quinta-feira, 12 de maio de 2011

Espírito, Natureza e Razão: o credo de um laico

Imagem da Internet
"Se eu decidisse ter um só Senhor e Salvador,
este seria o Homem ou a Humanidade".

Publicamos aqui um trecho do novo livro do matemático e lógico italiano Piergiorgio Odifreddi, Caro Papa ti scrivo (Ed. Mondadori). Seu livro é uma carta a Bento XVI, uma introdução ao ateísmo dirigida ao papa teólogo. O texto foi publicado no jornal La Repubblica, 10-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

No final da nossa comparação, o senhor, caro Papa Ratzinger, já sabe que o seu não é um Credo que possamos compartilhar, nem que eu possa professar. Mas o que eu poderia professar, então, se eu quisesse realmente rezar? Em conclusão, antes das despedidas, buscarei resumir brevemente a minha posição, despojando-a dos argumentos que trouxe para a sua defesa, e cristalizando-a justamente em uma forma o mais possível paralela ao seu Credo, embora oposta na substância.
Fazendo isso, manterei, de um lado, uma ligação formal com a tradição ocidental, que aderiu até a Idade Média e o Renascimento às fórmulas da profissão de fé que acabamos de comentar. Mas, de outro lado, vou fazer uma ruptura substancial com o conteúdo dessas mesmas fórmulas, que, a partir da Era Moderna e Contemporânea, foram sempre mais identificadas como a expressão de uma fé ultrapassada filosoficamente, inadequada historicamente e equivocada cientificamente.
Ao escrever o meu Credo, me inclinarei ao mesmo tempo em favor do realismo científico e histórico, que aceita tudo o que existe ou aconteceu, e contra o ilusionismo da ficção-científica e da ficção-histórica, que tende ao que não existe ou que jamais aconteceu. Embora, como de outro lado nem o Credo original faz, não vou tentar completar o meu Credo positivo com um complemento negativo seu, que pretendesse enumerar e especificar em detalhes aquilo em que não acredito. (...)
Se quisesse, portanto, me adaptar justamente para falar a sua linguagem e decidisse eu também professar a fé em um só Deus, que me transcende e me supera, às vontade do qual eu quisesse e tivesse que me inclinar, e que eu pudesse adorar e amar, este seria a Natureza, que tudo gera a partir de si mesma e por si mesma.
Assim como, se eu decidisse ter um só Senhor e Salvador, este seria o Homem ou a Humanidade. De modo a considerar não o metafórico primogênito da Natureza, com o direito bíblico de "subjugar a terra e dominar sobre todo ser vivo" (Gênesis 1, 28), mas sim o literal ultimogênito, com o dever natural de respeitar e preservar o ambiente e todas as outras formas de vida. E, acima de tudo, de modo a considerar como uma entidade superior aos indivíduos que a compõem e da qual os homens deveriam se perguntar constantemente o que podem fazer por ela, ao invés de se limitarem a exigir apenas que a Humanidade e a Natureza falam algo por eles.
Mas esse duplo "materialismo humanista" e "humanismo materialista" seria um substituto bem miserável da religião se não fosse acompanhado por uma fé não só na Natureza e no Homem, mas também no Espírito que se manifesta na consciência que temos do mundo e de nós mesmos.
Um Espírito puramente imanente, que procede da Natureza e do Homem, e que nós consideramos justamente como uma característica tão constitutiva nossa, de modo a chegar a cometer frequentemente dois erros complementares de sobreavaliação com relação a ele. Considerando-o, de um lado, transcendente, ao invés de emergente. E, de outro lado, necessariamente humano, ao invés de ligado apenas à complexidade de um sistema: em particular, já atualmente presente em outros animais superiores e potencialmente também nas máquinas em geral e nos computadores em particular.
