Paulo Itacarambi e Cristina Spera*
Imagem da Internet
Uma das grandes conquistas da sociedade industrial foi a divisão das atividades de um dia em jornadas de 8 horas. Atualmente, a jornada de trabalho mais comumente empregada é de 40 horas semanais, com um período de descanso de dois dias (48 horas).
Quando, nos anos 1990, a revolução tecnológica tornou-se uma realidade cotidiana, dizia-se que o ganho de produtividade na indústria abriria milhões de oportunidades no setor de serviços e este, também beneficiado pelas inovações tecnológicas, poderia oferecer o melhor dos mundos aos trabalhadores: jornada menor e oportunidade de estudar e passar mais tempo com a família e os amigos.
Hoje, já ultrapassando a primeira década do século XXI, vemos ocorrer justamente o contrário dessa “utopia”: a tecnologia, em vez de libertar, tornou as pessoas cativas das atividades profissionais, com a jornada de trabalho avançando sobre qualquer tempo “livre” do profissional.
Na verdade, parece que estamos no limiar de uma era em que o tempo pessoal e o período de trabalho vão ficar tão misturados que será difícil distinguir um do outro. Essa era já tem nome: era do trabalho imaterial ou intelectual, cujos empregos são gerados pelo setor de serviços e cujas funções podem ser desempenhadas de qualquer lugar, a qualquer hora. A produtividade depende, claro, da tecnologia, mas igualmente do conhecimento.
Ainda não existem pesquisas em larga escala sobre as consequências dessa mudança de paradigma no mundo do trabalho. Há, no entanto, estudos isolados, feitos nos Estados Unidos e na Europa, que trazem alguns dados importantes, como os relatados na matéria de capa da revista Carta Capital desta semana.
Na Inglaterra, o descanso semanal caiu de 48 horas para 27. Uma pesquisa da Universidade de Uppsalla, na Suécia, constatou que apenas 24% dos trabalhadores dos 15 maiores países da União Européia cumprem jornadas regulares de trabalho – fora de horários noturnos, nos fins de semana ou em regime temporário. Os profissionais autônomos são os que têm as jornadas mais irregulares.
Nos Estados Unidos, 77% dos trabalhadores lêem e-mails à noite e 35% respondem demandas de trabalho quando estão com os filhos.
No Brasil, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) deve realizar, em breve, uma pesquisa sobre o impacto da tecnologia no trabalho. Ainda não temos dados oficiais, mas sabemos, pela nossa própria experiência, que qualquer profissional de qualquer área trabalha nos finais de semana ou atende celular durante um jantar em família.
Embora tenhamos apenas os resultados de outros países, é possível fazermos uma reflexão a respeito desse fenômeno, sob o ponto de vista da responsabilidade social empresarial.
Do ponto de vista profissional, se o tempo pessoal está misturado com o do trabalho, não há mais possibilidade de se dividir a vida em dois momentos, como fazíamos até agora: o de ganhar dinheiro e o de usufruir desse dinheiro durante o lazer ou descanso. Então, o trabalho precisa trazer muita satisfação; é cada vez mais fundamental gostar do que se faz, para o trabalho não virar uma permanente tortura.
Sob o ângulo da empresa, é preciso considerar que o tempo pessoal do funcionário está misturado com o do expediente e aprender a lidar com essa situação, que tem reflexos não só nos negócios, mas na sociedade.
O sociólogo e escritor norte-americano Richard Sennett tem um livro sobre o que ele chama de “mundo do trabalho no novo capitalismo”, o qual recebe o impacto não apenas das tecnologias, mas da globalização. O livro se chama A Corrosão do Caráter e nele Sennett avalia as conseqüências dessas vertentes sobre o ser humano. Para o sociólogo, há dois efeitos mais evidentes. Em primeiro lugar, de ordem existencial, vamos dizer assim. Com o “tempo do emprego” invadindo todas as esferas do cotidiano, a vida emocional fica em segundo plano. E, sem vida emocional significativa, o ser humano não consegue desenvolver nem assimilar valores. Outra conseqüência dessa situação é o isolamento, que promove um individualismo extremado.
O trabalho on-line exige pouca ou nenhuma interação social. O profissional passa o dia na frente de uma tela, no máximo conversando via celular ou skype com outros profissionais que não conhece. Nada daquele papo sobre o fim de semana, a família, enfim, as conversas informais tão importantes na vida de qualquer ser humano, pois estabelecem vínculos emocionais, criando e consolidando valores como lealdade, compromisso, amizade e companheirismo. Retirado desse convívio e posto em lugar solitário, esse profissional torna-se também imediatista, impaciente e sem visão da coletividade.
Como superar essa situação? Pelos valores. São eles que vão unir trabalho e emoção. Para fazer essa junção, a gestão responsável torna-se imprescindível, pois ela é orientada por valores, transparência e diálogo com os públicos impactados pelas atividades do negócio. Valores, transparência e diálogo tornam o ser humano menos individualista, porque o fazem sentir-se “pertencendo a algo”. Com isso, ele se torna capaz de “perceber o outro” e construir empatia e uma visão mais coletiva do mundo. Esse sentido de pertencimento pode ser desenvolvido por meio de ações que promovam as relações sociais.
Mais do que a “invasão” da vida pessoal pelo trabalho, no entanto, o maior dilema trazido pela tecnologia ainda não tem solução: como absorver bilhões de trabalhadores no mundo todo, nos próximos anos, se a tecnologia, mesmo com mais produtividade, não criou novos postos de trabalho; ao contrário, aumentou a jornada?
A sociedade, junto com as empresas, precisa refletir sobre essa questão e encontrar talvez mais de uma solução, que pode significar a criação de novos direitos, civis e trabalhistas, que garantam renda e ocupação para os bilhões de profissionais do futuro, bem como uma sociedade sustentável.
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*Instituto EthosFonte: http://mercadoetico.terra.com.br/24/05/2011
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