamos que usar a palavra “dialética”. Mas talvez o senhor queira começar contando sua formação e suas principais influências.
Fredric Jameson – Não tenho certeza se a dialética é a linha central, mas direi algo sobre minha formação intelectual. Acho que posso dizer que fui formado como sartriano. Isso não quer dizer que fui influenciado apenas pelo existencialismo, mas também há em mim um certo hegelianismo, e, é claro, marxismo. E, além disso, o termo que uso engloba toda a tradição francesa. Eu diria que o importante é que tornei-me fluente tanto em francês quanto em alemão e isso me deu acesso direto a textos do estruturalismo, da dialética, da psicanálise. Talvez seja essa combinação que dê ao meu trabalho a distinção que o identifica.
Pergunta – De que maneira você pensa ser um sartriano?
Jameson – A partir de todo o problema da formação do que julgamos ser o “eu”, a questão da consciência, a situação de classes, a fenomenologia ela mesma, a relação com um tipo maior de política, no caso dele diria que um anti-imperialismo burguês, o comunismo e assim por diante. E, é claro, refiro-me ao papel de Sartre como um intelectual político e um escritor. Quer dizer, não sou um romancista: falo do relacionamento dele com a literatura e a cultura.
Pergunta – Parte de seu trabalho é dedicada a ensaios sobre periodização. Como você caracterizaria o presente? Refiro-me a fenômenos como os Brics (países em rápido desenvolvimento), as revoluções no mundo árabe, a grande crise econômica?
Jameson – Bem, todas essas coisas são conjecturas políticas. Acho que uma maneira de pensar nesses eventos é pela distinção entre poder constituinte e poder constituído. É fácil ver como as revoluções de massa caracterizam um momento de liberdade da ordem estabelecida, mas é difícil ver que tipo de origem política emerge a partir disso e quem vai confiscá-la e tomas as rédeas. Por isso, penso que o slogan da democracia como formulado pelo Ocidente é muito insatisfatório, já que a democracia é uma forma política muito problemática – nenhum dos países do Leste tem algum tipo de real democracia. Hoje é fácil ver como as rupturas emergiram do passado, mas, desde o colapso dos Estados comunistas, não há novas imagens de um futuro politicamente estável, de uma entidade política que possa tomar o seu lugar. Agora, isso é o que eu chamaria de opinião política, e não uma análise. Outra coisa é o que eu chamo de pós-modernidade da globalização. Aliás, por isso a periodização é fundamental: é importante ver qual é a origem do presente, como ele difere do passado imediato, que eu chamo de modernidade. Não há quebras absolutas, pois a passagem do moderno para o pós-moderno não é necessariamente uma mudança de modos de produção, embora haja mudanças fundamentais na realidade social. Por isso, fazer uma descrição da pós-modernidade, que considero a face cultural da globalização, é politicamente necessário.
Pergunta – A ideia da contradição está muito presente em suas análises culturais. Qual a importância dela?
Jameson – Fui convencido muito cedo de que o que era muito interessante na filosofia contemporânea era a ideia de pergunta e resposta, problema e situação. O pensador de quem aprendi isso foi R.G. Collingwood, filósofo inglês muito fora do comum, que via a filosofia não como um conjunto de conceitos, mas como uma série de respostas a situações. A ideia dele era que você nunca conseguiria entender um conceito filosófico no abstrato, você teria que reconstruir o problema a partir da situação em que ele surgiu. Finalmente, a noção hegeliana de contradição é a melhor maneira de encarar esse assunto. Intelectualmente, não importa se falamos de cultura ou arte ou se falamos de tecnologia, história, ambições políticas: há sempre envolvida, em qualquer situação, uma tentativa de superar uma contradição. Assim, a maneira de trabalhar o significado dos atos políticos, estéticos, econômicos etc. é descobrir a situação contraditória que eles tentam resolver. E a noção de contradição, me parece, está em falta no mundo atualmente.
Pergunta – No prefácio de Jameson on Jameson, você escreve que a nova situação da globalização inaugura agora um conjunto de novas tarefas intelectuais. Fale mais disso, por favor.
Jameson – Acho que, uma vez que você troca de uma situação de realidade global, que seria o modernismo e a idade do imperialismo, para uma situação como a nossa atual, há um esforço tremendo de transcodificação. Você tem de transcodificar os problemas e as situações desta realidade mais antiga e limitada para a nova. Aí você vai se dar conta de que há todo um novo conjunto de formas e experiências para lidar. Novos tipos de temporalidade, novas formas artísticas e, é claro, o mais importante disso que são novas ideias políticas. Novos problemas com os quais trabalhar, novas ideias para conceber – o mundo atual me parece animador para se refletir.