Como homens, entretanto, interessam-nos sobretudo o nosso Espírito e as suas conquistas: em primeiro lugar, a surpreendente descoberta de que a Natureza não é caótica, como se poderia esperar, mas sim ordenada. E que a sua ordem não parece ser subjetivamente imposta pelo Homem, como a alfabética das palavras de uma linguagem. Mas resulta ser objetivamente intrínseca às coisas, como a matemática dos objetos aritméticos ou geométricos ou a lógica dos raciocínios.
Na Natureza, manifesta-se, portanto, uma ordem universal, que é chamada de Logós em grego, Ratio em latim e Ragione em italiano. O que nos permite dar um sentido literal ao versículo metafórico do Rig Veda, depois anexado ao versículo 1, 1 de João: "No princípio era a Razão, e a Razão estava com Deus, e Deus era a Razão". Entendendo, naturalmente, a Natureza por "Deus".
Da mesma forma, podemos interpretar o versículo 1, 14: "A Razão se fez carne e habitou entre nós", entendendo-o no sentido de que a razão humana é uma das formas pelas quais a Razão cósmica se manifesta na ordem da Natureza. Sendo uma manifestação sua, ela participa da Sua essência. E pode perceber outras manifestações semelhantes suas, que expressa naquelas leis da Natureza cuja pesquisa e descoberta são os propósitos primeiros e últimos da obra científica. Mas sendo justamente apenas uma manifestação sua, a razão humana encontra na Razão cósmica uma transcendência que a supera e diante da qual só pode perceber sua própria limitação.
O círculo aberto da minha reformulação laica do Credo, por isso, se fecha com a descoberta de que não só as palavras da sua profissão de fé podem ser reinterpretadas sensatamente. Mas também que a experiência religiosa encontra uma sublimação sua no sentimento que o Homem chega a provar diante da Natureza através da mediação do Espírito, e mais especificamente da sua quintessência que é a Razão.
Chega-se assim a uma "verdadeira religião", profunda e intelectual, que os cientistas, de Pitágoras a Einstein, sempre professaram, e da qual as religiões institucionais são apenas caricaturas superficiais. Daí o lema que eu expressava, talvez de um modo um pouco provocativo, desde o início da minha obra de divulgação em Il Vangelo secondo la scienza [O Evangelho segundo a ciência]. De um lado, que a matemática e a ciência são a única religião verdadeira, o resto é superstição. E, de outro, que a religião é a matemática, ou a ciência, dos pobres de espírito.
Essa "verdadeira religião" também tem os seus mistérios, que se manifestam sobretudo na constatação abstrata e surpreendente de que o Homem pode compreender algo da Natureza. E, depois, em nos concretos e estimulantes problemas científicos que ainda não encontraram solução definitiva: em primeiro lugar, as origens do universo a partir do vazio, da vida da matéria inanimada e da consciência dos primatas superiores.
Em comparação com esses verdadeiros mistérios, mais uma vez, aqueles das religiões, dos dogmas aos milagres, parecem ser apenas miseráveis caricaturas, bons apenas para aqueles que acreditam justamente que "bem-aventurados são os pobres de espírito, porque deles é o reino dos Céus" (Mateus 5, 3). Eu prefiro acreditar, ao contrário, que bem-aventurados são os ricos de Espírito, porque deles é a república da Terra.
Quanto à minha profissão de fé, é, portanto, assim que enunciarei o meu Credo laico. Como prometido, sobre as linhas do seu:

"Creio em um só Deus, a Natureza, Mãe onipotente,
geradora do céu e da terra, de todas as coisas
visíveis e invisíveis.
Creio em um só Senhor, o Homem,
plurigênito Filho da Natureza,
nascido da Mãe no fim de todos os séculos:
natureza de Natureza, matéria de Matéria,
natureza verdadeira de Natureza verdadeira,
gerado, não criado,
consubstancial à Mãe.
Creio no Espírito, que é Senhor e dá consciência à vida,
e procede da Mãe e do Filho, e com a Mãe e o
Filho é adorado e glorificado,
 ele que falou pelos profetas do Intelecto.
Espero a dissolução da morte,
mas não uma outra vida em
um mundo que não há de vir".
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Fonte: IHU, 12/05/2011

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