Pergunta – Que formas de arte incorporam a contradição atualmente?
Jameson – Há momentos na história em que artes como a pintura concentram todas as formas – que são refletidas parcialmente em outras formas de arte. Foi assim com o romance no século 19, e também com a poesia, que é, digamos, a arte literária. Na pós-modernidade, acho que seriam as artes visuais, como a fotografia. Mas não se pode generalizar. Há sistemas de belas artes que são constantemente transformados, nos quais um dominante pode se tornar um coadjuvante, por assim dizer.
Pergunta – Que formas de arte o interessam hoje?
Jameson – Temo que a literatura tenha se tornado mais subordinada. Não temos mais os grandes romances que tínhamos antes, no modernismo. E por que não dizer que a comida tornou-se uma forma de arte? A cozinha é uma grande forma de arte. A pintura é e sempre foi muito reveladora. Mas, para mim, atualmente, todas as artes parecem estar em uma crise. Talvez não seja a arte o nosso foco, mas a teoria da arte.
Pergunta – No Fronteiras do Pensamento, você falará sobre a concepção de arte atual, em que as palavras-chave “feito a mão”, “evento” e “curador” tomam o lugar do social e da contra-crítica cultural. Você pode antecipar um pouco disso?
Jameson – Isso é um sintoma das mudanças de que estamos falando. E é isso que descrevo e sobre o que falarei. Acho que tem a ver com a substituição dos eventos em si por estruturas ou instituições em categorias, mas também tem algo a ver com a própria representação, com a temporalidade da arte e como a tratamos. Não vou ressaltar algum tipo de arte, mas certamente quero passar por um número de níveis de discurso. É mais uma descrição do próprio tempo e de sua estética.
Pergunta – Em Valences of the Dialectic você avança a sua noção de dialética espacial. Fale mais sobre isso.
Jameson – O que se necessita hoje, desesperadamente, é um contrapeso à influência dos EUA. A Inglaterra já representou isso, mas perdeu seu peso. Os países comunistas também. A esperança era de que, na reunião dos grandes poderes do Terceiro Mundo (os Brics), uma nova contraforça poderia surgir. Não surgiu, mas ainda não desisti disso. Obviamente, as revoltas islâmicas, as jihads, são um movimento antiamericano, mas elas não constituem um poder influente. A questão é: onde no mundo algo se move em direção a alguma coisa distintamente anticapitalista. Este lugar não se mostrou até agora, mas o Brasil tem sido pioneiro em muitas inovações políticas. E, assim, tem o direito de falar com certa autoridade sobre a situação do mundo.
Pergunta – Você acha que isso pode mudar nossa maneira de pensar sobre o sistema mundial?
Jameson – Sim, certamente isso torna outras coisas possíveis. Quer dizer, como os EUA têm muito dinheiro, deixando de lado o aspecto militar, é difícil ver quais outros modos de vida podem ser desenvolvidos paralelamente a ele. Parece-me de bom tom retornar a Charles de Gaulle, que insistiu na independência e na autonomia da França em relação aos poderes norte-americano e soviético. Obviamente, há países que retêm uma real independência, como Cuba, embora com poucos recursos e muitas dificuldades, e a China, por outro lado, já declarou independência dos EUA mas depois deu as boas-vindas com entusiasmo ao estilo ianque de desenvolvimento, então não é disso que falo. O Brasil me parece felizmente mais isolado da influência americana do que os países da América espanhola, por isso vejo o país como promissor. O Brasil nos dá a chance de imaginar um tipo de desenvolvimento um tanto diferente, um espaço em que se pode imaginar coisas inconcebíveis dentro do nosso sistema. Isso é realmente promissor para o mundo.
“Todas as artes parecem estar em crise.
Talvez não seja a arte o nosso foco,
mas a teoria da arte”
“O que se necessita hoje, desesperadamente,
é um contrapeso à
influência dos EUA”
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* Tradução: Fernanda Grabauska
POR MARIA ELISA CEVASCO PROFESSORA DA USP, PESQUISADORA DE ESTUDOS CULTURAIS E ESPECIALISTA EM LITERATURA DE LÍNGUA INGLESA
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